O dia nasceu como os outros. Mas Melody não.Acordou cedo, como sempre. Vestiu-se devagar, prendeu o cabelo como se cada gesto exigisse mais tempo. Lavou o rosto. Olhou no espelho — e não reconheceu a mulher que olhava de volta com tanta nitidez. O reflexo parecia mais sólido, como se houvesse ganhado peso e forma durante a noite. A nitidez dos traços era a mesma, mas o olhar carregava uma pergunta nova. E uma resposta que ainda não sabia nomear.A casa parecia igual. Mas ela via diferente.Atravessou o corredor e encontrou Ida já na cozinha, mexendo o mingau de Rose com a colher de pau. A luz da manhã entrava pelas frestas da janela com um dourado tímido, tingindo a parede com um calor que não alcançava os ossos. Havia cheiro de leite morno no ar, e o rangido ocasional da madeira soava mais alto do que de costume.— Dormiu bem? — perguntou a governanta, sem tirar os olhos da panela.Melody assentiu. Foi até a pia. Lavou as mãos. Pegou a tigela com frutas e começou a cortá-las em silê
O outono se anunciava como quem pede licença, mas já começava a tirar as coisas do lugar. Não era uma estação de chegada ruidosa. Era feita de pequenos sinais, como um convidado que vai empurrando os objetos devagar, rearranjando o ambiente sem que se perceba de imediato.O sol era mais pálido, a luz mais curta, o ar mais fino. A roupa demorava a secar no varal, e a água da bacia onde Melody e Ida lavavam fronhas já não permanecia morna por muito tempo. Havia um frio miúdo que não dava calafrio, mas fazia a pele desejar manga comprida. Ida havia dito, dias atrás, com a certeza de quem prevê o tempo como quem lê uma receita:— Logo o frio chega sem bater.Naquela manhã, as duas estavam lado a lado, torcendo lençóis e estendendo peças no varal. As mãos se moviam com sincronia, o silêncio sendo preenchido apenas pelo estalar úmido dos tecidos. Rose dormia no carrinho improvisado na sombra da varanda, enrolada em uma manta que ainda guardava o cheiro do armário. Tudo parecia no lugar, com
O "nem sob o meu cadáver" de Duncan não era uma figura de linguagem. Era um limite. Um ponto inegociável que havia se solidificado entre eles. Ele mantinha o rosto voltado para o chão, as mãos cerradas ao lado do corpo, enquanto o peso da frase ainda pairava sobre todos como uma proibição escrita em pedra. Ida olhava para ele, incrédula, como quem acabara de ouvir um absurdo dito em plena razão. Melody, a poucos passos, compreendia que havia algo mais naquela recusa. Não era apenas medo. Era pessoal. E grave.Duncan recuou com o cavalo, fazendo o animal dar alguns passos para trás com um leve puxão nas rédeas. Manteve-se montado, os punhos cerrados sob o couro tenso, como se contivesse uma tempestade. A tensão em seus ombros era visível, como se o simples ato de respirar o forçasse a atravessar um campo minado. Segurava-se firme como se a sela fosse o único ponto estável em um mundo que ameaçava ruir ao seu redor. Afastou-se alguns metros, como se precisasse de distância para conter o
O sol já estava mais alto quando Duncan se posicionou na varanda, a expressão impassível e o olhar fixo na trilha poeirenta que levava até sua propriedade. Ao longe, dois cavaleiros se aproximavam. O primeiro, um homem de meia-idade com postura relaxada e um chapéu bem ajustado, tinha mais cara de prefeito de cidade pequena do que de xerife. O segundo, mais jovem, tinha o rosto rígido e os ombros tensionados, visivelmente desconfortável enquanto hesitava em desmontar.Duncan não se mexeu quando eles pararam diante da cerca. Ficou ali, encostado no batente da varanda, os braços cruzados. O vento agitava levemente a aba de seu chapéu, e sua sombra se estendia como uma sentinela até a madeira gasta da escada. Sua presença bastava para manter os dois homens a uma certa distância.— Duncan — disse o homem mais velho, tocando a aba do chapéu com dois dedos. O rapaz ao lado dele ainda não sabia se descia ou não do cavalo, os olhos dançando entre a casa e o companheiro, como se esperasse inst
