Mundo ficciónIniciar sesiónNorah Narrando
O som do telefone me acordou no meio da madrugada, cortando o silêncio do quarto como uma lâmina. Peguei o celular tateando, os olhos ainda pesados de sono. Na tela, um número desconhecido piscava. O coração gelou. — Alô? — minha voz saiu rouca, quase um sussurro. — Senhora Norah? Aqui é da recepção do Hospital São Rafael. Sua mãe deu entrada há cerca de vinte minutos. Fechei os olhos com força, sentindo o peito apertar. Uma chuva de lembranças veio com tudo, gritos, portas batendo, o cheiro do sangue seco, o choro abafado de madrugada. A dor antiga, aquela que eu escondo no fundo do peito, voltou viva como se nunca tivesse ido embora. Levantei devagar, sentindo o chão frio nos pés. Vesti um moletom grosso, coloquei luvas, gorro e cachecol. O frio lá fora estava de cortar a pele, mas nada se comparava ao gelo que eu sentia por dentro. Peguei a bolsa, o celular e saí sem nem acender as luzes. O trajeto até o hospital pareceu interminável. As luzes da rua passavam rápidas pelo vidro, e eu rezava em silêncio pra que, dessa vez, não fosse tarde demais. Assim que estacionei, vi minha irmã vindo em minha direção. Wanda me abraçou com força, tremendo, chorando tanto que mal conseguia falar. — O que aconteceu, Wanda? — perguntei, embora já soubesse a resposta. Ela soluçou, apertando meu casaco. — O papai, bateu nela de novo. Quando eu acordei, ele tava batendo na mamãe. Eu gritei que ia chamar a polícia, ele empurrou ela — a voz falhou. — Ela caiu, bateu a cabeça na parede e desmaiou. Tinha sangue por toda parte. Fechei os punhos com tanta força que senti as unhas cravarem na palma da mão. Respirei fundo, tentando conter a raiva que queimava dentro de mim. — Onde ela tá? — perguntei, seca. Fui direto pra emergência. Falei com médicos, enfermeiros, coordenação. Pedi que não deixassem ninguém entrar, principalmente ele. Proibi visitas. Eu sabia como era. Conheço o ciclo, o arrependimento falso, as flores, as promessas. Já vi esse filme a vida toda. Depois que garanti que ela estava estável, mandei Wanda ir pro meu apartamento. — Vai pra lá, toma um banho e descansa. Eu fico aqui. — Ela tentou protestar, mas eu insisti até ela ceder. Entrei no quarto e parei diante do leito. Lá estava ela: pálida, com curativos na testa e o rosto manchado de roxo. Tão frágil. Um nó se formou na garganta, mas junto veio a raiva. Ela não merece meu cuidado, pensei. Sou uma idiota de estar aqui. Fiquei um tempo parada, observando o soro pingar lentamente, o bip ritmado da máquina enchendo o quarto. Respirei fundo e me virei pra ir embora. Mas antes que chegasse à porta, ouvi uma voz fraca, quase um sussurro. — Norah… filha… é você? Parei. Fechei os olhos por um instante, com a mão na maçaneta. Me virei devagar. — Oi, mãe. Sou eu. Ela tentou sorrir, o rosto se contorcendo de dor. — Minha filha, por onde você andou? Só tínhamos notícias suas quando você falava com a Wanda. Fiquei de pé ao lado da cama e olhei direto nos olhos dela. — Eu estava cuidando da minha vida. Aquela mesma vida que vocês destruíram. Ela baixou o olhar, os olhos marejados. — Não fala assim, minha filha. Ele só fez aquilo porque tava bêbado. Você sabe como é, quando as pessoas bebem, perdem o controle. — Por favor, mãe — interrompi, fria. — Eu não sou mais criança. E a Wanda também não. Faz mais de vinte e cinco anos que esse efeito nunca passa. Ele não muda. A senhora que escolheu morrer nas mãos dele. Então, faça o que quiser da sua vida. Ela tentou me