Capítulo 5 – O Inferno Francês
A brisa gelada que soprava pelas janelas altas do apartamento em Paris parecia carregar um lamento. Gabriel, de nove anos, sentiu o arrepio percorrer a pele fina dos braços, abraçou-se como para se proteger do frio e das sombras que pareciam se agigantar no teto. O espaço, antes descrito como um refúgio promissor de tratamento, mostrava-se, a cada dia, uma jaula de crueldade e traições. O chão de parquet antigo rangia a cada passo, o teto alto ecoava o som dos móveis deslocados e, nos corredores, o perfume cansado de lavanda escondia odores mais pesados: O bafo de raiva de Raquel, a madrasta designada para cuidar dele. Em sua mente infantil, Gabriel recordava com nitidez a despedida de Lara: Ela tinha lhe dado um ursinho azul e dito para ser corajoso. Agora, a saudade brotava como uma ferida aberta: o coração dele apertava-se em cada recordação do carinho verdadeiro. O dia começara cinzento, quase sem sol. Gabriel acordou com um suspiro de tédio e angústia. No corredor, o eco das conversas abafadas: Raquel reclamava de sua bagunça, e Ronaldo, o pai, se limitava a murmurar ordens suaves, como quem teme levantar questões demais. Ele emergiu da porta entreaberta com um pijama que rangia no corpo frágil. Os olhos, fundos e úmidos, buscaram o rosto de Raquel, mas encontraram apenas desdém. — Olha esse quarto, Ronaldo! Parece um cocô de porco! Bufou ela, arrastando o vestido estampado contra a porta. Ronaldo, alto e de postura contida, ergueu a voz pela primeira vez: — Raquel, não precisa exagerar. Ele está em recuperação. — Recuperação? Raquel gargalhou, fria. — Essas marcas não são do tratamento, Ronaldo. São as crises do guri. Então agora a gente aceita tudo? (apontou o polegar para Gabriel) Ele fica no canto, babando, gritando... Quer que eu trate isso como defeito de fábrica? Gabriel sentiu o chão ceder. Seu peito arfa e as lágrimas queimam o rosto. O nó na garganta impedia qualquer palavra. Ele tentou fechar a porta, mas Raquel franziu o cenho. — Não bloqueia a entrada, garoto. Aqui você faz o que eu mando. Num impulso, Gabriel recuou, os pés tropeçaram nos carrinhos espalhados. Sentiu uma chicotada no braço. Raquel o havia acertado com a alça da bolsa. A dor explodiu, vermelha, em linhas finas. Ele caiu de joelhos no tapete, segurando o braço machucado. — Foi sua crises, horror de criança! Vociferou Raquel. Virando o rosto para não ver os olhos atônitos de Ronaldo. O pai permaneceu em silêncio, as mãos nos bolsos. Gabriel fechou os olhos com força, as lágrimas correram. Sentado sobre o chão gelado, ele recordou o sorriso de Lara, o toque doce, a voz que dizia: “Você é corajoso, meu amor. Eu cuidarei de você.” A saudade do abraço dela se tornou mais aguda que o frio. E, naquele exato momento, uma crise se apoderou de seu corpo: O corpo tenso, o peito ofegante, o som repetido, um grito mudo que rasgava o ar. Raquel o observou com impaciência, as mãos na cintura. — Lá vem mais uma. Pára de fazer escândalo! Mas Ronaldo, ainda mudo, ofereceu a mão ao garoto. Gabriel hesitou, as pernas bambas, então se agarrou ao paletó do pai. — Papai... doi... Sussurrou. Ele foi arrastado até o sofá. A luz fraca do abajur coloriu o rosto pálido de Gabriel com tons de outono. Raquel saiu, batendo a porta. Logo se ouviu o barulho da televisão, a voz dela, indiferente, discutindo detalhes de decoração com um amigo. Sozinho, Gabriel acomodou a mão ferida. Os soluços queimavam o peito. Cada som do apartamento aumentava sua angústia: O tique-taque do relógio na estante, o ronco distante do tráfego na avenida abaixo. O menino quis chamar Lara, mas as palavras não vinham. Então, pegou o ursinho azul e apertou contra o rosto. Fechou os olhos e, num murmúrio, disse: — Lara... me ajuda... A noite caiu, tinta escura sobre a cidade iluminada. No quarto espelhado, Gabriel adormeceu com o arranhão vermelho no braço, e na boca o gosto amargo da traição.O Grito SilenciosoO apartamento amanheceu envolto por uma névoa úmida. Lá fora, o som distante de sirenes misturava-se ao canto rouco de pombas nos parapeitos. Gabriel acordou antes mesmo dos raios de sol. O braço latejava, mas a dor era menor que o aperto no peito. Os olhos pesados avistaram, na escrivaninha, o vidro de um calmante que Raquel deixara estrategicamente ao alcance, como se fosse uma ordem para mantê-lo calmo.Ele recusou o comprimido, sacudiu a cabeça e tentou ignorar a mão invisível que apertava seu coração. Era sexta, dia de terapia. Mas Raquel disse a Ronaldo, na frente do menino, que a sessão era supérflua que ali, em casa, ela cuidaria.— Ele não precisa de mais uma madrasta babá, declarou Raquel, em tom de conselho. — É coisa da psicóloga, essa choradeira.Ronaldo acenou, desviando o olhar. Gabriel sentiu a humilhação quente como chama. Apertou o ursinho e saiu de casa para caminhar na sacada, pendurado no corrimão metálico. Lá embaixo, a rua parecia um ri
