Mundo de ficçãoIniciar sessãoO restante do turno de Charlotte desenrolou-se com a monotonia familiar do cuidado. Ela trocou lençóis, serviu almoços e ouviu as histórias repetidas e cativantes dos outros funcionários. O único momento que quebrou a rotina foi o encontro com a Sra. Lúcia.
No final da tarde, enquanto ajudava a idosa a se ajeitar em sua poltrona perto da janela, a Sra. Lúcia, com seus olhos vivos, inclinou-se confidencialmente.
"Minha querida Charlotte," ela sussurrou, a mão enrugada apertando a dela. "O Sr. Torres está distraído lá na sala dele. Será que você não conseguiria, só hoje, aquele biscoitinho de aveia? Sabe, a vida fica tão doce com eles..."
Charlotte sentiu uma pontada de tristeza e precisou reunir toda a sua firmeza. Ela se ajoelhou ao lado da poltrona, pegando as mãos finas da Sra. Lúcia.
"Minha doce Sra. Lúcia, eu sinto muito, mas não posso mais fazer isso. O Sr. Torres me chamou à sala dele esta manhã e me deu um ultimato severo," Charlotte explicou, sua voz suave, mas séria. "Ele me disse que se eu quebrar a regra novamente, ele vai me demitir. E eu não posso perder este emprego. Preciso dele, eu crio a Milli sozinha."
A Sra. Lúcia compreendeu de imediato. A doçura sumiu de seus olhos, substituída por uma tristeza momentânea, mas cheia de carinho pela jovem cuidadora. "Ah, minha querida. Entendo. Não se preocupe, não se preocupe. Você tem que cuidar de você e da sua filhinha. Eu aguento ficar sem meus biscoitos."
Charlotte beijou-lhe a bochecha, agradecida pela compreensão. Aquele pequeno momento reforçou por que ela amava o trabalho, apesar das frustrações burocráticas.
Ao fim do expediente, Charlotte correu para casa. Vestiu uma calça jeans e uma blusa confortável, pegou Milli, que já estava de sapato esperando na porta, e as duas seguiram para a agência.
O interior da agência era um mosaico de pôsteres vibrantes de praias e montanhas. Milli estava praticamente flutuando ao se sentar na cadeira acolchoada em frente à mesa de vidro da vendedora, uma mulher de meia-idade chamada Patrícia.
"Então, o 'Refúgio do Mar'," Patrícia disse, abrindo o desktop e puxando fotos e preços. "É uma escolha maravilhosa. Temos um pacote promocional de um mês que inclui as refeições. Vejam as fotos..."
Milli observava a tela com fascínio silencioso, apontando para as piscinas naturais e o balanço na varanda do bangalô. Charlotte sentia um calor de satisfação, imaginando o quão feliz a filha seria ali.
Nesse exato momento, o celular de Charlotte vibrou com o toque alto e urgente que ela reservava apenas para chamadas importantes. Era um número desconhecido, mas, ao atender, a voz que soou do outro lado era inconfundível: era Beth, uma velha amiga de sua mãe que morava no Arizona.
"Charlotte, querida, eu sinto muito em te incomodar," a voz de Beth estava carregada de preocupação. "Sua mãe... ela não está bem. Ela teve um desmaio está manhã e teve que ser levada às pressas para o hospital. Foi assustador, Charlotte. Você precisa vir."
O mundo de praia, sol e bangalôs desmoronou em um instante. Charlotte sentiu o sangue gelar, e o som da voz de Patrícia explicando o plano de voo ficou mudo.
"Beth... o quê? Ela está... em qual hospital?" Charlotte sussurrou, apertando o celular contra a orelha. A conversa se seguiu por mais dois minutos enquanto ela absorvia os detalhes logísticos da emergência médica.
Ela desligou a chamada, pousando o celular lentamente na mesa. Milli, percebendo a mudança brusca na expressão da mãe, tirou os olhos da tela do computador e perguntou, ansiosa: "Mamãe? O que aconteceu? A vovó Rose está bem?"
Charlotte se virou para a filha, o coração apertado. A decepção que ela teria que causar era quase tão dolorosa quanto a preocupação com a mãe.
"Milli, meu amor," ela começou, tomando as mãos da filha nas suas. "Aquela era a Beth, uma amiga da vovó Rose. A vovó não está bem. Ela está no hospital lá no Arizona. Eu preciso pegar a estrada para ir vê-la e cuidar dela."
Milli processou a informação por um instante. Seus olhos azuis, antes brilhantes de expectativa, ficaram nublados. A imagem do bangalô na tela ainda estava lá, um lembrete cruel do sonho interrompido.
"Então... nós não vamos mais para o 'Refúgio do Mar'?" A pergunta de Milli era pequena, carregada de desapontamento.
"Não, meu anjo. Não podemos," Charlotte disse, com a voz embargada. "Eu sinto muito, muito mesmo. Eu sei o quanto você planejou isso. Mas sua avó precisa de mim agora. É uma emergência." Ela segurou o rosto da filha. "Eu prometo a você, prometo com todas as minhas forças, que no ano que vem você vai escolher o lugar, o bangalô, o castelo, o que você quiser. E nós iremos."
Para a surpresa de Charlotte, a decepção de Milli deu lugar a uma maturidade tocante.
"Tudo bem, mamãe," Milli disse, dando um aperto nas mãos da mãe. "A gente não vê a vovó Rose há muito tempo. O importante é que ela fique boa. A gente pode ir para a praia depois."
Aliviada pela compreensão da filha, Charlotte se virou para Patrícia, cancelando a reserva de forma rápida. Ao sair da agência, já era noite.
No carro, enquanto dirigia para casa, Charlotte ligou para o asilo. O Sr. Torres atendeu no primeiro toque, a voz impaciente.
"Sr. Torres, sou eu, Charlotte. Preciso de uma folga de emergência. Minha mãe teve um problema de saúde grave e está no hospital no Arizona. Preciso viajar nas próximas horas."
Houve um silêncio tenso do outro lado da linha.
"Charlotte, não gosto disso. Você sabe o quão difícil é encontrar substitutos de última hora," ele reclamou, resmungando. "Mas, uma emergência familiar é uma emergência familiar. Mantenha-me informado sobre o seu retorno. Você pode ficar fora por um mês até que suas férias acabem, mas não mais que isso."
"Obrigada, Sr. Torres. Mantenho o senhor informado."
Charlotte desligou o telefone. A viagem para o Arizona seria tensa e preocupante, mas, pelo menos, ela tinha o apoio de sua filha.