segurar pelo braço, mas eu recuei. — Vou deixar a conta do hospital paga. — Minha voz saiu firme. — Cuide-se, se conseguir. Saí do quarto sem olhar pra trás. Passei na recepção, deixei as diárias quitadas e fui embora. Mas não consegui ir pra casa. Wanda estava lá, e eu não queria que ela me visse naquele estado. Peguei o carro e dirigi sem rumo até parar num parque. Desci, caminhei até uma árvore grande e sentei na grama úmida. Ali, sozinha, deixei as lágrimas caírem. Não chorei só pela minha mãe. Chorei por mim, pela menina que eu fui, pela mulher que precisei me tornar pra sobreviver. Tudo voltou, o medo, os gritos, as noites escondida no quarto, as marcas que ninguém via. Como eu cheguei até aqui sozinha? Nem eu sei. Talvez porque aprendi cedo que, se eu não me erguesse, ninguém faria isso por mim. O dia passou devagar. O sol nasceu, subiu e desceu, e eu continuei ali, até o celular descarregou. Não queria ver ninguém, não queria explicar nada. Só queria esquecer. Quando a noite caiu e o frio começou a apertar, voltei pro apartamento. Assim que abri a porta, Wanda veio correndo. — Onde você tava, Norah? Eu fiquei preocupada! — Ela me abraçou. — Eu tava por aí — respondi, cansada. Ela respirou fundo. — O hospital ligou. Amanhã de manhã a mamãe vai ter alta. Assenti devagar. — Tá certo. Se precisar de dinheiro pra remédio, pra transporte, me avisa. Eu deixei tudo pago no hospital. — Você não vai ver ela? — Wanda perguntou, baixinho. — Já vi o suficiente por uma vida inteira. — Falei, indo até a cozinha. Ela suspirou e tentou mudar de assunto. — Fiz comida, tá no forno. Vou pro hospital dormir lá hoje e levar ela pra casa amanhã. Assenti outra vez, sem dizer nada. Tomei banho, engoli um calmante e me deitei. Queria apagar tudo da mente, mas as imagens voltavam sempre, o olhar dela, o sangue no chão, o som da voz dele. Adormeci de exaustão. Quando acordei, ainda sentia um peso na cabeça, como se tivesse levado uma surra emocional. Tomei um banho demorado, engoli um remédio pra dor e um café bem forte. O trabalho me esperava. E, sinceramente, nada me distrai mais do que o trabalho. Peguei a bolsa e fui direto pra casa dos William. No caminho, imaginei o tanto que aquele rabugento ia reclamar por eu ter sumido. Já estava me preparando mentalmente pras grosserias. Mas, pra minha surpresa, quem me recebeu foi a dona Alexia, com uma expressão preocupada. — Norah! Graças a Deus você veio. — Ela respirou aliviada. — O Alexander foi pra fazenda ontem à noite. Disse que queria ficar sozinho. — Sozinho? — perguntei, franzindo o cenho. — Só levou o enfermeiro e uma empregada. Os dois morrem de medo dele. — Ela suspirou. — O que aconteceu, querida, que não veio ontem? — Problemas familiares — respondi, simples. — Meu celular descarregou, e eu acabei não avisando. Peço mil desculpas. Ela balançou a cabeça. — Não precisa se desculpar, eu entendo. Só me preocupa saber que ele tá lá, isolado. Respirei fundo e olhei pra ela com firmeza. — Onde fica essa fazenda? — Vai até lá? — perguntou, surpresa. — Vou. — Cruzei os braços. — Aquele teimoso precisa de mim, querendo ou não. Ela sorriu pela primeira vez. — Você é a única salvação dele, Norah. Não desista do meu filho. Sorri de leve, ajeitando a bolsa no ombro . — Pode deixar, dona Alexia. Eu não desisto fácil. E saí dali decidida. Por mais que a vida tentasse me derrubar, eu sabia: alguns corações só precisam de alguém que insista. E, por algum motivo, o coração de Alexander William me chamava pra ficar.






