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12 de dezembro, 2004

            Há tempos, não venho aqui para registrar minhas palavras soltas e esperanças ainda infalíveis. Novembro foi bem conturbado, o suficiente para me impedir de escrever em diários. Provas finais, encerramento letivo tanto na escola onde estudo quanto naquela em que trabalho temporariamente. Finalmente, sinto-me um pouco mais aliviada, podendo aproveitar, tranquila, as minhas férias merecidas e o meu diário esquecido.

            A formação tradicional da casa continua: eu, Quartzo, Tita, vovó e vovô. Na próxima semana, papai estará chegando para passar o Natal conosco, completando a nossa pequena e quase feliz família. Realizaremos uma minúscula reuniãozinha em comemoração à data, algo proporcional ao nosso número reduzido. Porém, creio que, além de nós, uns dois tios e alguns amigos também virão, talvez apenas para dar volume. Momentos raros e que ocorrerão com menos frequência em 2006. Quando 2005 passar, todos nós estaremos separados, usando apenas um feriado capitalista para nos reunirmos.

            Seria cômico se não fosse trágico.

*

            Olhou-se diante do espelho. De que adiantava sofrer tanto por uma garota se havia problemas maiores em sua vida? Prestava papel de ridículo, estúpido. Esfregou o rosto, cansado. Estaria sendo egoísta e infantil? Provavelmente. Censurou-se. Idiota.

            Criança idiota.

            Vestiu a jaqueta, enfiou as mãos nos bolsos, saiu de casa. A noite estava fria, o vento balançava seus longos cabelos castanhos, de pontas onduladas, embaraçadas. As calças frouxas tinham as barras rasgadas pelo uso constante, os tênis eram surrados e sujos. Fazia um tipinho feio, estranho, duvidoso. Nunca falava sobre si, sobre seus planos, seus medos, os conflitos internos pelos quais passava. Nunca tinha muita vontade para conversar e não existiam as pessoas corretas para se falar. Achou que tinha encontrado alguém, mas, nos últimos dias, sentia ter cometido vários e seguidos enganos.

            Passou quase uma semana imerso em pensamentos, dúvidas que não abandonavam a sua mente. Estaria realmente sendo idiota e egoísta? Preocupava-se com coisas mesquinhas enquanto havia um problema maior em sua casa? Enquanto precisava tomar decisões? O que raios estava fazendo?

            Cerrou os olhos, andando a passos mais rápidos. Iria sair, espairecer. Aceitou de prontidão o primeiro convite para se divertir após a viagem repentina de Cecília. Por uma noite, pelo menos, procurou não pensar em nada.

            Absolutamente nada.

*

            O Encontro de Música estava parcialmente lotado, superando as suas expectativas. Retraído, procurou Edgar entre o público. Iria ser complicado. Retirou o celular do bolso, resolveu ligar. Trocaram poucas palavras, o suficiente apenas para cada um descobrir a localização do outro. Dirigiu-se ao local indicado pelo amigo, esperava pacientemente. Assim como mais cedo, tentava manter a mente limpa de qualquer pensamento conturbador. Queria se divertir um pouco, esquecer Cecília, a recuperação escolar, os problemas que se intensificavam em casa, as decisões que precisaria tomar dali a alguns dias.

            Apenas esquecer.

            — Quem é vivo sempre aparece, não é mesmo?

            Levantou os olhos, assustado. Logo, um sorriso brotou em seus lábios. Bastou apenas ver a silhueta conhecida: a pele morena, os cabelos escuros, lisos e volumosos, a barba mal feita, os trajes sempre desleixados.

            — Às vezes, é bom dar um sinal de vida.

            Abraçaram-se, amistosos.

            — Saudade de você, seu grande filho da puta.

            O hálito de Edgar cheirava à cerveja. Talvez a algumas outras bebidas alcoólicas também.

            — A recuperação meio que atrasa a nossa vida — Fergus respondeu, o tom retraído um pouco mais divertido.

