O peso da espada de aço em minhas mãos era um lembrete constante da tarefa que tinha pela frente. Meus treinos com Sir Kael se intensificaram. Cada movimento era executado com a precisão de um coreógrafo, mas com a letalidade de um predador. O velho cavaleiro, outrora cético, agora me olhava com uma admiração silenciosa, percebendo que a recuperação da jovem duquesa era, na verdade, um despertar. Eu me sentia mais forte a cada dia, a memória muscular de General Kendra retornando, sobrepondo-se à fraqueza do meu corpo infantil.
Mas força física não seria o suficiente. Eu precisava de aliados, e rápido. A data do ataque dos Lobos Brancos se aproximava, e minha intuição gritava que a situação era ainda mais urgente do que parecia. A única maneira de evitar a carnificina era interceptá-los, de alguma forma, antes que Milton pudesse usá-los como bode expiatório. E isso significava encontrá-los. A ideia era audaciosa, beirando a loucura para uma menina de quatorze anos. Eu, Kendra, a General que os havia dizimado em minha vida passada, agora buscava uma aliança com eles. Era o preço da minha redenção, a única chance de corrigir os erros que me assombravam em meus sonhos. — Tulipa, prepare-se — digo após a saudação da manhã, com um sorriso inocente. — Mamãe e papai finalmente me deixaram sair. — Isso é maravilhoso, senhorita! — Os olhos dela brilharam com entusiasmo; afinal, se eu não saía, ela também ficava presa ali. — Vamos visitar a cidade hoje. Acho que um passeio pelas lojas me fará bem depois de tanto tempo reclusa. — O sorriso dela se abriu instantaneamente. — Ah, sim, senhorita! Seria maravilhoso! Faz tanto tempo que a senhorita não sai! Que não usa um vestido bonito. — Ela começou a vasculhar o quarto, e em pouco tempo voltou com os braços cheios de roupas e chapéus. Talvez estivesse aliviada em me ver interessada em atividades típicas de uma jovem dama. Mas eu teria que tirar um pouco da paz dela, porque essa saída não era tão simples. Tudo fazia parte dos meus planos de me encontrar com o líder dos Lobos Brancos. Ela ficaria muito desesperada quando eu sumisse. Após escolher uma roupa confortável entre as diversas cheias de babados que Tulipa havia trazido, peguei meu cinto e espada. Mesmo sob seus protestos. Um espadachim nunca sai sem sua espada, esse é um ensinamento de Sir Kael. Quando estávamos para sair, mamãe e papai vieram para se despedir. Talvez vissem essa saída como um sinal da minha plena recuperação. A carruagem balançava suavemente enquanto atravessávamos os portões da casa ducal. O ar da cidade era vibrante, cheio de cheiros de pão fresco, especiarias e o burburinho de vozes. Lojas coloridas exibiam seus produtos, artesãos trabalhavam em suas bancas, e crianças corriam pelas ruas. É uma cena de paz, uma que eu jurara proteger a qualquer custo. Na praça principal, uma feira colorida estava montada. Frutas frescas, tecidos vibrantes e joias brilhavam sob o sol. O local perfeito para dar início ao plano. — Olhe, senhorita! Aqueles broches de fênix! Não são lindos? — ela estava realmente encantada com as coisas enquanto andávamos. Distração. Eu precisava de uma distração. Uma eficiente para atrair até os dois cavaleiros atrás de mim. — São sim, Tulipa. Por que você não vai dar uma olhada neles? Eu vou ficar por aqui, observando o movimento. — Ela me encarou. Peguei duas moedas e lhe entreguei. Tulipa, com os olhos brilhando de curiosidade por meu gesto, assentiu e se afastou. Eu sabia que ela me encontraria em breve, mas o tempo era precioso. Meu coração batia forte. Eu tinha que ser rápida. Com Tulipa distraída, meus olhos varreram a multidão, procurando uma rota de fuga discreta. Eu me lembrava dos pontos cegos da cidade, dos becos e passagens secretas que cavaleiros usavam para patrulhas rápidas. Minhas pernas, fortalecidas pelo treinamento, estavam prontas para correr, mas os guardas ainda tinham seus olhos em mim. — O que é aquilo? — Apontei em uma direção onde um pequeno tumulto se formava, e os dois guardas olharam. Avistei um beco estreito entre duas