Narrado por Mia Walker
O som enferrujado da tranca ecoou no pequeno banheiro quando Mikhail finalmente cedeu. Depois de horas — talvez dias, já tinha perdido a conta —, ele me permitiu usar o banheiro. Mas a sensação de alívio se dissipou rápido, substituída pela vergonha: ele permaneceu lá, me observando como uma águia faminta, cada movimento meu registrado naqueles olhos frios e afiados. Tentei ignorá-lo, embora a humilhação queimasse minha pele. As lágrimas ameaçaram brotar novamente, mas me recusei a dar a ele mais esse prazer. Concentrei-me apenas em terminar e me recompor da melhor maneira possível. Me aproximei do espelho quebrado pendurado na parede, encarando meu reflexo mutilado através dos cacos. Minha aparência era deplorável: os cabelos desgrenhados, a pele pálida com manchas vermelhas nos pulsos e tornozelos onde as amarras haviam mordido minha carne. Meus olhos, outrora vibrantes, pareciam vazios, apagados. Passei a mão trêmula pelo rosto, tentando encontrar algum traço da garota que havia sido. Da estudante universitária que passava horas em cafés baratos estudando literatura enquanto fingia que tinha amigos verdadeiros. Talvez nunca tivesse tido, apenas presenças temporárias que amenizavam minha solidão. O estalo seco da voz de Mikhail me arrancou desse lamento silencioso: — Já terminou, boneca? — a impaciência impregnava cada sílaba. Assenti, incapaz de encará-lo. Assim que passei pela porta, meu corpo cedeu. Tudo girou. A parede fria foi a única coisa que impediu minha queda. — Merda... — ouvi Mikhail praguejar, segurando meu braço com força desnecessária para me manter de pé. A dor no estômago era insuportável, como se minhas entranhas tentassem se devorar em desespero. Minha voz saiu fraca, quase um sussurro: — Se quer me matar... faça logo. Não precisa me torturar com fome. Meus olhos buscaram os dele, desafiadores apesar do cansaço. Por um segundo, vi algo quebrar naqueles olhos gelados. Algo que ele rapidamente mascarou com indiferença. — Já fiz coisas bem piores do que deixar uma princesa morrer de fome. — ele disse com um meio sorriso cruel. — Mas não hoje. Ele me puxou pelo braço, me guiando através de corredores escuros até uma cozinha. Ou o que um dia foi uma cozinha. O lugar estava em total decadência — armários caídos, azulejos rachados, o cheiro de mofo impregnado em cada superfície. Sentei-me numa cadeira velha que rangeu sob meu peso fraco. Observei Mikhail enquanto ele remexia em armários, tirando pedaços de comida como se fosse uma tarefa tediosa. Seus movimentos eram ágeis, calculados — um predador acostumado a sobreviver entre ruínas. Minutos depois, ele jogou um sanduíche improvisado e um suco de caixinha à minha frente. — Coma. — ordenou, a voz dura. A fome era uma faca em minhas entranhas, mas mesmo assim hesitei. Parecia errado aceitar algo vindo dele. Ainda assim, murmurei um “obrigada”, a palavra saindo amarga. Mikhail se encostou na bancada, me observando comer. Senti seu olhar queimando minha pele, como se cada mordida fosse uma humilhação para nós dois. Quando terminei, enxuguei a boca com as costas da mão, tentando ignorar o calor incômodo que subia pelo meu pescoço. Ele suspirou pesadamente. — Eu não sei mais o que fazer com você, boneca. — sua voz era um sussurro áspero, carregado de uma frustração que parecia tão antiga quanto ele mesmo. — Se eu te mantiver aqui enquanto aquele desgraçado do seu pai ainda respira... vai acabar explodindo. E a explosão... — ele se curvou para frente, os olhos fixos nos meus — vai recair toda sobre você. Engoli em seco. Algo na forma como ele disse aquilo fez minha pele arrepiar. — Talvez... — comecei, a voz falhando — talvez eu já tenha vivido o bastante em infernos. Antes... e agora. Minhas palavras pairaram no ar, pesadas e tristes. E, surpreendentemente, vi Mikhail endurecer o maxilar, como se tivesse sido atingido por algo. — Não precisa me poupar. — acrescentei, encarando-o