            Edgar era e sempre foi o seu melhor amigo. Conviviam juntos desde o ensino infantil, separaram-se no primeiro ano, quando o rapaz saiu da escola onde estudou por grande parte da sua vida. Por mais complicado que fosse marcar encontros, frequentemente ambos se falavam. Tudo se resumia apenas a questões de tempo.

            — Estou numa rodinha bem legal, pessoas divertidas e tudo o mais. Gente inteligente, que se garante tocando. Quer ir até lá ou prefere fazer uma ronda para conhecer primeiro o local?

            Embora tímido, não estava com muita vontade de ficar caminhando. Ou talvez estivesse – poderia ser interessante ser guiado por um quase bêbado.

            — Por que não fazer os dois?

            Aceitou o convite para conhecer as companhias de Edgar. Antes, porém, deram um passeio pelo local, como sugeriu o amigo. Ter uma visão geral do evento foi interessante, divertido. O espaço – o pátio de um renomado hotel da cidade – estava repleto de pequenas e variadas rodas de violão, cada qual com seu estilo. Em alguns locais, realizavam-se shows de bandas conhecidas e, em outros, de conjuntos nem tão famosos. Havia odor concentrado de maconha e álcool em certos pontos. No geral, tudo era muito discreto e democrático. Diferente das últimas vezes em que frequentou locais da estirpe.

            — E aqui estamos nós — Edgar sorriu para o amigo antes de se voltar ao grupo — Estou de volta, pessoas! — disse sorridente, pegando a garrafa de cerveja do chão e dando um gole — Trouxe o meu caso secreto para vocês. Mas não olhem muito, porque os segredos dele na cama pertencem unicamente a mim!

            Fergus riu, virando os olhos. Edgar, de fato, ficava bêbado facilmente.

            — Fergus, pessoas. — apresentou, enrolando a fala — Pessoas, Fergus!

            O “oi” foi geral. Tímido, o rapaz apenas acenou.

            — Ah, mas falta alguém ainda! — exclamou o jovem ébrio, em um breve instante de lucidez — Onde está o Quartzo?

            — Eu não sei.— disse uma moça de dreads— Mas a irmã dele está ali.

            A garota apontou para um banco onde uma moça observava outro jovem tocar violão. Edgar sorriu cúmplice.

            — Vamos — disse, dando um pequeno tapa no peito de Fergus — Não perco qualquer oportunidade que seja de falar com a irmãzinha do Quartzo.

            Sem poder contestar, Fergus acompanhou o amigo, sendo arrastado por esse. Esperava apenas que Edgar não causasse situações constrangedoras.

            — Com licença!

            Os jovens interromperam suas atividades e levantaram os rostos para ver quem os chamava. Tempo necessário para Fergus sentir seu coração parar no peito.

            — Onde está o seu irmão?

            Jade Morgan. À sua frente.

            — Foi ajudar um amigo a trazer e montar uns instrumentos. Daqui a pouco, ele volta. É muito urgente?

            Por mais abafada que estivesse sua voz, continuava melódica como no dia em que a escutou falar pela primeira vez. Provavelmente, soasse ainda de maneira mais doce, visto que estava em um local íntimo e rodeada por amigos e conhecidos.

            — Não, não. — Edgar sorriu — Quero apenas saber se a área está segura o suficiente para poder me “deleitar” um pouco em sua beleza.

            A cantada era ridícula, mas Jade apenas franziu o cenho – não se mostrou incomodada.

            — Precisa melhorar seu arsenal de cantadas, garotão. — ela falou, levando a latinha de Coca Cola aos lábios — Assim, você não vai a muitos lugares.

            — Infelizmente, ela nunca vai me querer. — o rapaz suspirou, voltando-se ao amigo — Já levei mais de dez foras seus, Jade! Até quando vamos continuar assim?

            — Até o momento em que seu hálito estiver livre desse cheiro de álcool, meu amor. Volte a cheirar como gente, e poderemos nos resolver.

Nunca a imaginou falando coisas do gênero. Ainda assim, seus encantos não eram diminuídos pela acidez das suas palavras.

            — Ah, gente! — Edgar enlaçou os ombros de Fergus, desequilibrando-o. Parecia também não se importar com as tiradas da moça. — Esse aqui é o meu amigo, Fergus. Fergus, esses são... São... São...

