Capítulo 4

Os dias que se seguiram à minha recuperação foram uma dança cuidadosa entre a menina que eu deveria ser e a guerreira que era. Tulipa, fiel à sua palavra, conversou com meus pais sobre meu desejo de fortalecer o corpo e a mente após o incidente do veneno.

Para minha surpresa, ou talvez não, eles concordaram com uma facilidade tocante. A preocupação deles com minha saúde e segurança superava qualquer norma social que desaprovasse uma futura duquesa treinando combate. Meu pai até sugeriu que o treinamento poderia ser uma boa distração para minha mente, ainda abalada pela experiência.

Minha rotina se transformou. As manhãs eram dedicadas aos estudos, e eu absorvia cada informação com a voracidade de uma faminta. Lia sobre a história das grandes casas nobres, suas alianças e rivalidades. Estudava as leis do reino, as rotas comerciais, as guarnições militares em cada ducado. Cada pedaço de informação era uma peça no meu tabuleiro de xadrez, e eu estava traçando cada movimento de Milton e seus cúmplices.

Assim, fui descobrindo pequenos detalhes, principalmente sobre a Princesa Elara, a segunda na linha de sucessão, que havia renunciado ao seu direito ao trono. Ela é conhecida por sua fragilidade e sua devoção à arte e à fé. Havia um rumor antigo sobre um desapontamento amoroso que a levou a buscar refúgio em um convento distante, o que explicava sua renúncia no futuro. Eu preciso investigar isso. Uma peça fraca no tabuleiro pode ser virada contra seu dono.

As tardes, por outro lado, eram meu calvário e minha redenção. Meus pais arranjaram um instrutor de esgrima local, um velho cavaleiro aposentado chamado Sir Kael, que havia servido meu avô. Ele tinha um ar cético ao me ver, uma menina de corpo frágil, pedir por treinamento com a espada. Ainda me lembro do nosso primeiro treino.

— Jovem senhorita, a espada não é um brinquedo. Ela pesa. Ela corta. — seu semblante era sério, observando-me dos pés à cabeça. Corta, eu sei. Eu já vi cortar mais do que você pode imaginar, velho. Pensei. Sorri de forma inocente.

— Estou pronta para o desafio, Sir Kael. Quero ser forte. — Ele suspira, entregando-me uma espada de madeira leve.

Ao pegá-la, senti a leveza e a fragilidade, um contraste doloroso com o peso familiar do aço em minhas mãos na vida passada. Meu corpo infantil lutava para manter a postura correta, minhas pernas ainda instáveis, meus braços tremiam com o peso. Sir Kael balançava a cabeça, claramente duvidando da minha determinação. Apenas sorri, um sorriso que escondia a frustração e a determinação implacável que me impulsionava.

Eu me dedicava aos exercícios físicos com uma ferocidade que assustava Tulipa. Corridas diárias, flexões, agachamentos – tudo o que podia para fortalecer meus músculos atrofiados de criança. A dor era excruciante no início; meus músculos protestavam a cada movimento, mas eu a acolhia. É uma dor limpa, diferente da agonia do fogo e da traição. Cada gota de suor, cada músculo latejante, era um passo para recuperar a Kendra que eu era, a General.

Minha mente, que inicialmente parecia enferrujada, começava a se afiar novamente. A cada dia, mais detalhes da minha vida passada vinham à tona, como peças de um mosaico que se reconstruíam lentamente. Relatórios de batalha, planos de cerco, os rostos dos meus homens, os gritos do campo turbulento. Tudo. O veneno, ou o que quer que tenha me trazido de volta, parecia ter desbloqueado memórias que eu sequer sabia que existiam. Depois de tanto treino, estava quase pronta.

Nessa noite, escondida sob os cobertores, iluminada por uma luz mágica, desenhei no verso de um mapa antigo as rotas de ataque dos Lobos Brancos na minha linha do tempo. Marquei com um "X" onde o primeiro grande ataque ocorreu. Olhei para o mapa do presente. Não batia. Havia algo mais.

Enquanto passava os olhos pelo mapa, lembrei-me dos túneis de contrabando que os Lobos Brancos usavam para se mover rapidamente pelas montanhas sem serem detectados – pelo menos isso era o que acreditava antes de voltar. Eles foram descobertos apenas anos depois, quando o Império já os havia dizimado. O relatório dizia que eram túneis dos Lobos Brancos; agora, já não tenho tanta certeza.

