O dia havia começado sob um céu pesado, com nuvens arrastadas e um frio cortante que gretava a pele como lixa. A poeira da estrada colava nos rostos, nos braços, nos pensamentos. A marcha da boiada seguia lenta, mas constante, como um organismo vivo que se recusava a parar, mesmo quando tudo em volta parecia exausto.Melody cavalgava ao lado do carroção, em silêncio. Desde o desentendimento com Duncan na noite anterior, mantinha uma distância controlada. Não havia hostilidade, apenas um espaço deliberado. Ela falava pouco, mas observava tudo, absorvendo os movimentos dos homens, os ritmos da marcha, os pequenos sinais que passariam despercebidos para alguém menos atento. Estava ocupada tentando se interessar por outras coisas que não fossem o dilema que carregava dentro de si.Duncan não se aproximava. Mantinha-se à frente, liderando a marcha com a impassibilidade de sempre, mas seus olhos varriam o grupo com mais frequência do que o habitual. Era como se cada passo do cavalo estivess
Melody acordou com os dentes batendo, como se seu próprio corpo tentasse avisá-la que o mundo havia mudado de fase durante a madrugada. Estendeu a mão para fora do cobertor e recolheu num espasmo involuntário. Frio cortante, seco e traiçoeiro.Saiu do carroção encolhida, abraçada a si mesma. O dia ainda não havia começado, mas o campo já estava acordado — e coberto de branco. A geada dominava tudo: a vegetação rasteira, os galhos tortos dos arbustos, até as bordas dos chapéus pendurados. O céu ainda era cinza escuro, e o silêncio carregava aquele tipo de peso que só existe antes da primeira luz. Um silêncio espesso, cheio de presságios.Os peões se reuniam ao redor de uma fogueira baixa, corpos curvados, mãos estendidas em busca de calor. O fogo ardia com dificuldade, lançando mais fumaça que chama, como se lutasse contra o próprio ar gelado. Duncan estava entre eles, sentado num toco de madeira com a postura cansada, as mãos diante do fogo, os olhos vigilantes. Olhava para o gado, de
Ainda era começo da tarde quando Duncan emparelhou o cavalo ao de Billy e disse, sem rodeios:— Vai na frente. Leva o baio. Quero saber como está o açude antes que a gente chegue lá.Billy assentiu com um leve puxar de queixo, virou o cavalo e partiu no trote rápido que logo se tornou galope. O sol estava alto, mas a luz já começava a perder o brilho — o tipo de hora em que as sombras se alongam e os problemas vêm atrás delas.Duncan permaneceu calado por um tempo, os olhos fixos na linha do horizonte. Melody não perguntou nada. Ninguém perguntou nada. O silêncio do patrão era aviso suficiente.O gado marchava em ritmo firme, mas o cansaço da viagem já se acumulava nos ombros dos peões e nas ancas dos bois. Alguns mugidos soavam mais longos, mais lentos. Os cascos levantavam menos poeira.Billy voltou no meio da tarde, galopando com pressa, o rosto suado e sombrio.— Tem água — disse assim que parou, sem desmontar. — Pouca. Rasa. No fundo do leito. Mas tem um coiote morto lá dentro. G
A noite chegou sem avisar. O céu não se acendeu em cores, nem ofereceu um adeus dourado. Apenas escureceu. Rápido. Sem lua. Apenas vento gelado. Como se o mundo tivesse decidido apagar as luzes.O gado continuava em marcha. Por inércia, por costume, por medo. Mas cada passo parecia mais pesado que o anterior. Já haviam deixado o chão pedregoso para trás, mas o gado se movia sem motivação, apenas seguindo a marcha dos bois líderes. Às vezes, um ou outro animal mugia pedindo pela água que nunca chegava. Os cavalos tinham no pescoço uma camada fina de sal, bufavam e também erguiam o focinho de vez em quando, desejando e farejando por água. Os cascos tropeçavam. As pernas falhavam. Um boi caiu e foi puxado de volta à marcha com gritos e varadas.Os vaqueiros não falavam mais. Não havia força para conversa. Apenas comandos secos. Cortes rápidos de voz no escuro:— Direita.— Anda.— Atrás dele.Melody sentia o frio se infiltrando pelos ossos, mais cruel que a fadiga. O cavalo sob ela arfav
