Ajeitou a postura e seguiu pelo caminho mais discreto, esgueirando-se pelo corredor lateral até a cozinha. O calor do ambiente veio como uma onda abafada, trazendo o cheiro de carne sendo cortada e temperos queimando no fogão. A cozinheira estava ocupada cortando carne, mas ainda assim ergueu os olhos para fitar Melody por um instante.
— Vai ficar parada aí feito uma estátua? — resmungou a mulher, voltando ao trabalho.
— Só vim buscar um pano — respondeu Melody rapidamente, pegando um pedaço qualquer de tecido sobre a mesa antes de seguir adiante.
Esperou um instante, certificando-se de que ninguém prestava atenção, antes de subir as escadas estreitas e empoeiradas até o sótão. Segurava o pano contra o peito, um disfarce simples caso fosse surpreendida no caminho. Era um dos poucos lugares onde poderia ter privacidade. Lá em cima, o calor era sufocante, mas não havia olhos curiosos. O colchão fino onde dormia estava estendido no chão, encostado contra a parede, e ao lado dele repousava um baú de madeira maltratado pelo tempo. Era ali que guardava seus poucos pertences—roupas simples, algumas moedas e, enterradas sob um pano velho no fundo da caixa, as toalhinhas que precisava agora.
Fechou a porta atrás de si e se sentou sobre um velho baú, respirando fundo antes de desamarrar a fita que prendia as ceroulas largas. O tecido leve deslizou até seus joelhos, revelando as marcas frescas de sangue seco em sua pele. Franziu a testa e pegou uma das toalhinhas, dobrando-a com cuidado antes de improvisar um suporte com faixas de tecido, amarrando-as ao redor dos quadris, da mesma forma que fazia para esconder os seios. O aperto não era confortável, mas pelo menos garantiria que a toalha não escorregasse durante o trabalho.
Ela suspirou, passando a palma da mão pelo rosto suado. Mais um segredo que precisava guardar. Madame jamais poderia descobrir. Se soubessem que sua menstruação era regular, que seu corpo estava amadurecendo, tudo mudaria.
E ela não estava pronta para isso.
Puxou as ceroulas para cima, ajustou a roupa e respirou fundo antes de descer novamente. O calor da cozinha a envolveu como um cobertor abafado, trazendo de volta os aromas de comida, suor e perfume barato. Ela não olhou para os lados, não procurou rostos familiares. Apenas seguiu pelo corredor estreito até a cozinha, onde as panelas tilintavam e a voz da cozinheira ressoava em meio ao vapor das caldeiras ferventes.
— Até que enfim, menina! Pegue a bandeja, leve isso pro salão. E não me faça esperar! — resmungou a mulher, colocando pratos fumegantes sobre a mesa.
O dia se estendeu em um turbilhão de tarefas. Melody ajudou na cozinha, preparando refeições, lavando pilhas de pratos e esfregando panelas até que seus braços latejassem. Quando o jantar foi servido, passou a estender os lençóis limpos nas camas, deixando cada quarto em ordem para a noite que se aproximava.
Antes de subir para o sótão, ainda ajudou algumas das meninas a se vestirem, ajustando corpetes e laços, ouvindo-as conversarem sobre clientes e pequenas fofocas do salão. Algumas riam, alheias ao peso que Melody carregava consigo. Outras apenas a observavam de soslaio, sem dizer nada.
Conforme as primeiras horas da noite chegavam, a casa ganhava um novo ritmo – a agitação dos clientes aumentava, e o salão ficava cada vez mais lotado. Foi então que a chamaram para ajudar a servir.
Melody pegou a bandeja com firmeza, equilibrando as canecas de cerveja morna enquanto se movia pelo salão lotado. O ar estava carregado pelo cheiro de álcool, suor e comida gordurosa, e as vozes se misturavam em uma cacofonia constante. Clientes embriagados gesticulavam, riam alto e puxavam as garotas para perto. Ela tentava passar despercebida, movendo-se rápida e eficiente entre as mesas.
