— Eu quero o divórcio, Ayla. Essas palavras caíram como uma bomba logo após eu acordar de um coma e descobrir que havia perdido meus filhos naquele acidente de carro. Perder. Eu estava perdendo muito ultimamente: meus filhos, meu marido, meu emprego, minha melhor amiga… tudo o que me restava era o fundo do poço. Ou o Inferno, como se chamava a boate de striptease onde me vi forçada a trabalhar. Talvez a única maneira de parar de perder fosse… acabar com tudo. — Não! Não faça isso! Por favor, desça daí. Voltei-me para o dono daquela voz imponente, que me chamava de volta à vida. Mas era tarde demais. Eu já estava caindo. — Eu... eu estou morta? — Por enquanto, sim. Mas nem tudo está perdido. Pode ter uma segunda chance. — O que você quer de mim? — Você terá sua família de volta, mas primeiro, você deve salvar a família dele. — Quem é ele? — Esse homem, Nicolas, está prestes a entrar na sua vida. Ele será tanto a chave para sua redenção quanto o maior desafio que você já enfrentou. Está pronta para voltar? — Sim. O tempo se dobrou sobre si mesmo, como uma fita antiga sendo rebobinada em velocidade máxima. E, de repente, eu estava novamente no topo daquele prédio, nos braços do homem cujo caminho se entrelaçava com o meu. Mas... agora que eu tinha uma nova chance de refazer tudo, por onde eu começaria? Eu seguiria o caminho do amor... ou da vingança?
Leer más~AYLA~
A escuridão ainda pairava sobre mim quando meus sentidos começaram a despertar, como se eu emergisse lentamente de um oceano profundo. Algo frio e metálico pressionava meus dedos, e uma leve dor pulsava em meu braço esquerdo. Meu corpo estava pesado, rígido, como se estivesse acorrentado a uma realidade que eu não reconhecia. O som de um monitor cardíaco preenchia o silêncio, cada bip uma âncora, forçando-me a enfrentar o que quer que estivesse além da névoa.
Luz branca. Brilhante demais. Tentei abrir os olhos, mas a claridade me atingiu como uma lâmina, me obrigando a fechá-los novamente. As vozes ao meu redor eram abafadas, distantes, como se viessem debaixo d'água.
Minhas mãos formigavam levemente, e o frio do lençol contra minha pele fazia tudo parecer ainda mais estranho, mais real. Passos apressados ecoavam ao redor, mesclando-se ao som baixo de vozes. Cada detalhe do ambiente parecia gritar para mim que algo terrível havia acontecido, mas minha mente ainda estava presa na névoa.
— Ela está acordando... — uma voz feminina cortou o ar. Havia urgência em seu tom, mas também algo tranquilizador. Passos rápidos ecoaram pelo ambiente, aproximando-se de onde eu estava.
Meus pensamentos eram fragmentos desconexos, como peças de um quebra-cabeça que alguém jogara ao vento. Onde estou? Por que não consigo me mover? Minha boca estava seca, minha língua parecia feita de papel, e meus ouvidos captavam palavras soltas, que não faziam sentido: coma, quase um mês. Era como se eu estivesse tentando alcançar uma memória que se recusava a ser lembrada.
O toque gelado do metal contra minha pele me trouxe um fio de lucidez. Minha mente tentou se agarrar a isso, e então, sem aviso, algo mais forte veio à tona. Lembranças. Fragmentos. Imagens de um dia que parecia tão próximo, mas também absurdamente distante.
O cheiro do chão de madeira encerado. A luz do sol entrando pelas janelas. A música.
Eu estava em casa. O dia era claro, tranquilo, com o céu limpo. O som animado da minha playlist favorita ecoava pelos cômodos enquanto eu deslizava pelo chão, dançando. Sempre foi assim para mim. Não importava o que acontecesse, a dança era minha válvula de escape, minha forma de existir. Meu corpo respondia a cada batida como se aquilo fosse tão natural quanto respirar.
Lembro-me de estar limpando a sala, rodopiando com o pano na mão ao som de uma música contagiante. Era minha rotina: as manhãs ensinando balé para crianças, vendo aqueles rostinhos brilharem ao dominar um novo movimento, e as tardes em casa, cuidando de tudo com música e dança. Não era só um trabalho. Era quem eu era.
Estava completamente imersa quando a chave girou na porta, quebrando minha bolha de concentração. Olhei para a entrada e vi Miguel, meu marido, chegando mais cedo do trabalho. Um sorriso largo surgiu no meu rosto.
— Miguel! — larguei o pano no chão e corri até ele, pegando sua mão e o puxando para o centro da sala. — Vamos, dança comigo!
Ele riu, aquele sorriso meio contido que sempre me encantou, desde que nos conhecemos cinco anos atrás. Miguel nunca foi o tipo que dançava, mas gostava de me observar. Era isso que equilibrava nosso relacionamento: minha explosão de movimento e expressão, e sua calmaria silenciosa.