O balde de água suja derramou mais uma vez sobre o piso que ela havia acabado de limpar. O líquido imundo escorreu pelas ranhuras das tábuas de madeira, formando pequenas poças que refletiam a pouca luz do fim de tarde. Melody apertou os olhos, cerrando os dentes com força para não praguejar. Não adiantava. Não importava quantas vezes ela esfregasse aquele chão, ele sempre pareceria sujo. Como tudo ali. Como ela mesma.Num suspiro profundo, ela ergueu o balde mais uma vez. O vestido molhado na barra estava pesado, grudento. Seus cabelos platinados, presos em um coque apertado, grudavam na nuca suada. A faixa enrolada ao redor do peito lhe estrangulava a respiração, castigando os seios em um aperto torturante. Mas era necessário. Tudo isso era necessário.A dor nos rins pulsava, irradiando pela coluna, e Melody soube que suas regras estavam para chegar. Talvez fosse melhor assim. Qualquer coisa era melhor do que ter que encarar o que poderia acontecer se deixasse de ser invisível. Melh
Melody despejou o balde de água suja na varanda dos fundos, assistindo ao líquido escorrer entre as frestas das tábuas desgastadas até desaparecer no chão arenoso. Por um instante, permitiu-se respirar fundo, fechando os olhos para sentir a brisa quente que soprava do horizonte. Logo seria hora do almoço, e a Casa do Sol Nascente se transformaria em um forno sufocante, impregnado dos aromas da cozinha, suor e perfumes baratos.Ela empurrou a porta traseira com o quadril, entrando no ambiente abafado e quase insuportável da cozinha. O calor parecia grudar em sua pele, fazendo as roupas já úmidas colarem ainda mais ao corpo. A cozinheira, uma senhora robusta de rosto avermelhado pelo calor do fogão à lenha, ergueu os olhos e acenou rapidamente com a cabeça.— Chegou bem na hora, menina. Ajuda aqui com as batatas antes que cozinhem demais.Melody assentiu em silêncio, pegando um pano para não queimar as mãos enquanto removia a panela pesada do fogo. O cheiro fez sua boca aguar.Estava de
Depois do almoço, Melody e as outras garotas que não haviam sido solicitadas na noite anterior começaram a tarefa exaustiva de arrumar os quartos do bordel. Elas arrancavam as roupas de cama, enrolando-as em grandes trouxas para serem levadas à lavanderia improvisada nos fundos da casa.— Juro que esses homens são piores do que crianças bagunceiras — reclamou Sarah, puxando um lençol manchado com expressão de nojo. — E ainda falam que nós somos sujas.Melody não conseguiu evitar um sorriso diante da indignação da amiga.— Eles falam demais, isso sim. Às vezes acho que sabem mais fofocas do que as próprias esposas — comentou Melody, retirando uma fronha e jogando-a sobre a pilha crescente.Sarah riu, balançando a cabeça enquanto dobrava um edredom.— Ah, sim. Dois copos de uísque e pronto, lá vem a caixa de Pandora aberta. Sabia que o xerife foi flagrado pela esposa ontem à noite, saindo escondido em direção ao bordel?— Jura? — Melody arregalou os olhos, surpresa e divertida. — Como v
Carregando os lençóis empilhados nos braços, Melody desceu as escadas com cuidado, sentindo o peso deles puxando seus ombros para baixo a cada passo. O ranger dos degraus se misturava ao burburinho distante vindo do salão, risadas arrastadas pelo álcool, o estalo dos copos, o tilintar das moedas trocando de mãos. O cheiro adocicado do perfume barato ainda impregnava o ar, misturado à poeira da madeira envelhecida e ao aroma forte de gordura vindo da cozinha.Ao alcançar os fundos do bordel, seu olhar foi imediatamente atraído pelo poço onde teria que buscar água para lavar os lençóis. Seu estômago se contraiu, e um arrepio frio subiu pela nuca, como se a sombra da falecida ainda pairasse ali.Jogou parte da roupa de cama dentro de uma tina enorme e pegou o balde. O peso da alça em sua mão parecia mais denso do que deveria, como se o passado estivesse puxando-a em direção ao poço.Um arrepio involuntário percorreu sua espinha.Pensar em Esperanza encontrada sem vida e cheia de hematoma