O UltimatoO sol ainda estava tímido no céu quando Artur Montenegro, aos quarenta e três anos, acordou com a boca seca, o gosto amargo da ressaca colado na língua e o zumbido irritante do telefone vibrando sobre a mesa de cabeceira.O quarto de hotel cinco estrelas, ainda mergulhado pela escuridão protetora das cortinas pesadas, cheirava a uísque caro, perfume feminino e decepções repetidas. Mulheres eram odiosamente necessárias. Sempre dizia que quem gostava de mulher eram os gays, homens gostavam de sexo.Ele se espreguiçou, os olhos queimaram ao tentar focar no visor do aparelho. Era o pai.Outra bronca às sete da manhã? Mas que saco. Estou com dor de cabeça, fala logo!— Esta é sua última chance, Artur. Se você não se casar até o final deste mês, perde tudo. Presidência da Montenegro Empreendimentos, parte da herança, os carros, os cartões, tudo!— Casamento? Pai, pelo amor de Deus, isso é um absurdo! —Eu nem tenho uma namorada!— Absurdo é ver o nome da nossa família sendo a
A Centelha da Ideia.Perguntou ainda em pé ao lado da mulher que havia lhe ajudado a pouco. Ela puxou o maço da bolsa, entregou o cigarro e o isqueiro, mas continuou olhando para o nada com os olhos marejados. — Obrigado. Artur se sentou ao lado dela e enquanto compartilhavam o cigarro, contaram histórias que ainda feriam um ao outro.O nome dela era Lara. Professora de crianças com deficiência intelectual. Recém-divorciada, o coração ainda está em pedaços. Contou que tinha descoberto ali que o marido com quem foi casada por oito anos tinha uma amante há cinco. — Ele vai levar o meu filho com eles e nem sei o que mais me machuca, se é a traição dele ou saber que fui uma idiota por tanto tempo. Ela jantava na minha casa, ia comigo ao shopping e eu ajudava ela escolher a lingerie que ela usaria com o namorado. Um sorriso amargo se misturou a lágrima. — O meu marido! Era o meu marido. Artur não tinha ideia do que dizer, achava que a criança ir com o pai era o melhor, assim Lara
A Proposta InacreditávelO dia estava cinza, uma bruma leve cobria os prédios altos enquanto Artur Montenegro estacionava seu carro alugado em frente a uma escola pública de arquitetura antiga e desgastada. O homem que antes fora capa de revistas de negócios agora estava parado dentro do carro enquanto observava a entrada de crianças com mochilas coloridas e olhares agitados. Em uma folha dobrada no bolso, lia-se o nome que havia perseguido em pensamentos por dias: Lara Matos.Desceu do carro como se o chão fosse estranho. As calçadas rachadas e os muros rabiscados com frases infantis e corações lembravam-no de um mundo do qual sempre esteve distante, e ele nunca pensou em se aproximar. Mas era ali que ela estava. A mulher que, numa noite qualquer, estendeu a mão sem pedir nada em troca.A secretária olhou com desconfiança para aquele homem de aparência descuidada, olhar perdido.— Posso ajudar?— Estou procurando a professora Lara Matos.— Assunto?— Particular.A mulher avaliou-
Capítulo 4 – A Inquietação de JosuéO relógio marcava 21h30 quando Josué atravessou o amplo hall da mansão Montenegro, o chão de mármore refletindo a luz amarelada dos lustres antigos. O ar estava pesado, impregnado do perfume marcante de incenso e do eco distante de passos apressados. Ele apertou o paletó contra o corpo, tentando conter o frio que lhe corria pela espinha. Ao seu lado, Artur surgia no corredor, trajando um smoking impecável, mas com uma gravata frouxa e o olhar perdido. A imagem de um homem adulto, rico e inconsequente, despertava em Josué um misto de raiva e preocupação.Desde o jantar de apresentação, as atitudes de Artur o faziam questionar o senso de responsabilidade do rapaz. Ele abrira mão de toda a compostura daquela noite só para encarar um copo de uísque, engolindo goles longos, como quem esperasse encontrar a salvação no fundo da taça. Cada tilintar de gelo agitava a mente de Josué: “Será que ele realmente vai honrar o casamento?” A dúvida o corroía