O salão estava em seu auge, o barulho ensurdecedor, os passos rápidos de um lado para o outro. Melody mantinha a cabeça baixa, apenas querendo terminar a noite sem chamar atenção. Seus pés doíam, os braços estavam pesados do trabalho, e tudo que desejava era que o tempo passasse sem incidentes.
Então, o empurrão veio.
Não foi forte, mas o suficiente para desestabilizá-la. Um ombro esbarrou com força contra suas costas, e antes que pudesse reagir, sentiu os pés tropeçarem em uma cadeira mal posicionada. O impacto veio rápido—o corpo girando no próprio eixo, a bandeja escorregando das mãos.
O estrondo das canecas se chocando contra o chão veio primeiro. Depois, a onda quente da cerveja derramada sobre seu vestido.
Por um instante, apenas risadas.
Mas então, o salão ficou em silêncio.
A cerveja morna impregnava o tecido, colando-o à sua pele. O líquido pesado escorria por suas pernas, e quando Melody ergueu os olhos, percebeu os olhares presos a ela. Não havia mais anonimato. A faixa apertada ao redor dos seios ficou visível através do tecido ensopado, as formas femininas que ela tanto se esforçou para esconder agora estavam ali, expostas sob a luz bruxuleante das lamparinas.
As risadas morreram em murmúrios abafados.
Os homens observavam. Alguns inclinavam o corpo para ver melhor. O burburinho se formava, algumas palavras sussurradas entre dentes. Uma voz arriscou uma piada atrevida.
O coração de Melody disparou.
Antes que alguém pudesse fazer algo, antes que uma mão tentasse puxá-la ou uma nova provocação fosse dita, ela virou nos calcanhares e correu.
Os passos ecoaram pelo chão de madeira enquanto disparava pelo corredor estreito. O cheiro azedo da cerveja misturava-se ao suor frio que descia por sua nuca. A respiração curta fazia seu peito doer, e cada batida dos pés no chão parecia ecoar alto demais. Subiu as escadas quase de dois em dois degraus, as mãos tremendo ao alcançar a porta do sótão. Com um empurrão apressado, fechou-se lá dentro, os pulmões queimando pelo esforço. Encostou as costas na madeira e pressionou os olhos fechados, tentando controlar a respiração ofegante. O silêncio ali dentro contrastava com o burburinho abafado do salão abaixo, criando uma bolha de isolamento momentâneo. Mas a paz era falsa. A umidade do vestido colado ao corpo era uma lembrança incômoda da exposição, e a sensação do tecido grudando nos seios enfaixados deixava claro que ela não conseguiria mais se esconder.
O calor abafado do sótão envolveu-a como um casulo sufocante. O colchão fino no chão era a única coisa que lhe pertencia ali, além do baú onde escondia suas coisas. O baú que agora parecia sua última barreira contra o mundo lá fora.
Seu peito subia e descia rapidamente. Ela tocou os seios enfaixados, sentindo a umidade do tecido. Não adiantava. Não podia mais se esconder.
Foi então que ouviu.
Passos. Lentos, seguros, subindo as escadas.
Madame raramente vinha até o sótão. Se estava subindo agora, não era por acaso.
Passos.
Subindo devagar, ritmados. Não apressados, nem raivosos. Mas firmes, implacáveis.
— Melody.
A voz não era alta, mas carregava o peso de uma sentença.
Ela abriu os olhos. O medo subiu como uma onda fria por sua espinha.
Madame estava chamando.