— Você sabe que eu sou péssimo nisso, Ayla — disse ele, rindo, enquanto eu rodopiava ao redor dele, leve e despreocupada.
Ele me puxou suavemente e depositou um beijo em minha testa. O calor daquele momento ainda estava fresco em minha memória.
— Mas continue... — sussurrou, sentando-se no sofá. — Eu gosto de te ver dançar.
Continuei, deixando a música me levar. Meu corpo parecia flutuar, os pés quase não tocavam o chão. Era sempre assim quando eu dançava: o mundo desaparecia. Tudo o que importava era a música, o movimento, a liberdade.
Quando a música terminou, me joguei no colo dele, beijando-o com paixão. Ele retribuiu, mas algo estava diferente. Seus olhos carregavam uma inquietação que eu não conseguia interpretar.
— O que foi? — perguntei, tentando recuperar a leveza do momento.
— Só... problemas no trabalho — respondeu, suspirando. — Não estou me sentindo muito bem hoje — Antes que eu pudesse insistir, ele entregou as chaves do carro. — Você pode buscar as crianças na escola? — pediu, com um tom cansado.
— Claro, vou agora mesmo. — Sorri, tentando animá-lo. — Mas, quando eu voltar, continuamos de onde paramos, certo?
Ele riu, mas sem a usual energia. Peguei minha bolsa e saí, ainda leve, com o coração tranquilo. O sol brilhava intensamente quando entrei no carro e dei partida.
A lembrança terminou abruptamente, cortada por uma dor avassaladora que percorreu meu peito. Meu corpo estava rígido na cama hospitalar, minha respiração presa na garganta. O som da batida voltou como um trovão. O impacto. O grito.
Eu queria falar, mas tudo o que consegui foi um sussurro rouco:
— Meus filhos...
Minha voz ecoou no ambiente, e de repente tudo fez sentido. Ou talvez não fosse sentido, mas um vazio devastador que me dizia o que eu já sabia.
— Meus filhos! Onde estão meus filhos? — Minha voz saiu como um grito desesperado, enquanto eu tentava me levantar. A dor perfurou meu peito como facas afiadas, e mãos firmes me empurraram de volta.
— Por favor, fique calma! — disse uma enfermeira, seus olhos carregados de compaixão. — Não se mova. Você precisa descansar.
Eu não conseguia. Minhas lembranças me puxavam como correntes. Heitor, me contando sobre o que aprendeu na escola. Manuela, brincando com suas tranças, rindo no banco de trás. As risadas, o sol, o som da música no carro.
E depois, o impacto. A escuridão.
— Meus filhos... — murmurei novamente, minha voz falhando. — Onde estão meus filhos?
A enfermeira hesitou. Seus olhos me disseram o que eu já sabia, mesmo antes que ela abrisse a boca. O ar ao meu redor ficou denso, como se estivesse sendo sugado para fora do quarto. O chão parecia desmoronar sob mim.
Eles não precisavam dizer. Eu sabia. Eu sabia desde o momento em que acordei neste lugar frio e desconhecido.
Meus filhos se foram.
~NICOLAS – TRÊS ANOS DEPOIS (2025) ~A plateia estava em silêncio absoluto, como se o teatro inteiro prendesse a respiração.No palco, sob a luz suave e mágica, Ayla se movia como se fosse feita de ar. Cada passo, cada giro, cada salto era uma fusão perfeita de técnica e emoção. A delicadeza dos braços, a força oculta nos pés que pareciam flutuar sobre o palco… Era hipnotizante.Ela estava vivendo seu sonho.E eu nunca tinha sentido tanto orgulho de alguém como sentia dela naquele momento.O espetáculo chegou ao fim com um desfecho grandioso, e no instante em que a música cessou, a plateia explodiu em aplausos. Aplausos que pareciam não ter fim.Olhei ao redor e vi o brilho nos olhos de cada um que estava ali por ela.Teri e Ricardo batiam palmas empolgados, trocando olhares cheios de significado. Pedro tentava manter a pose de durão e esconder da namorada que estava emocionado. Camila enxugava discretamente uma lágrima, e a mãe de Ayla sorria com uma emoção genuína.E então, meus olh
O som suave da música preenchia o estúdio, misturando-se ao eco ritmado dos meus passos contra o piso de madeira. Eu me sentia leve, energizada, como há muito tempo não me sentia.Desde que voltamos de Londres, algo dentro de mim parecia ter despertado. O relacionamento com Nicolas florescia a cada dia, a possibilidade de um teste para uma grande produção da ARAP pulsava na minha mente, e pela primeira vez em anos, eu me permitia sonhar.Eu tinha enterrado esse sonho quando engravidei pela primeira vez.Miguel nunca me incentivou a voltar. Dizia que era melhor eu ter algo estável, que balé não me daria segurança, que eu devia pensar no futuro da nossa família. E quando a segunda gravidez veio, seus argumentos se tornaram ordens.Mas a verdade?Eu só tinha 23 anos.Pela segunda vez, sim, mas ainda eram apenas 23 anos.Eu ainda tinha um futuro pela frente.Fechei os olhos por um instante, deixando meu corpo seguir a música, entregando-me ao prazer do movimento. Era bom me sentir assim.