lojas de especiarias. Era escuro e raramente usado por civis. Perfeito. Sem hesitar, e com uma velocidade surpreendente para uma jovem lady, me esgueirei para dentro, ainda bem que vesti algo leve. O cheiro de lixo e umidade preencheu o beco, mas eu mal notava. Minha mente estava focada em despistar os dois em meu encalço. Voei pelos becos, meu coração batendo uma marcha apressada, meus olhos procurando a saída da cidade mais próxima da mata. Eu conhecia a geografia como a palma da minha mão agora, não tinha como estar enganada. — Senhorita Kendra! Onde está? Notaram que sumi. Logo os guardas estariam em todas as direções. Corri rumo ao portão, desviando-me de carroças, vendedores e transeuntes surpresos, até chegar aos limites da cidade. Ali começava a transição do calçamento para a terra batida. Respirei fundo o ar puro, com o cheiro de pinheiros e terra. À minha frente, a mata se erguia, densa e convidativa. O mapa que eu havia memorizado estava claro em minha mente. Os Lobos Brancos não estariam no coração do território do ducado, mas sim nas franjas, onde as fronteiras se encontravam com as terras selvagens. Eu sabia que eles haviam sido atraídos para cá, e a única forma de descobrir quem os manipulava era ir até a fonte. Adentrei a floresta, o som dos pássaros e o farfalhar das folhas sob meus pés abafando o burburinho da cidade que ficava para trás. O ar ficou mais frio à medida que eu me aprofundava na mata, e a luz do sol se filtrava em feixes, criando um caminho sombrio à minha frente. Eu me movia com a cautela de uma caçadora, meus sentidos aguçados, os ouvidos atentos a qualquer som incomum. Minhas lembranças dos confrontos com os Lobos Brancos eram vívidas: sua destreza na floresta, seus gritos de guerra que gelavam o sangue, seus olhos selvagens. Eu havia lutado contra eles, os considerado inimigos implacáveis. Agora, eu estava indo ao encontro deles, quase desarmada e vulnerável, uma criança em seu território. Era um risco imenso, mas necessário. Continuei por horas, minha respiração ofegante, mas minha determinação inabalável. O sol começava a se pôr quando avistei o que procurava: uma fumaça tênue se elevando por entre as árvores, o cheiro de madeira queimada e carne selvagem. Era um acampamento. E não era um acampamento de bandidos comuns. O cheiro de fumaça tinha um tom distinto de ervas e pele animal, diferente do fogo comum. Era o cheiro deles. Aproximei-me com a máxima cautela, meus passos quase inaudíveis. Os sons ficaram mais claros: vozes guturais, o estalar de uma fogueira, o uivo distante de um lobo. Esgueirei-me entre os arbustos densos, meu coração batendo como um tambor de guerra, até ter uma visão clara. Eles estavam ali. Guerreiros robustos, com peles distintas, couros de animais nos corpos e rostos marcados por tatuagens tribais. Seus olhos, mesmo à distância, pareciam brilhar com uma ferocidade ancestral. Um deles, visivelmente maior e mais velho, com uma cicatriz que cortava o rosto, falava com um grupo. Esse era o líder, eu sabia pelo grande símbolo em sua testa. Mas não era aquele que eu, em outra vida, havia derrotado e aprisionado. Eu os observei por um longo momento, a tensão vibrando no ar. Esse é o povo que eu havia aniquilado. E agora, estou aqui, uma menina que se recusa a ser uma vítima novamente, buscando uma aliança com os mesmos a quem havia entregue a morte. Respirei fundo, sentindo o ar frio da floresta em meus pulmões. Era agora ou nunca. Lentamente, ergui-me dos arbustos, saindo da escuridão da mata para a clareza do acampamento. Meus olhos fixaram-se nos deles, e a primeira flecha voou, zunindo perto do meu ouvido. Engoli em seco. Eu sabia o que fazer, mas meu corpo parecia não saber, isso era estranho. A segunda flecha zuniu, uma saudação nada amigável, e cravou-se na árvore ao lado da minha cabeça, diferente da anterior que caiu aos meus pés, vibrando com um protesto irritado. Minha antiga eu teria sacado uma espada e devolvido o favor com juros. Minha eu atual, com um corpo de quatorze anos, tinha uma estratégia mais… sutil. E