— Melody.O som de seu nome atravessou a porta, enchendo o pequeno espaço do sótão como uma ameaça palpável. Um frio intenso subiu por sua espinha, espalhando-se pela nuca e eriçando os cabelos em sua pele úmida de suor frio. Seu estômago revirou violentamente, e ela precisou engolir com força para conter a náusea imediata. Melody fechou os olhos, apertando os lábios em uma linha fina e trêmula enquanto tentava controlar a respiração acelerada.Medo. Um medo visceral, antigo e profundamente arraigado, espalhou-se rapidamente por suas veias como veneno, fazendo seus membros tremerem. Mas, abaixo dessa camada inicial de terror, ela reconheceu outra emoção igualmente intensa: raiva. Uma raiva impotente, sufocada por anos de silêncio, de humilhação e submissão forçada. As unhas curtas se cravaram nas palmas das mãos em punhos cerrados, e Melody sentiu um calor de revolta incendiar seu peito.Lutando contra o impulso de se esconder em um canto escuro e simplesmente desaparecer, endireitou
A luz do fim de tarde filtrava-se pelas frestas do sótão, tingindo de dourado os montes de poeira acumulada e os objetos esquecidos. Melody estava sentada sobre o baú, com o vestido ensopado colado à pele, os joelhos juntos ao peito, os braços envolvendo as pernas como se o gesto pudesse impedir que desabasse.O silêncio ali dentro era tenso, denso, como se a casa inteira esperasse o momento exato para esmagá-la. Seu estômago roncava, vazio desde cedo, e o cheiro distante de comida vindo do salão fazia a boca salivar. Madame sabia. Era esse o plano. Domar pela fome. Pelo cansaço. Pelo isolamento. Mas Melody não podia deixar isso acontecer. Não depois de tantos anos escondida, não depois de chegar tão perto.Levantou-se com energia renovada e quase com raiva, tirou o vestido molhado que largou sobre o chão. Escolheu outro, o menos rasgado dos dois que ainda restavam, e o vestiu com movimentos lentos. O calor insuportável do dia havia se convertido no frescor do início da noite. Seus de
O susto foi nublado pela dor.Melody piscou devagar, o corpo inteiro pulsando como um machucado exposto. Tentou se mover, mas o braço gritou alto, e ela parou. Os olhos demoraram a focar, mas logo voltaram para o homem parado na entrada da carroça.Jesus. Ele era enorme.A silhueta dele tomava conta do espaço. Largo de ombros, alto, com a mão segurando a aba da lona erguida. A luz do entardecer dourava as laterais do rosto rígido, os olhos verdes e atentos. Não parecia assustado. Parecia calculando.Melody sabia reconhecer o olhar de um homem medindo risco.Ela também sabia que era o risco.Estava desesperada demais para recusar ajuda, mas o medo dentro dela dava outro salto — um medo mais profundo, que não vinha do instinto, mas da memória. E se ele a devolvesse? Se ele pertencesse à Casa? Se fosse um dos deles?O braço latejava como fogo. Ela queria implorar, mas o corpo tremia de frio e esforço. Os lábios ardiam, rachados e úmidos de sangue. Ainda assim, ela os mordeu, tentando reu
A carroça avançava pela estrada de terra batida, o som dos cascos e das rodas marcando um ritmo constante na noite que chegava. O céu, já tingido de azul escuro, deixava os últimos fios de luz escaparem pelas copas das árvores. Era um silêncio de fim de mundo, só quebrado pelos estalos do couro e o ranger da madeira.A fazenda surgiu no horizonte.A casa grande de madeira mantinha sua dignidade cansada. A varanda ampla era sustentada por colunas grossas, e os degraus largos da entrada já conheciam muitos anos de pés e silêncios. À direita, o estábulo recortava-se contra o céu, e uma cerca baixa contornava o terreno com humildade.No jardim à frente da casa, resistia o cuidado antigo de Esperanza. As roseiras estavam secas. A lavanda, quase morta. Mas as margaridas — teimosas — ainda floresciam, como se recusassem a aceitar a ausência da mão que as podava.Duncan puxou as rédeas e fez Caleb parar diante da varanda. O cavalo bufou com gratidão.A poeira, erguida no último trecho da estr