de frente. — Você me odeia tanto assim? Ele deu uma risada baixa, sombria. — Odiar você? — repetiu, como se saboreasse a ideia. — Você é boa demais, Mia. Inocente demais. Um anjo caído no meio do inferno. — sua voz baixou ainda mais, rouca. — Você é uma tentação para homens como eu. Minhas sobrancelhas se arquearam involuntariamente. — Homens como você? — perguntei. Mikhail se aproximou, até que pude sentir o calor de seu corpo irradiando contra o meu. Se ajoelhou diante de mim, nivelando nossos olhos, a tensão cortante entre nós. — Monstros, boneca. — sussurrou, sua mão deslizando lenta e deliberadamente sobre meu joelho, como se estivesse marcando território. — Monstros que te caçariam até no submundo. Minhas pernas tremeram, mas não de medo. Havia algo ali, uma força primal, feroz, que me chamava para dentro dele. Era insano. Ele era meu sequestrador. Meu inimigo. E ainda assim... meu corpo traía toda a lógica, respondendo ao seu toque, à sua voz rouca. Seus dedos subiram mais, ameaçando ultrapassar o limite do permitido, e minha respiração se acelerou. Meus olhos ficaram presos nos dele, como uma mariposa atraída pelas chamas. — Você tem medo de monstros, Mia? — sua voz era puro veneno doce. — Tenho medo... — admiti, a respiração trêmula. — Mas não deles. — Então de quem? — ele perguntou, inclinando a cabeça, seus lábios tão próximos dos meus que senti o roçar de sua respiração. — De mim mesma. — confessei, quase num sussurro. Mikhail sorriu — um sorriso lento, perigoso, que me fez estremecer. — Isso... — ele rosnou — é mais perigoso do que qualquer coisa que eu possa fazer com você. Ele se levantou abruptamente, como se precisasse se afastar antes que perdesse o pouco controle que ainda mantinha. Eu fiquei ali, tremendo, a pele latejando onde ele me tocou. Por um longo momento, o silêncio caiu entre nós, carregado de tensão. Então, ele falou: — Não pense que sua bondade vai me mudar, boneca. — sua voz era uma lâmina fria. — Eu sou feito de sangue, aço e promessas quebradas. Não existe redenção para mim. Eu o encarei, vendo além das camadas de brutalidade. Vendo o homem que amava seu irmão, que enterrou seu melhor amigo em terra estrangeira, que me alimentou quando podia ter me deixado morrer. — Talvez... — sussurrei — talvez você esteja apenas procurando algo para te salvar também. Ele congelou, seus olhos escurecendo. Por um segundo, pensei que ele fosse me agarrar, me esmagar em sua fúria. Mas, em vez disso, ele apenas virou as costas, os punhos cerrados. — Termine de comer. — ordenou, a voz tensa. — Amanhã... vamos ter muito mais para discutir. Eu sabia que era uma promessa sombria. Mas, pela primeira vez em dias, não me senti completamente sozinha. Porque, no fundo, talvez meu monstro também estivesse perdido no escuro. E talvez... eu quisesse me perder com ele.Narrado por Mia Walker Já era o terceiro dia no meu inferno particular.A noção de tempo havia se diluído entre paredes mofadas e o cheiro metálico de sangue impregnado em cada centímetro daquele lugar. As horas escorriam como tinta preta, e a luz do dia era apenas uma lembrança esquecida. Eu me sentia como um rato em uma gaiola invisível, sendo observado, testado… punida sem sequer saber por quê.Mikhail não me tocava mais com lâminas, mas suas palavras, seus olhares, suas ausências e presenças repentinas eram golpes silenciosos, desferidos com precisão cirúrgica. Cada silêncio dele era um grito abafado dentro de mim. A água vinha em goles contados. A comida, sempre fria, parecia só uma provocação. E o sono… esse era um privilégio que vinha acompanhado de pesadelos tão vívidos quanto a realidade.Acordei assustada, como das outras vezes. Encostei as costas na parede áspera, sentindo as farpas do concreto rachado rasparem contra minha pele. Meus olhos vagaram pelo cômodo escuro até o
