Mundo de ficçãoIniciar sessãoAlexander Narrando
A noite na fazenda foi silenciosa, pesada. O vento batia nas janelas e fazia aquele som arrastado que parecia vir de dentro da alma. Eu tomei os remédios que o enfermeiro trouxe, aqueles que me deixam meio fora do ar e, pela primeira vez em dias, consegui dormir. Não foi um sono tranquilo. Foi como cair num buraco escuro e fundo, sem fim. Quando abri os olhos, ainda zonzo, precisei de alguns segundos pra lembrar onde estava. A luz entrava pelas frestas da cortina, e os pássaros cantavam lá fora. O som deles ecoava no meio do silêncio da casa, e, por um instante, senti algo diferente. Aquela paz do campo, o cheiro úmido de terra, o aroma forte do mato molhado, fazia tempo que eu não respirava ar de verdade. Mas a lembrança veio rápido, cortando qualquer tentativa de sossego. Eu não tava ali de férias. Tava fugindo da minha própria vida. Ouvi baterem na porta. — Senhor Alexander, posso entrar? — era o enfermeiro. — Entra logo — murmurei, com a voz ainda pesada. Ele abriu devagar e entrou com aquele jeito cuidadoso, como se eu fosse quebrar a qualquer momento. Me ajudou a sentar na cadeira, ajustou o encosto e foi buscar a toalha. Tomei banho com ele me esperando na porta o que, pra mim, continua sendo uma das piores partes do dia. Eu odeio precisar de alguém até pra isso. Me sinto um fardo, uma sombra do homem que fui. Depois escovei os dentes, e ele me ajudou a vestir uma roupa simples: calça de moletom, camisa de algodão leve. — Senhor, o seu café — Falou a empregada, entrando com a bandeja nas mãos. — Deixe aí e Abra as janelas — pedi. — Quero ver o que ainda resta desse lugar. Ela obedeceu. Quando a luz entrou de vez, vi o quanto o quarto era grande, simples e limpo, mas sem alma. Talvez porque nada mais tivesse alma pra mim. O cheiro de café fresco se misturava ao perfume do campo. Frutas cortadas, pão quente, suco natural, tudo do jeito que eu sempre gostei. Peguei um pedaço de mamão com o garfo e fiquei mastigando devagar, sem sentir gosto de nada. Depois empurrei a cadeira até a janela. O enfermeiro tentou ajudar, mas eu fiz questão de ir sozinho. Queria sentir o chão de madeira sob as rodas, ouvir o barulho do vento batendo nas árvores. Lá fora, o campo se estendia até onde a vista alcançava. O verde parecia infinito, as colinas suaves, o sol nascendo devagar. Por um segundo, parecia que o mundo ainda podia ser bonito. E foi aí que a lembrança dela veio, cortando o ar. Júlia. Ela amava esse lugar. Amava acordar cedo pra andar a cavalo, mergulhar no rio gelado, rir de mim quando eu dizia que o mato era cheio de mosquitos. Ela dizia que o campo limpava a alma, que aqui o tempo parava e a gente lembrava o que importava de verdade. Fechei os olhos e senti o cheiro dela misturado com o da terra molhada. Era quase como se ela estivesse ali, sussurrando meu nome. Mas quando abri os olhos, só o vazio me esperava. Tentei chorar, mas nada veio. Nem uma lágrima. Só aquele peso no peito, aquela dor seca que não tem saída. Acho que endureci de um jeito que nem o choro me cabe mais. O enfermeiro se aproximou. — Está tudo bem, senhor? — Tá — menti. — Pode sair. Ele hesitou por um instante, depois obedeceu. Fiquei ali, sozinho, olhando o horizonte. O campo parecia tão vivo, e eu tão morto por dentro. O silêncio gritou mais alto que qualquer barulho. Encostei a testa no vidro frio da janela e sussurrei pra mim mesmo: — Eu odeio essa vida de merda. E pela primeira vez, naquele dia claro e bonito, desejei que a noite voltasse rápido. Porque só no escuro, às vezes, eu consigo esquecer que ela se foi e que eu fiquei. Depois do almoço pedi para deitar. As dores estavam voltando com força, um lembrete cruel de que eu não fazia mais fisioterapia. Tomei um remédio para dor, daqueles fortes que me deixam meio grogue e, em pouco tempo, o peso das pálpebras venceu. Adormeci sem perceber. Quando acordei, a luz já entrava mais fraca pela janela. O enfermeiro estava do meu lado, me chamando baixinho. — Senhor Alexander, já está na hora do outro medicamento. Abri os olhos devagar, meio desorientado, e ele me ajudou a sentar, apoiando minhas costas na cabeceira da cama. Peguei o copo que ele me estendia e bebi o comprimido com um gole de suco a acidez do estômago anda me matando, então evito tomar com água pura. — Pode me colocar na cadeira — pedi, a voz ainda rouca do sono. Ele me levantou com cuidado, como se eu fosse feito de vidro. Assim que me ajeitei na cadeira, pedi: — Abre as cortinas. O sol da tarde entrou invadindo o quarto, batendo direto no piso de madeira e refletindo o verde lá fora. Empurrei a cadeira até a janela e fiquei ali, encarando o campo. O ar parecia mais pesado, o cheiro de terra molhada depois da chuva da manhã ainda pairava. Estava perdido em pensamento, vendo os funcionários cuidando dos gados, tudo seguindo o seu ritmo. Eu apenas olhava, sem emoção alguma. Foi então que notei algo diferente lá fora. Uma poeira subindo na estrada. Estreitei os olhos, tentando enxergar melhor. Um carro se aproximava, vindo em direção à casa. — Quem será agora? — murmurei. — Não é possível que a minha mãe veio atrás de mim. Acompanhei o veículo até ele parar diante da porteira. O coração bateu estranho, apertado. Quando a porta se abriu e eu vi quem desceu, quase não acreditei. Era a Norah. Ela veio até aqui. E, pela primeira vez em muito tempo, um sorriso escapou, involuntário, tímido, mas real. Um riso nascido de surpresa e, de alguma forma, de felicidade.