            — Eu conheço você — ela voltou os olhos azuis para o acompanhante do ébrio, impedindo o jovem bêbado de terminar sua frase — Do colégio, né?

            Ele pôde sentir as faces arderem. Agradeceu ao fato de ter pouca iluminação no ambiente – um pouco mais de luz, e seu rosto vermelho seria motivo para chacota.

            — Creio que sim — respondeu, desconsertado.

            Jade sorriu – era a primeira vez que Fergus podia ver claramente o seu sorriso. E, como imaginou por noites insones, era resplandecente.

            — Você sempre vê minhas aulas. É impossível não me recordar.

            Mas talvez fosse mais fácil se ela não fosse tão direta.

            — Gosto de piano — tentava parecer tranquilo. Seria ridículo expor o quanto aquela moça mexia com suas emoções — Mas não tenho dinheiro para pagar aulas.

            Ela balançou a cabeça, fazendo o seu gracioso rabo de cavalo mexer.

            — Por que não se senta aqui?

*

            — Então você não é boa apenas no piano?

            Ela riu, os braços cruzados segurando as pernas.

            — Digamos que canto é o extra, e o violão a segunda opção — ela comentou, antes de dar mais um gole no refrigerante — A minha especialidade é realmente o piano.

            Fergus sorriu, levando a garrafa de cerveja à boca – o álcool o deixava menos tímido.

            — E você? — ela perguntou — Tem algum talento para o ramo musical?

            — Gaita, um pouco de bateria e um conhecimento básico de violão. Serve?

            — Serve, claro. — sorriu e lhe estendeu a mão— A propósito, meu nome é Jade.

            Fergus riu novamente.

            — Eu já sei seu nome. Jade Morgan, professora substituta de piano da minha escola, responsável pela parte instrumental do coral, lembra?

            — Mas descobriu por meio de outras pessoas. Essa é uma apresentação formal, eu acho.

            Olhou a mão estendida dela. Viu aqueles longos dedos, alguns com anéis prata, as unhas pintadas de carmim.

            — Prazer, Jade Morgan. Chamo Adriano, mas, se precisar, grite por Fergus. É assim que eu atendo.

            Ela franziu o cenho.

            — Fergus não é um nome muito comum — concluiu. — Algum motivo?

            — Ah. — ele sorriu — Bem, é apelido de infância. Não tem muita explicação, mas é assim que me chamam. Também gostaria de descobrir o porquê dele.

            — Podemos encontrar um motivo.

            — É. Talvez.

            Calaram-se novamente. Olhando para a garrafa quase vazia, Fergus perguntava-se, silenciosamente, na realidade daqueles instantes. Conversava com alguém a quem, de modo secreto, admirava. Quantas vezes não ensaiou uma possível conversa com Jade? Quantas vezes não se olhou no espelho e menosprezou-se, achando-se um moleque feio, desarrumado, sem postura e desprovido de parâmetros especiais para trocar palavras com a professorinha? Havia diferenças acentuadas entre eles, isso era inegável. Contudo, tornava-se incrível a maneira com a qual dialogavam.

            Saía tão natural.

            — De onde conhece o Edgar? — ele perguntou apenas para o assunto não morrer.

            — Ele é conhecido do meu irmão. Nos encontros em que eu o acompanhava, seu amigo estava lá. — riu — E, desde o primeiro momento em que nos vimos, ele me passa cantadas. Não sei até quando vai continuar assim.

            Era meio complicado pensar em Jade mantendo um relacionamento – sério ou não – com Edgar. Pareciam pessoas demasiadamente opostas.

            — Mas até que levo na brincadeira — a moça completou — Ele é uma pessoa muito divertida, falando sério ou não.

            — É. Nisso, eu concordo — bebeu mais um gole, encerrando, por fim, aquela garrafa.

            Passaram alguns minutos em profundo silêncio e mantiveram-se assim até a moça tomar a iniciativa:

            — E quando o assunto falta... É a hora da música.

