Serafina Gmork
Ai minha Deusa! O que faço agora?
Cubro meu corpo com o casaco fornecido por ele e me abaixo para tentar acordá-lo.
Todos parecem indignados com isso.
Sempre soube que a anciã era intransigente quanto as regras na alcateia, mas deixar um homem morrer por isso é ir longe demais.
Por toda cidade se ouve uivos em comemoração ao fim de mais uma caçada.
— Você fez a sua escolha e terá que arcar com as consequências, criança. — De joelhos no chão e com a cabeça do humano em meu colo, olho para cima. A anciã passa por mim com uma evidente expressão de lamento.
— A partir de hoje você não faz mais parte da família Gmork. Não se atreva a usar esse sobrenome. — Meu pai para ao passar por mim.
— Use o desse seu marido nojento — minha irmã debocha agarrada ao braço de Lucien, que apenas ri da minha situação. Em nada se parece o garoto pelo qual me apaixonei.
— Que decepção! — é a vez da minha mãe. Eles vão embora, assim como todos ali, que antes me deixam um olhar de pena e decepção.
Só restam ali, a floresta, o homem desmaiado e eu. Lamentar não estar nos meus planos, não agora. Nesse momento, preciso salvar esse homem, mesmo sabendo que isso vai dar uma tremenda confusão.
Lembro o que sei sobre os humanos. De acordo com o que aprendi, nosso sangue os cura. Não é nada mágico e instantâneo, mas cura mais rápido que remédios de farmácia.
Rapidamente, corto a palma da mão e abro a boca dele. Coloco o sangue. Nada acontece.
— É, isso vai acontecer. Seja o que a deusa quiser.
Me curso e deixo as presas da minha loba aparecer. Mordo seu pescoço. O sabor agridoce é tão bom. Mordo a minha própria boca e deixo nosso sangue se misturar. Não demora nem dois minutos para ele abrir os olhos.
— Desculpe, tive que fazer isso para te curar.
Ele franze as sobrancelhas, sem entender. E eu pego a sua mão e coloco sobre a mordida.
Seus dedos tocam onde o mordi por alguns instantes, depois seguem para o meu rosto.
— Não chore, minha salvadora.
Nem percebi que estava chorando.
— Você não vai me chamar assim quando descobrir a enrascada em que entrou.
— Falo sobre o lobo ou sobre aquelas pessoas?
— Ambos. — Dou um sorriso nervoso. — Eu vou explicar tudo. Só preciso de um lugar para cuidar do seu ferimento e te contar algumas coisas que te fará duvidar da minha sanidade.
— Nada mais me assusta, minha lobinha.
— Veremos. — Solto um suspiro de exaustão. — Preciso pensar onde posso te levar.
— Há um lugar nessa floresta que um amigo me deixa usar. Lá você pode se aquecer e se alimentar. — Acho que faço uma careta porque ele sorri. — É limpo e organizado, fique tranquila.
Fico envergonhada, mas confesso que nem pensei sobre isso. Facilmente me esqueço que ele é apenas um mendigo.
— Me leva de novo. Eu te guio.
— Gostou de ser carregado, né? Folgado! — Sai de cima. Empurro ele e me levanto.
— Eu estou ferido. — Olho sua cara mais sem vergonha. Ele pode ser um mendigo que está com trapos fedidos, mas não impede que seja o homem mais lindo que já vi.
— Vire-se — digo. Ele entende que quero tirar o casaco e se vira.
— Eu já te vi nua e já te vi se transformar, se lembra?
— É diferente. Eu estava mais preocupa com sua condição. Mas vejo que está bem demais, já fazendo comentários idiotas.
Ele ri.
Ignoro, tiro o casaco e me transformo.
Antes que ele se vire, meus olhos de lobo enxergam o casaco no chão. Só paro de olhar quando ele vem e pega o tecido do chão. Me pergunto se tem valor pessoal para ele. Comprarei outro, limpinho e cheiroso. Se ele aceitar, serei a base para que alcance seu potencial. Agora, se decidir que meu mundo e suas regras são demais, implorarei a deusa que não o castigue pelo que fiz ao optar salvar um humano, quando deveria caçar um elo do destino.
O homem sobe em meu corpo lupino e vai indicando o caminho. É bem suspeito. Ele parece conhecer a floresta como a palma da mão. Será que vive por aqui?
Ele me pede que pare perto de alguns arbustos densos. Paro e me abaixo para que desça.
Jura que vai testar minha paciência? Rosno para ele, que estava apenas me olhando, como se esperasse a transformação.
Sob meu olhar de raiva, ele me dá o casaco e se vira com um sorrisinho cafajeste.
Me transformo novamente e me visto. Ainda assim, o olhar que recebo é bem luxurioso.
— Pode parar de me olhar assim? Está me deixando envergonhada.
— Desculpe. É que me perco em tanta beleza.
Essa resposta só piora a vergonha. O pior é que ele me atrai. Isso ainda vai dar muita confusão.
— Mostra onde temos que ir. — Finjo ignorar que seu olhar continua fixo em mim.
— Já chegamos. — Para minha surpresa, ele enfia uma mão no arbusto e abre uma porta que estava muito bem disfarçada. Sorri em minha direção. — Bem-vinda ao seu lar provisório, minha Luna.
— O que disse? — o encaro desconfiada. A vergonha some. Por que ele usou essa palavra? O que sabe sobre nós? — Quem é você? É mesmo apenas um mendigo?
Desde que o encontrei na floresta, pela primeira vez sinto medo. Quando eu era criança, meus pais sempre contavam histórias sobre humanos que descobrem sobre nossa identidade e tenta nos capturar para testes em laboratório.
A desconfiança me faz dar um passo para trás.
— Entre, vamos conversar. — Nego com a cabeça, pronta para me transformar e fugir. — Deve ter roupa aqui. Acho que consigo me expressar melhor se estiver vestida. Essas suas pernas... — Como eu continuo parada, ele insiste. — Por favor, confie em mim dessa vez.
Minha deusa! Eu devo me ferrar hoje porque estou cogitando a possibilidade de entrar nesse lugar desconhecido.
— Não te farei mal. Juro pelos meus preciosos pais que estão muito distante.
Me convenço. Nunca fui muito racional mesmo.
— Vá na frente.
Com uma expressão séria, ele entra pela passagem. O sigo. O lugar é só um espaço entre um arbusto e outro. É o que acho, até que ele abre uma segunda porta oculta.
— É melhor você ir na frente. Acredito que não vá querer descer lances de escadas comigo esperando embaixo porque eu sou um pobre mortal e vou olhar.
O sentido das palavras impactam me deixando vermelha.
— Imbecil! — desço rapidamente. E meu queixo cai. — Uau!