Duncan passou a escova mais uma vez pelo flanco do animal, o braço trabalhando num ritmo mecânico, quase ritual. O cheiro de feno úmido, couro e suor ajudava a empurrar o mundo pra longe.Mas o grito que a jovem soltou quando Ida recolocou o ombro no lugar ainda o perseguia.Agudo. Cortante. Feminino.Ele odiava gritos de dor femininos.Mais do que os sons, odiava o que eles despertavam.Aquele som trazia lembranças. Não nítidas, mas claras o suficiente. Vozes abafadas por madeira grossa.Uma mão segurando Rose pela primeira vez, enquanto a mulher gritava do outro lado da parede.O tempo passou, mas os sons ficavam.Alguns se instalam no peito e cavam. Silenciosos. Pacientes.Forçou a escova com mais brusquidão por um instante, depois parou. Respirou fundo.O animal virou a cabeça, como se dissesse: chega.Duncan assentiu para o cavalo em concordância, o velho Caleb não merecia ser maltratado porque ele estava inquieto. Guardou a escova, soltou a trava da baia com um estalo e deu dois
O cheiro de lavanda foi o primeiro a alcançar Melody.Depois veio o toque dos lençóis limpos sob a pele, o peso gentil de uma colcha bem dobrada, a maciez inesperada do colchão sob o corpo dolorido.Era estranho. Quase íntimo.O ambiente tinha aquele tipo de silêncio que não amedrontava. Um silêncio de lugar vivido, organizado. A luz do sol filtrava pelas cortinas claras, cortando o quarto em faixas de calor e sombra. No ar, havia um fundo de cera de madeira — e mais distante, o aroma acolhedor e forte de café passado.Ela piscou devagar.Os olhos ainda pesavam.O ombro latejava com dor surda e constante, irradiando para o lado do pescoço e escorrendo pelo braço engessado.O teto era de madeira clara, bem conservada. Um lampião apagado estava sobre um dos armarios. À esquerda, uma cômoda com espelho em moldura gasta. Os móveis brilhavam com uma camada recente de cera, e o cheiro — aquele cheiro — era reconfortante demais.Ela tentou se erguer. O corpo inteiro protestou.Um gemido esca
— Eu gostaria de tentar, senhora Jenkis.Ida assentiu com um gesto curto, como quem confirma algo já decidido.— Então coma. Vai te fazer bem.Melody pegou a colher com a mão boa, ainda trêmula. O mingau estava morno, com gosto suave de leite fresco, uma pitada de açúcar mascavo e talvez um toque de canela. Era simples. Era bom. Era gentil, de um jeito que ela não sabia mais receber.Ela havia perdido a noção de civilidade, percebeu quase chocada consigo mesma, os anos na Casa do Sol Nascente lhe pareceram ainda mais injustos.A cada colherada, o corpo parecia relaxar. O calor se espalhava por dentro como um cobertor. As costas afundaram mais no colchão. A tensão que havia se instalado na mandíbula se dissolveu devagar. Quando a tigela estava pela metade, os olhos começaram a pesar. A mão fraquejou. A última colherada ficou esquecida dentro da tigela.Ida recolheu a bandeja com cuidado, observando a garota que já adormecia.O rosto dela, agora suavizado pelo sono, parecia anos mais jo
O teto era sempre o mesmo, mas a forma como ela o via mudava a cada dia.Melody soltou um suspiro longo, daqueles que pareciam sair direto da alma. Estava cansada de ficar deitada. O corpo ainda doía, sim — especialmente o ombro enfaixado —, mas o tédio era pior. A sensação de estar viva sem agir lhe causava uma inquietação ácida e urgente.Virou o rosto. A trouxa com seus pertences permanecia onde a haviam colocado: sobre a cadeira, como uma lembrança compacta de quem ela tinha sido. Pelo que podia ver, ninguém havia mexido em suas coisas... até porque, o que haveria ali pra ver?Aquilo não era uma mala. Era um inventário de sobrevivência.O quarto era pequeno, mas arejado. A luz entrava filtrada por uma cortina fina, e o cheiro da casa era diferente — madeira antiga, lenha, e algo recém-assado. Aquele cheiro aquecia algo dentro dela.Não era o cheiro de perfume barato e álcool. Era o cheiro de casa. De família. De segurança.Ela não poderia jamais se deixar enganar por esses cheiros