            Ele voltou o olhar para ela, que sorria de modo cúmplice. Viu-a pegar o violão encostado no banco, apoiando-o nas pernas cruzadas.

            — Te dou o direito de escolher a música. — ela disse.

            — Acredite, o tipo de música que eu escuto nunca deve ter passado no seu som.

            Jade franziu o cenho.

            — Então diga o que você acha que toca em meu som, e te darei uma moeda por isso.

            Fergus deu de ombros.

            — Música clássica? — arriscou.

            Ela virou os olhos em uma expressão pensativa.

            — Também, também. Mas não tenho fixação só nisso. Tenho de expandir meus horizontes se quiser ir realmente adiante.

            — Hm... — ele desviou o olhar — E composições autorais? Você tem?

            — Algumas.

            — É isso que quero escutar.

            Jade abaixou a cabeça, uma tentativa quase frustrada de esconder o leve rubor das faces. Quando levantou o rosto, porém, assumiu a mesma postura segura e firme tão característica.

            — Não tenho as cifras — respondeu.

            — Por que não arrisca a me mostrar o que você está aprendendo, então?

            — Tudo bem. Apenas não ria.

            A graciosidade típica de Jade ao tocar o piano era a mesma ao violão, por mais que fosse ainda inexperiente no instrumento. A introdução de Wish You Were Here estava perfeita para quem havia começado há pouco tempo. Inspirado, Fergus resolveu acompanhar – conhecia a música perfeitamente bem. Pegando um violão largado no chão, responsabilizou-se pelos solos. Ela se surpreendeu pela atitude inesperada e, em retribuição, sorriu-lhe.

            Começaram a cantar juntos, e o encanto que Fergus tinha por aquela garota ia aumentando gradativamente. A moça tinha jeito, ginga, voz, poesia, talento – uma artista completa. Em qualquer caminho que escolhesse seguir naquele ramo, sair-se-ia bem. Em qualquer coisa que escolhesse, seria vitoriosa.

            Anestesiado – não apenas pela doce voz que entrava em seus ouvidos, como também pelo álcool em suas veias e pela sincronia estabelecida entre os dois –, Fergus se encostou ao banco, o granito frio contra a sua pele. Poderia passar horas intermináveis ali, sentado na grama, as pequenas folhinhas pinicando em sua perna, o cheiro de maconha pairando no ambiente, a leve vertigem ocasionada pelas doses de cerveja, sua voz se misturando à de Jade no ar. Não importava. Estava feliz, satisfeito ao lado de uma musicista nata.

            E, em especial, com a mente livre de qualquer pensamento.

2 de outubro de 2013          

            Ele olhou a arquitetura do hospital mais uma vez, antes de criar a coragem necessária para entrar. Nunca, naquele curto tempo em que estava lá, ir ao trabalho foi uma atividade tão difícil. Seu coração pulsava descompassado em seu peito. Sua cabeça estava confusa, e a razão ainda teimava em duvidar da aparente sorte. Sentimentos adormecidos insistiam em voltar à tona – ou seria apenas a desordem instaurada em sua mente?

            Por anos, almejou ter aquela chance. Idealizou o reencontro inúmeras e seguidas vezes, tentou acreditar  – mesmo com uma ínfima esperança – que a veria, pelo menos por mais uma única vez. Desejava tentar se redimir, de alguma forma, dos incontáveis males que causou. Pretendia conversar por longas horas, relembrando os belos momentos do passado e contando os fatos presentes. Se tivesse muita sorte, conseguiria abraçá-la e sanar a falta que aquele pequeno e frágil corpo lhe fazia.

            Porém, o tempo passou, mostrando que suas esperanças eram vãs e insustentáveis. Os anos se transcorreram sem lhe dar aquilo que mais almejava. O desejo de outrora fora brutalmente sufocado, esquecido, jogado num espaço sombrio e inalcançável de suas lembranças. 

            Fechou os olhos e esfregou a face cansada. Acreditou, por muito tempo, que estaria preparado para um possível encontro, se esse ainda viesse. Pensou ser corajoso o suficiente para expressar suas emoções reprimidas ou para falar tudo o que ensaiou mentalmente – frases formuladas com precisão. Todavia, a incerta possibilidade ali o mostrou que, de nada serviu ensaiar encontros casuais. Sempre estaria despreparado.

