~AYLA~
A escuridão ainda pairava sobre mim quando meus sentidos começaram a despertar, como se eu emergisse lentamente de um oceano profundo. Algo frio e metálico pressionava meus dedos, e uma leve dor pulsava em meu braço esquerdo. Meu corpo estava pesado, rígido, como se estivesse acorrentado a uma realidade que eu não reconhecia. O som de um monitor cardíaco preenchia o silêncio, cada bip uma âncora, forçando-me a enfrentar o que quer que estivesse além da névoa.
Luz branca. Brilhante demais. Tentei abrir os olhos, mas a claridade me atingiu como uma lâmina, me obrigando a fechá-los novamente. As vozes ao meu redor eram abafadas, distantes, como se viessem debaixo d'água.
Minhas mãos formigavam levemente, e o frio do lençol contra minha pele fazia tudo parecer ainda mais estranho, mais real. Passos apressados ecoavam ao redor, mesclando-se ao som baixo de vozes. Cada detalhe do ambiente parecia gritar para mim que algo terrível havia acontecido, mas minha mente ainda estava presa na névoa.
— Ela está acordando... — uma voz feminina cortou o ar. Havia urgência em seu tom, mas também algo tranquilizador. Passos rápidos ecoaram pelo ambiente, aproximando-se de onde eu estava.
Meus pensamentos eram fragmentos desconexos, como peças de um quebra-cabeça que alguém jogara ao vento. Onde estou? Por que não consigo me mover? Minha boca estava seca, minha língua parecia feita de papel, e meus ouvidos captavam palavras soltas, que não faziam sentido: coma, quase um mês. Era como se eu estivesse tentando alcançar uma memória que se recusava a ser lembrada.
O toque gelado do metal contra minha pele me trouxe um fio de lucidez. Minha mente tentou se agarrar a isso, e então, sem aviso, algo mais forte veio à tona. Lembranças. Fragmentos. Imagens de um dia que parecia tão próximo, mas também absurdamente distante.
O cheiro do chão de madeira encerado. A luz do sol entrando pelas janelas. A música.
Eu estava em casa. O dia era claro, tranquilo, com o céu limpo. O som animado da minha playlist favorita ecoava pelos cômodos enquanto eu deslizava pelo chão, dançando. Sempre foi assim para mim. Não importava o que acontecesse, a dança era minha válvula de escape, minha forma de existir. Meu corpo respondia a cada batida como se aquilo fosse tão natural quanto respirar.
Lembro-me de estar limpando a sala, rodopiando com o pano na mão ao som de uma música contagiante. Era minha rotina: as manhãs ensinando balé para crianças, vendo aqueles rostinhos brilharem ao dominar um novo movimento, e as tardes em casa, cuidando de tudo com música e dança. Não era só um trabalho. Era quem eu era.
Estava completamente imersa quando a chave girou na porta, quebrando minha bolha de concentração. Olhei para a entrada e vi Miguel, meu marido, chegando mais cedo do trabalho. Um sorriso largo surgiu no meu rosto.
— Miguel! — larguei o pano no chão e corri até ele, pegando sua mão e o puxando para o centro da sala. — Vamos, dança comigo!
Ele riu, aquele sorriso meio contido que sempre me encantou, desde que nos conhecemos cinco anos atrás. Miguel nunca foi o tipo que dançava, mas gostava de me observar. Era isso que equilibrava nosso relacionamento: minha explosão de movimento e expressão, e sua calmaria silenciosa.
— Você sabe que eu sou péssimo nisso, Ayla — disse ele, rindo, enquanto eu rodopiava ao redor dele, leve e despreocupada.
Ele me puxou suavemente e depositou um beijo em minha testa. O calor daquele momento ainda estava fresco em minha memória.
— Mas continue... — sussurrou, sentando-se no sofá. — Eu gosto de te ver dançar.
Continuei, deixando a música me levar. Meu corpo parecia flutuar, os pés quase não tocavam o chão. Era sempre assim quando eu dançava: o mundo desaparecia. Tudo o que importava era a música, o movimento, a liberdade.
Quando a música terminou, me joguei no colo dele, beijando-o com paixão. Ele retribuiu, mas algo estava diferente. Seus olhos carregavam uma inquietação que eu não conseguia interpretar.
— O que foi? — perguntei, tentando recuperar a leveza do momento.
— Só... problemas no trabalho — respondeu, suspirando. — Não estou me sentindo muito bem hoje — Antes que eu pudesse insistir, ele entregou as chaves do carro. — Você pode buscar as crianças na escola? — pediu, com um tom cansado.
— Claro, vou agora mesmo. — Sorri, tentando animá-lo. — Mas, quando eu voltar, continuamos de onde paramos, certo?
Ele riu, mas sem a usual energia. Peguei minha bolsa e saí, ainda leve, com o coração tranquilo. O sol brilhava intensamente quando entrei no carro e dei partida.
A lembrança terminou abruptamente, cortada por uma dor avassaladora que percorreu meu peito. Meu corpo estava rígido na cama hospitalar, minha respiração presa na garganta. O som da batida voltou como um trovão. O impacto. O grito.
Eu queria falar, mas tudo o que consegui foi um sussurro rouco:
— Meus filhos...
Minha voz ecoou no ambiente, e de repente tudo fez sentido. Ou talvez não fosse sentido, mas um vazio devastador que me dizia o que eu já sabia.
— Meus filhos! Onde estão meus filhos? — Minha voz saiu como um grito desesperado, enquanto eu tentava me levantar. A dor perfurou meu peito como facas afiadas, e mãos firmes me empurraram de volta.
— Por favor, fique calma! — disse uma enfermeira, seus olhos carregados de compaixão. — Não se mova. Você precisa descansar.
Eu não conseguia. Minhas lembranças me puxavam como correntes. Heitor, me contando sobre o que aprendeu na escola. Manuela, brincando com suas tranças, rindo no banco de trás. As risadas, o sol, o som da música no carro.
E depois, o impacto. A escuridão.
— Meus filhos... — murmurei novamente, minha voz falhando. — Onde estão meus filhos?
A enfermeira hesitou. Seus olhos me disseram o que eu já sabia, mesmo antes que ela abrisse a boca. O ar ao meu redor ficou denso, como se estivesse sendo sugado para fora do quarto. O chão parecia desmoronar sob mim.
Eles não precisavam dizer. Eu sabia. Eu sabia desde o momento em que acordei neste lugar frio e desconhecido.
Meus filhos se foram.