Eles não estão atacando dali. Estão sendo levados para lá. Alguém os está guiando para esses pontos. Ou pior... alguém os está fazendo parecer que estão ali. A informação sobre a cidade portuária dizimada martelava em minha mente.

— Todos culpam os lobos brancos, mas é impossível, já que eles estão no norte agora. — Isso. Os ataques são muito distantes dos pontos de migração dos Lobos Brancos. Minha intuição de general, que nunca me falhava em campo de batalha, gritava que havia algo mais. Eles não eram os perpetradores daquela matança, mas as vítimas de uma conspiração. Saí de baixo das cobertas com tudo, assustando Tulipa, que cochilava na poltrona ao lado da cama.

— Tulipa, os Lobos Brancos... eles são caçadores ferozes, não são?

— Sim, senhorita. Mas dizem que são um povo honrado, que só lutam para proteger os seus. Meu avô sempre disse que nunca viam a tribo dos Lobos atacar sem motivo. — disse ela, enquanto esfregava os olhos de maneira sonolenta. Honrados. Eu matei um povo honrado. A culpa pesava, um fardo que eu carregaria até conseguir a redenção.

— E eles vivem nas montanhas geladas, certo? Como sobreviveriam num lugar tão diferente como uma cidade portuária? — pergunto de maneira quase eufórica.

— Eu... eu não sei, senhorita. Acho que eles são muito adaptáveis. — Tulipa franziu o cenho, pensativa.

Não, não são. Isso é uma farsa.

Eu sei que não posso confrontar Milton ou Sofia diretamente ainda. Precisava de provas irrefutáveis e de força para agir. Aquele incidente com o veneno é a chave. Ele me deu a desculpa para minhas mudanças de comportamento e meu foco no treinamento. Então, irei me dedicar ao meu treino.

E então, pegar as raposas pelas caudas.

◇◆◇

Os dias se estenderam em semanas. Meu corpo, embora ainda não fosse o da general, estava respondendo. Meus músculos estavam mais definidos, minha resistência aumentou, e os movimentos com a espada de madeira começaram a fluir com uma familiaridade reconfortante. Sir Kael, no início cético, agora me olhava com uma expressão de surpresa e, às vezes, até mesmo respeito. Ele não sabia o que eu sabia, mas via o fogo da determinação em meus olhos.

Um mês após meu renascimento, o ducado já se ajustara à minha nova rotina. Meus pais pareciam aliviados em me ver tão dedicada, acreditando que a atividade física me distraía dos pesadelos da doença. Eles não sabiam que meus pesadelos eram, na verdade, memórias vívidas de um futuro que eu estava desesperada para evitar.

Em uma tarde ensolarada, o suor escorria pelo meu rosto enquanto eu treinava no campo particular do ducado. O cheiro de terra molhada e grama recém-cortada pairava no ar. Sir Kael observava cada um dos meus movimentos, corrigindo minha postura, aprimorando meu passo.

— Mais força no golpe, senhorita! Sinta a espada como uma extensão do seu corpo! — ele instruiu.

Minha mente se fechou para tudo, exceto o movimento, a respiração. Executei uma sequência de golpes e defesas, a espada de madeira girando em minhas mãos com uma precisão que, aos poucos, voltava a ser a minha. Essa sou eu; aquela era eu. Sir Kael, vendo a determinação inabalável em meus olhos, assentiu lentamente.

— Está pronta para o próximo passo, senhorita Kendra. — ele disse, sua voz mais séria do que o habitual.

Ele se afastou e, de um suporte próximo, pegou uma espada de treino de aço, embotada nas bordas, mas com o peso real do metal. Meu coração deu um salto. Era a primeira vez que seguraria uma arma de verdade desde que retornei. Engoli em seco, em ansiedade.

Abaixei a espada de madeira e estendi a mão. A empunhadura fria do cabo na minha palma. O peso era diferente do que me lembrava com este corpo, mas a sensação familiar de poder percorreu meus braços. Fechei os olhos por um instante, respirando fundo. O metal gelado contra meus dedos. A vibração em meus pulsos. Era como se uma parte perdida de mim mesma tivesse finalmente retornado.

Abri os olhos, a espada em punho, e olhei para Sir Kael. Não havia mais a menina. Havia a General. Meu sorriso era um misto de alívio e uma promessa sombria. O jogo de Milton estava prestes a mudar. Eu estou pronta para entrar nesse embate.

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