            A vida não deveria ser tão surpreendente assim.

            Respirou fundo e umedeceu os lábios com a língua. Tentando controlar as emoções aparentemente incontroláveis, entrou no hospital.

*

            As pessoas que passavam por ele nada mais eram que vultos aleatórios e apressados. Alguns enfermeiros e pacientes esbarravam em seu corpo que se movia contra a corrente de pessoas, porém suas preocupações os impediam de notá-los – quiçá pedir desculpas. Contudo, não se importava de ser empurrado ou jogado. Sua atenção se voltava única e inteiramente para os seus pés.

            Sua mente se perdia em devaneios e lembranças impregnadas em sua cabeça há mais de vinte e quatro horas. Algo que julgava adormecido estava despertando, e não sabia exatamente o que pensar ou como agir. Recordou-se do seu sofrimento longo e, praticamente, interminável. O tempo mostrou que sua ferida poderia ser curada, que ainda lhe restavam esperanças para levar a vida sem ser atormentado pelos fantasmas de outrora. Conseguiu se restabelecer com muito custo e olhar para outras garotas sem ver a imagem dela, sem se culpar por toda a dor e sofrimento que ocasionou, sem tentar se punir por seus erros. Apaziguou aquela melancolia, mas jamais a esqueceu.

            Após tantos anos, voltava a senti-la transpassando o seu peito, ferindo-o com a mesma e descomunal intensidade.

            Continuou andando até a ala de enfermeiros, tentando manter sua cabeça livre de quaisquer pensamentos que remetessem ao seu passado e aos últimos fatos. Lutou para restabelecer a sua razão – precisava fazê-la sobrepujar sobre todas as suas especulações e emoções.

            Entrou na ala de enfermeiros, convencido de esquecer suas dúvidas e seus martírios.

            Por favor, moço, o Adriano Alves... Adriano Alves.

            — Ele ainda não chegou, moça. Está atrasado vinte minutos. Mas, por favor, dirija-se ao seu quarto. Em suas condições, você não pode ficar aqui.

            Por mais que Adriano quisesse, não adiantaria colocar a razão em uma posição mais elevada, fazê-la subjugar a emoção ou suas indagações esperançosas. Aquela era uma luta que já havia sido ganha.

            Após tanto tempo, finalmente tivera a sua segunda chance.

            — Se por acaso o Adriano Alves em questão for eu, podem ficar tranquilos: já cheguei.

            A jovem se virou bruscamente, como se aquela grave e carregada voz houvesse ressoado várias oitavas acima do normal em seus frágeis ouvidos. Olhar aqueles olhos claros e penetrantes fizera-o afundar-se em uma imensidão na qual há muito não navegava, e reascendeu um sentimento que acreditava estar imerso em lembranças dolorosas.

            — Eu posso levá-la até o quarto dela — concluiu, ainda fixo nos olhos azuis.

            Ela o fitava, igualmente estarrecida. Pensaria, também, que aquele encontro fora obra de sua mente exausta? Que foram apenas os desejos guardados tomando formas imaginárias, satisfazendo-a? Daria tudo para decifrar o que se passava por aquela cabeça.

            A jovem assentiu, deixando que ele a conduzisse para o seu apartamento. Segurando o suporte para soro atrás dela, caminhava no mesmo ritmo lento e calmo da moça, sem pressa. A situação era irônica. Havia tanta coisa a ser dita, tanto a se perguntar e conversar... E, no entanto, prosseguiam calados, encenando perfeitamente seus papéis de enferma e enfermeiro. Quietos, como duas pessoas desconhecidas que nunca haviam trocado um mísero cumprimento.

            Mas, naquele estado, o que poderiam fazer? Entregarem-se a abraços e lágrimas saudosas, murmurarem como sentiam a falta um do outro? Seria insanidade. Suspirou, cansado. Para ele, nada havia mudado e, talvez, nunca mudasse. Sabia muito bem o que queria naquele instante, sabia o quão difícil estava sendo controlar seus gestos imprudentes. Todavia, para ela, possivelmente, as coisas haviam sofrido drásticas modificações. Constatar aquilo fizera o peito doer, mas precisava estar convicto do que desejava ignorar: anos haviam transcorrido. Já não mais eram os mesmos jovens de tempos passados.

