Capítulo 3

Há vários dias venho me aprofundando em pesquisas das notícias de ataques e furtos dos últimos anos, e tudo que vivi até minha morte faz mais sentido agora. Os vários companheiros que perdi, as incontáveis vidas que tirei… Tudo isso me faz querer aniquilar os perpetradores dessa situação. A raiva borbulhava em minhas veias. Não era a fúria cega de uma jovem que acaba de ser traída, mas o ódio frio e calculado de uma guerreira que havia sido enganada e usada como ferramenta para a destruição.

Milton não era apenas um traidor; ele era um monstro, um manipulador que sacrificava inocentes para pavimentar seu caminho ao poder. E eu, Kendra, a grande General, havia sido sua cúmplice involuntária. As lembranças dos rostos dos Lobos Brancos que matei, das vilas nômades que incendiei em nome de uma justiça que não existia, assombravam-me agora com uma intensidade sufocante.

Agarrei o último jornal amassado em minhas mãos, sentindo o papel rasgar. Esse é de dois dias atrás: uma cidade portuária no leste foi quase dizimada por um ataque. Todos culpam os lobos brancos, mas é impossível, já que eles estão no norte agora. Se minhas análises de padrões estiverem certas, eles devem estar entrando na fronteira dos ducados neste exato momento.

É uma prova irrefutável. Os padrões de ataque dos Lobos Brancos não batem com os de migração. Eles são protetores da natureza, leais, e só atacam quando provocados. A localização dos recentes avistamentos, tão distante de suas rotas habituais de migração, é a cereja do bolo. Não é uma questão de escassez de alimentos; é uma armadilha. Milton, ou talvez Sofia, estão orquestrando tudo.

Minha cabeça lateja com as memórias. A morte do Príncipe Herdeiro, o irmão mais velho de Milton, em circunstâncias misteriosas. A renúncia súbita da segunda princesa, que abriu caminho para Milton se tornar o herdeiro. Tudo se encaixava agora, como peças de um quebra-cabeça macabro. Eles haviam limpado o caminho, eliminando qualquer obstáculo. E eu, na minha vida anterior, dancei na palma da mão deles, cega pelo amor e pela ambição de servir ao reino. Que ironia amarga.

A náusea voltou, mas dessa vez, não a reprimi. Fui até a bacia de água fresca que Tulipa havia deixado pela manhã e vomitei o pouco que havia em meu estômago. Minhas mãos tremiam, mas não de medo; de uma raiva implacável que agora me impulsionava, me fazendo querer saber mais.

— Eu não serei uma ferramenta novamente — sussurrei para o reflexo turvo na água. Meus olhos, com aquele brilho dourado peculiar, pareciam mais ferozes do que antes. — Desta vez, sou eu quem dará o primeiro passo.

O primeiro passo é evitar o ataque aos ducados e, consequentemente, o levante dos Lobos Brancos. Mas como? Eu não podia simplesmente ir até meus pais e dizer: “Pai, mãe, o terceiro Príncipe é um assassino e está orquestrando um massacre para ganhar poder.” Eles me internariam em um hospício, ou pior. A notícia poderia chegar ao Príncipe Milton, que os faria acreditar que eu estava insana.

Eu sou apenas Kendra, a filha que acaba de se recuperar de uma doença misteriosa, para os outros. Preciso de uma maneira de intervir sem relatar ao meu pai, sem a presença dos nobres, pelo menos por enquanto. Afinal, se o Príncipe já começou seus planos, ele pode muito bem mudá-los para poder tirar uma pedra do seu caminho.

— Tulipa! — chamo, minha voz mais controlada agora, mas com uma urgência que ela certamente sentiria. Quando ela entra, eu já estou sentada no beiral da janela, olhando para o horizonte.

— Sim, senhorita? — respondeu, com um leve tremor na voz. Acho que me exaltei um pouco. Suspiro.

— Eu preciso aprender a lutar — digo, sem mais rodeios. — Não quero ser uma donzela indefesa. O incidente do veneno me fez perceber que o mundo não é um mar de rosas. Quero me defender. Quero ser capaz de proteger a mim e a este ducado, se necessário.

Tulipa me encarou, os olhos arregalados. Uma jovem duquesa pedindo para aprender a lutar é algo fora do comum. Mas é a desculpa perfeita. Meus pais, preocupados com minha segurança após o ataque com veneno, vão ceder ao meu pedido facilmente. E, mais importante, vai ser o primeiro passo para recuperar minhas habilidades de General.

— Senhorita, tem certeza? É um treino rigoroso — começa.