infinitamente mais ridícula, para ser honesta. Era a hora do Grande Desmaio Dramático. Eu já havia pensado nisso. Ser uma criança tinha suas desvantagens óbvias em combate, mas uma enorme vantagem em termos de manipulação. Ninguém esperaria que uma jovem lady desmaiada fosse uma lutadora. O guerreiro que atirou a flecha, um gigante com uma cicatriz no olho e uma expressão que faria um urso hibernar de medo, deu um passo à frente, seguido por outros. Suas armas estavam prontas, seus olhos fixos em mim. Fiz menção de recuar. O líder, o velho guerreiro cicatrizado, observava de longe. Dei mais alguns passos para trás, recostando-me na árvore; espero estar parecendo acuada. Respirei fundo, com um sorriso mental irônico. Que os deuses da comédia me guiem nesse teatro. Minhas pernas, que momentos antes me sustentavam com a determinação de uma fênix renascida, de repente ficaram gelatinosas. Meus olhos, aqueles que viam a verdade por trás das mentiras de Milton, agora se arregalaram em um terror simulado. Levei uma mão ao peito, sentindo o batimento cardíaco acelerado — que era genuíno, diga-se de passagem, porque ser capturada por uma tribo feroz dos Lobos Brancos não estava totalmente no meu plano de férias na natureza. — Oh... céus... — balbuciei, minha voz propositalmente trêmula e fina, como a de uma donzela em apuros, e não de uma ex-general com um histórico de aniquilação tribal. Meu corpo começou a balançar, cambaleando como um tronco prestes a cair. Senti o olhar confuso dos guerreiros sobre mim. Eles deviam estar pensando: "Que tipo de ser patético se enfia no nosso acampamento só para desmaiar?" O grande guerreiro com a cicatriz no olho abaixou sua arma ligeiramente, uma ponta de desdém ou talvez até mesmo aborrecimento em seu rosto. — O que é isso, criança? — ele rosnou, a voz grave como o troar de uma tempestade. Eu já estava quase lá. Minha visão começou a borrar de propósito. Eu não estava simulando fraqueza; estava fazendo uma grande peça. Era preciso ter convicção em cada tremor, cada suspiro final. — Eu... eu... — murmurei, e então, com um suspiro exagerado que faria qualquer atriz de teatro chorar de inveja, meus olhos reviraram e eu desabei graciosamente no chão, como um saco de farinha que perdeu toda a sua consistência. Não uma queda desajeitada, mas um colapso digno de um drama teatral. Eu me certificaria de que meu corpo caísse de uma forma que fosse fácil de ser carregado, é claro. Planos têm que ser práticos. Recostada na árvore. O silêncio caiu sobre o acampamento. O cheiro de carne assada e fumaça ainda permeava o ar, mas agora havia uma pontada de incredulidade. Pude ouvir sussurros guturais entre os guerreiros. Alguns riam. — Ela... desmaiou? — ouvi um deles perguntar, a voz cheia de ceticismo. No meu caminho até aqui fiz questão de me sujar, como uma jovem lady raptada. Machuquei um pouco os braços e pernas, além de pequenos arranhões pelo rosto. — Parece que sim. Que criatura estranha... — respondeu outro. — O Truid assustou-a até a morte. — As risadas vieram de todos os lados. Continuei parada, alheia a tudo. Alguém se aproximou cautelosamente. Não parecia convencido. Mantive-me imóvel, regulando minha respiração para parecer rasa e irregular. Era crucial que eles acreditassem. A pessoa se ajoelhou, o rosto a poucos centímetros do meu. Seus olhos me escrutinavam. Por um segundo, tive medo de que ele percebesse a farsa. Mas então, bufou, um som que parecia mais de cansaço do que de bravo. — Que problema... uma criança do lado de fora de nossos limites. — murmurou para si mesmo, antes de se dirigir aos outros. — Levem-na para o nosso curandeiro. Vejam se ela está realmente doente, ou se é alguma armadilha patética de Fênix. Senti braços fortes e cautelosos me levantarem do chão. Não abri os olhos, mas permiti que meu corpo fosse carregado. O plano estava funcionando. Eu estava dentro. O caminho para a redenção, e para a vingança, acabara de ficar um pouco mais complicado, e com um toque irônico. Mas eu já podia passar para meus próximos passos. ◇◇◆◇◇