            Chegaram ao apartamento dela. Entrando no quarto, auxiliou-a a sentar-se na cama e colocou o suporte no local de onde não deveria ter saído. Verificou se a transferência de soro continuava normal e analisou se a agulha não havia transfixado a veia. Certificando-se de que tudo estava bem e, sem encará-la, concluiu severo:

            — Não saia mais assim. Corredores hospitalares são suscetíveis a infecções de todos os gêneros, e não podemos permitir que seu quadro piore.

            Ela retirou a máscara branca, mostrando, por fim, a sua face. Os lábios finos e pálidos surgiram, contraindo-se em um sorriso sarcástico. O nariz pequeno e bem feito completava a harmonia do seu rosto de boneca – resquício esse que o tempo insistiu em preservar. Ele arquejou, o coração palpitando, ideias estapafúrdias surgindo em sua mente. Abaixou os olhos, contrito, lutando contra os desejos que seu corpo clamava. Encará-la seria a pior opção – e sentia-se plenamente arrependido por ter se dado o direito de fitar aquele rosto, como se tal gesto fosse uma heresia imperdoável.

            — Vai me passar apenas um carão, Adriano Alves? Esperava outra atitude de você.

            Embora não quisesse, não conseguia ordenar seus olhos. Furtivamente, encarava-a. A beleza de outrora continuava ali, escondida detrás da apatia causada pela doença. Os olhos azuis prosseguiam os mesmos: intensos, inquisitivos, superiores. O cabelo escuro e liso corria-lhe pela face, alcançando seus ombros, roçando-os. A franja jogada para o lado direito intensificava ainda mais sua superioridade.

            Era como se tudo houvesse mudado e, no fim, continuasse o mesmo.

            Ele riu, desconsertado, querendo manter seu profissionalismo acima de tudo.

            — Seu bom humor continua o mesmo, não é, Jade? — perguntou um pouco mais amistoso, mas não menos nervoso.

            — Ficar sem ele? Não, obrigada. Meu humor é uma das poucas coisas que ainda me mantém viva.

            — E o que você esperava de mim, agora? — a pergunta saiu sem que pudesse controlar. O sorriso esmoreceu, os olhos tornaram-se suplicantes. Queria escutar uma resposta que se assemelhasse pelo menos um quinto àquilo que também estava sentindo. Fitou-a, convencido de que não adiantaria sufocar os desejos que urgiam dentro de seu peito. Aquela fera era maior e mais forte que a sua força de vontade.

            — Um abraço, talvez.

            O coração palpitou mais rápido e, inevitavelmente, sorriu – não era o único a ter aquele desejo.

            — Acho que temos muito a conversar — afirmou, tentando se conter mais uma vez.

            Jade assentiu.

            — Quando? — perguntou.

            — Daqui a dois dias, mais ou menos, fico de folga. Você aguentaria até lá?

            — Para quem espera oito anos por um encontro casual, dois dias não significam muita coisa.

            Ele sorriu, desconsertado.

            — Preciso ir — disse, lembrando-se de que ainda tinha trabalho a fazer – por mais que sua vontade fosse ficar ali, olhando-a, estudando as poucas alterações que o tempo fizera em sua fisionomia — Farei o possível para vir aqui vez ou outra.

            Ela assentiu mais uma vez, sorrindo.

            — Até mais, Adriano.

            O enfermeiro abriu a porta. Antes, porém, escutou:

            — A propósito: gostei da mudança do seu cabelo. Gosto de cortes old school.

            Inconscientemente, ele levou a mão aos fios escuros, bagunçando-os, deixando algumas mechas desordeiras caírem sobre seu rosto. Sorriu e saiu do quarto, satisfeito.

            Os anos haviam passado, sim. Algumas coisas, entretanto, mantiveram-se intactas.

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