O couro frio da poltrona do teatro pressionava minhas costas, mas eu mal conseguia sentir. Minhas mãos estavam trêmulas sobre o colo, os dedos entrelaçados com força para tentar conter a ansiedade que subia como uma maré avassaladora.O Royal Opera House.Eu estava sentada no palco de um dos maiores teatros de Londres, sob a luz suave que banhava a plateia e realçava o brilho opulento das cortinas de veludo. O evento era grandioso, maior do que qualquer coisa que eu já tivesse participado, e minhas meninas eram as próximas a se apresentar.Meu coração martelava no peitoElas estavam prontas. Eu as treinei para isso.Não precisavam de nada além do próprio talento e dedicação. Não precisavam de medicações para suportar a dor, como Helena acreditava. Não precisavam de exaustão além do limite humano. Não precisavam ser tratadas como máquinas, descartáveis, como se apenas uma carreira impecável justificasse sua existência. Elas precisavam apenas de alguém que as levasse ao limite e as fize
— Ayla, você percebe que essa é nossa primeira viagem internacional juntas?Teri pulou na cama do hotel, empolgada como uma criança no dia de Natal. Eu ri, ajustando minha mala no canto do quarto antes de me jogar ao lado dela.— Bom, nossa primeira viagem internacional, ponto — lembrei, olhando ao redor do quarto espaçoso com uma vista incrível da cidade.Era surreal pensar que estávamos ali. Londres. Um lugar que, até pouco tempo atrás, parecia uma realidade distante demais para nós duas.— O único problema é que não estamos sozinhas! — Teri piscou. — Temos um grupo de adolescentes talentosas sob nossa responsabilidade.Suspirei, já imaginando a correria que seria administrar tudo isso nos próximos dias.— Sabe o que isso significa? — ela continuou, animada.— Que teremos muitas dores de cabeça?— Errado. — Ela apontou para mim, como se fosse óbvio. — Significa que, já que as meninas vieram, cada uma, com um acompanhante responsável, você terá tempo livre para dar umas escapadas com
~AYLA~— Então vocês não se falaram mais?O tom de Teri era curioso, mas eu sabia que havia uma pitada de indignação escondida ali.Suspirei, deixando meu corpo afundar no sofá da sala de descanso da academia de balé. Estávamos exaustas depois de um dia inteiro de ensaios e aulas. A última turma tinha acabado de sair, e aquele era o primeiro momento de silêncio que conseguíamos desde que chegamos.— Nem uma mensagem — minha voz saiu com uma nota de decepção que eu nem tentei disfarçar.Teri fez uma careta.— Sério? Nem um “foi ótimo, a gente se vê por aí”?Soltei um riso sem humor.— Nada.Ela cruzou os braços, parecendo irritada por mim.— Talvez ele só esteja ajeitando as coisas antes de te procurar.Dei de ombros. Talvez.Mas no fundo… no fundo, doía.Por um lado, eu queria acreditar que Nicolas estava apenas lidando com tudo. Que Letícia, a Sartori, a confusão que ele precisava resolver estavam ocupando seu tempo e que, quando tudo estivesse no lugar, ele voltaria para mim.Por ou
O som dos pássaros ecoava pelo acampamento quando abri os olhos. O sol ainda estava baixo no horizonte, tingindo o céu de tons suaves de laranja e dourado. Mas minha mente já estava desperta, completamente lúcida.Letícia caiu na armadilha.Levantei-me da cama e caminhei até o notebook. Assim que a tela acendeu, a confirmação estava ali.Os arquivos que eu havia deixado como isca tinham sido copiados.Aquela altura, Letícia provavelmente já os teria enviado para as pessoas certas — ou erradas, dependendo do ponto de vista. Ela achava que tinha algo sólido nas mãos, algo que poderia manchar o nome da Sartori publicamente. Mas, no fim, tudo o que ela conseguiu foi cavar a própria ruína.Graças a Ayla.Meu peito apertou ao pensar nela.Eu sabia que ainda tinha muita coisa para resolver. Mas, naquele momento, só havia um lugar onde eu queria estar.Com Ayla.Peguei uma blusa qualquer e saí da cabana em passos firmes, caminhando em direção ao lago. A brisa fria da manhã trazia consigo o ch
Último capítulo