Duncan permaneceu na varanda até os dois cavaleiros desaparecerem completamente na linha do horizonte. Só então desceu os degraus com um impulso contido, atravessou o quintal num silêncio feroz e foi direto ao poço.A terra ainda guardava o peso dos cascos e a poeira mal tinha assentado quando ele alcançou a tampa. Seus passos, geralmente lentos e deliberados, agora tinham pressa contida — a fúria de um homem que havia sido obrigado a dissimular por tempo demais. O maxilar cerrava, as narinas infladas. O ódio era frio. E concentrado.Sem cerimônia, ergueu a tampa com força, quase arrancando a dobradiça. O som metálico cortou o ar como um trovão. O interior escuro o encarou de volta, e por um instante, ele apenas ficou ali, os olhos se ajustando à escuridão. O cheiro de mofo e umidade subiu, denso, viscoso, como se o poço respirasse de volta.Lá embaixo, Melody estava encolhida, agarrada ao cabo de vassoura atravessado, os dedos entorpecidos. O frio já havia ultrapassado a pele e se in
O aroma do chá se espalhava pela cozinha como um sopro quente num dia de inverno. A chaleira ainda sibilava levemente quando Ida serviu as xícaras com mãos firmes. O vapor subia, formando espirais entre as pessoas em volta da mesa. O ambiente estava aquecido pelo fogo e pela tensão recém-cessada — o tipo de calor que nasce não da tranquilidade, mas da sobrevivência.Melody sentou-se com os cabelos ainda úmidos, vestida com uma roupa de tecido grosso que Ida deixara sobre a cama. As mangas eram longas demais, os ombros um pouco largos, mas traziam o consolo imediato de algo seco e quente. Seus dedos ainda estavam ligeiramente trêmulos ao segurar a xícara, mas ela os escondeu envolvendo o corpo da porcelana com as mãos como se buscasse ali uma desculpa para o gesto.Duncan se sentou à cabeceira, Rose no colo. A menina mordiscava um pedaço de pão enquanto observava todos com seus olhos grandes e curiosos, os cabelos bagunçados colados à testa. Ele parecia calmo, mas o maxilar ainda traba
O dia seguinte amanheceu promissor, o céu limpo e o ar carregado de um calor ameno que parecia convidar à estrada. Após o almoço, Duncan selou o cavalo sem dizer para onde ia e saiu montado com a tranquilidade meticulosa de quem carrega um plano completo na cabeça. Melody o observou partir da varanda, o vulto dele se afastando na trilha até sumir na poeira dourada que o sol projetava.Ida comentou, sem levantar os olhos do pano de prato que torcia:— Foi buscar Bill.Melody não sabia quem era Bill, mas pelo jeito de Ida, ele era importante. A mulher parecia mais aliviada por saber que o cozinheiro estava a caminho do que pela partida antecipada em si.Quando o sol já começava a tombar no horizonte, Duncan voltou. Exausto, empoeirado, com a barba por fazer e alguns embrulhos amarrados na cela. Desceu do cavalo sem pressa, mas com o corpo inteiro denunciando o cansaço. Jantou em silêncio, deu um beijo rápido em Rose e foi dormir cedo, sem mencionar o conteúdo dos pacotes.No final da ta
O sol ainda nem pensava em nascer quando a cozinha da casa grande já fervia de movimento. Ida, com a destreza de quem comandava batalhões famintos, preparava um bule de café do tamanho de um pequeno barril. O aroma forte preenchia cada canto, misturado ao cheiro de couro, poeira e expectativa.Doze homens se espremiam ao redor da mesa maciça: Bill, Billy, Cal e mais nove contratados vindos das redondezas. Homens duros, de fala pouca e olhos treinados para o trabalho pesado. As canecas de café, cheias quase até a borda, o bule passava de mão em mão, enquanto Duncan, em pé à cabeceira, dava as últimas ordens.Melody, escondida no próprio quarto, ouvia cada palavra através da porta entreaberta. O coração batia forte no peito, como se quisesse acompanhar o ritmo da partida.Duncan falava com a voz baixa, mas firme:— Cal e Tom vão na frente. Vocês abrem caminho e mantêm o gado alinhado. Nada de correr demais, não vamos perder cabeça por pressa.Dois homens assentiram. Cal, o de sempre, e