— Nunca estive tão certa de algo na minha vida — a interrompi, olhando em seus olhos. — Você vai me ajudar a convencer meus pais? Diga que é para minha saúde, para me fortalecer, para me preparar para os desafios do mundo.

— Mas como eu, uma simples serva, poderia fazer algo assim? Senhorita! — Ela me observou por um longo momento, talvez tentando decifrar a nova pessoa à sua frente. Após o que pareceu um longo tempo, ela suspirou e assentiu. — Farei o que puder, senhorita.

— Muito obrigada, Tulipa — sorri involuntariamente. Já estou pronta para começar minha aventura e incendiar o mundo. Como uma fênix renascida.

A determinação ardia em meu peito, um fogo que queimaria as ilusões e a traição de Milton e Sofia. Mas, por um breve momento, enquanto o sol se punha, tingindo o quarto de tons alaranjados e Tulipa se retirava para cumprir meu pedido, minha mente cansada buscou refúgio. Encostei a cabeça na viga de madeira da janela, observando os raios de luz.

Fechei os olhos, o som distante dos serviçais e o cheiro das rosas do jardim se misturando, e fui transportada para um tempo antes da guerra, antes da dor, antes da traição. Um tempo muito mais distante do que consigo me lembrar.

Não é um sonho, mas uma memória vívida, tão real quanto o ar que eu respiro agora. Na imagem, eu tinha talvez uns dez anos. Meus cabelos eram de um castanho avermelhado vibrante, caindo em ondas até a cintura, ostentando um laço enorme na tiara vermelha, e meus olhos esverdeados brilhavam com uma inocência que hoje me é estranha.

Não havia o brilho dourado ou as mechas de cobre e prata que agora adornam meu reflexo. Eu era apenas uma menina, sem as cicatrizes visíveis ou invisíveis. Corria pelo mesmo jardim onde fui envenenada, os pés descalços na grama úmida da manhã, perseguindo borboletas coloridas. Risadas ecoavam, leves e despreocupadas por todo o lugar.

— Kendra, devagar, minha pequena borboleta! — a voz de minha mãe, melodiosa e cheia de carinho, flutuava pelo ar. Ela estava sentada sob uma árvore, com um livro nas mãos, o sol pontilhando seus cabelos. Ao lado dela, meu pai, deitado na grama, contava histórias de dragões e princesas, sua voz grave e acolhedora. Enquanto eu corria de um lado a outro, ouvindo sua voz e interpretando a história de maneira inocente.

Eu caí, ralei os joelhos, mas a dor era insignificante diante da alegria de estar ali. Meu pai se levantou rápido e correu até mim, erguendo-me nos braços. Dei risada, e sua feição de alívio era visível; ele começou a me girar no ar, e eu ri, uma risada cristalina que parecia vir de um mundo distante. Minha mãe veio ao nosso encontro, limpando a terra de minhas roupas e dando um beijo em meu pai, em seguida beijando minha testa.

— Um dia, você será uma grande mulher, minha filha — disse de forma doce, os olhos cheios de orgulho. — Com um coração tão puro quanto o ouro e uma coragem que moverá montanhas.

Nessa lembrança, eu não era a General sanguinária, nem a noiva traída. Era apenas Kendra, amada pelos meus pais e me sentindo segura. Eu me aninhava entre eles, sentindo o calor de seus corpos, o cheiro familiar de terra e rosas do meu pai, o perfume suave de lavanda da minha mãe. Um local seguro.

— Eu amo vocês — sussurrei, minha voz infantil mal audível, mas carregada de uma verdade que parecia abraçar o mundo inteiro.

Meu pai me apertou em seus braços, e minha mãe afagou meus cabelos, seus sorrisos tão amplos e cheios de felicidade. Por um instante, toda a dor, toda a raiva, toda a amargura da minha vida passada se dissipou, substituída por essa paz tão avassaladora. Por um amor transbordante.

O calor da lembrança me envolveu, um conforto tão profundo que desejei permanecer ali para sempre. Mas a realidade, como uma onda fria, começou a me puxar de volta.

Meus olhos se abriram. Estou de volta ao quarto, o sol já se pondo, tingindo as cortinas de um vermelho intenso. A bacia com água, onde havia vomitado minutos antes, ainda está ali, lembrando-me da dura realidade. A paz da memória se esvai, mas deixa para trás algo novo: a renovação da minha determinação. Eu os amo. E por esse amor, vou mudar o destino.

Mesmo que para isso tenha que morrer de novo.

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