Narrado por Mikhail Petrov Já era o quarto dia. Quatro malditos dias em que eu tinha me tornado um prisioneiro da minha própria armadilha. Ela continuava ali, deitada na cama, nua, os cabelos bagunçados caindo sobre o rosto, os pulsos ainda marcados pelo cinto. Tão frágil. Tão linda. E, ainda assim, tão perigosamente viciante. A mulher que eu havia prometido usar e destruir. Mas que agora... agora habitava meu inferno particular. Mia. Eu a havia corrompido. Tomado sua virgindade da forma mais brutal. Sem promessas. Sem romantismo. Só selvageria. Só domínio. E o mais desprezível de tudo... eu havia gostado. Porra, como eu havia gostado. Me sentei à beira do colchão, o cotovelo apoiado sobre o joelho, a cabeça mergulhada nas mãos. Eu podia ouvir sua respiração leve, lenta, quase inocente. Ela dormia como se não tivesse sido arrancada do mundo dela. Como se já tivesse se acostumado com a prisão que eu construí. Mas eu sabia que não. Aquilo era fingimento. Resistência. Ela era filh
Narrado por Mia WalkerMais um dia amanhecia naquele buraco esquecido por Deus, e, por um segundo, Mia acreditou que estava sonhando. A claridade tênue da manhã mal atravessava as cortinas grossas, e o silêncio era quase incômodo. Mas logo a realidade a alcançou, cortante como navalha. Mikhail entrou no quarto sem bater, como sempre fazia. Seus olhos carregavam uma expressão indecifrável, quase entorpecida, e sua voz veio fria e direta:— Levanta. Você vai embora hoje.Mia piscou devagar, tentando processar as palavras. Não sentia alegria, nem alívio imediato. Apenas uma pressão súbita no peito, como se algo estivesse prestes a ser arrancado à força de dentro dela.— Agora? — perguntou, a voz rouca do sono mal dormido.Mikhail não respondeu. Apenas a observou com aquele olhar de ferro fundido, duro e impenetrável. Ela se levantou em silêncio, ainda vestindo apenas uma camisa dele — a mesma que havia se tornado uma espécie de armadura improvisada nos últimos dias. A manga cobria parte
Narrado por Mikhail Petrov Matei um homem hoje.Não que isso seja novidade. É o que faço. É o que sou. Um fantasma, um sussurro entre assassinos, uma lenda silenciosa nos becos gelados da Rússia. Mas hoje... hoje foi diferente. Porque, ao puxar o gatilho, não senti o gosto da vitória. Não saboreei o alívio da vingança. Senti... vazio.Deixei Mia horas antes do disparo. Ainda podia sentir o cheiro dela no meu peito, na camisa que agora estava dobrada no banco traseiro da minha Porsche. Aquela garota maldita havia me desarmado, e isso me enojava. E me atraía.Mateo me ligou assim que deixei Mia em uma das ruas centrais de Los Angeles. O sol ainda nem havia esquentado o asfalto, e eu já estava de volta ao modo autônomo, frio, letal.— James vai estar no Tribunal de Justiça, às quinze horas. Tem uma entrada lateral reservada para figurões. Visitei um prédio a trinta metros dali. Vista livre, sem vigilância.— Posso fazer isso de olhos fechados — respondi. E podia mesmo. Já havia feito mu
Narrado por Mikhail PetrovO cheiro de óleo, pólvora e ferrugem impregnava o ar do porão. Uma sala enorme, com paredes de concreto rachado, estantes de metal abarrotadas de armas de todos os calibres e caixas marcadas com símbolos que o mundo nunca deveria conhecer. A luz amarelada piscava de tempos em tempos, criando sombras nas paredes que pareciam monstros se contorcendo no breu. Era o meu templo. Meu santuário. Meu esconderijo.Abaixei-me para examinar a mira de um dos rifles de precisão quando o celular vibrou no bolso da minha calça jeans surrada. O número na tela me fez franzir a testa. Nikita não ligava sem motivo. Peguei o telefone e atendi, sentindo uma tensão involuntária subir pela minha espinha.— Fala — minha voz saiu grave, seca.— Mikhail... — a voz do outro lado parecia hesitante, pesada — você precisa saber disso. É sobre o Dimitri.Fechei a mão em volta do telefone com força suficiente para fazer meus nós dos dedos ficarem brancos. Dimitri era tudo que me restava. M
Narrado por Mikhail PetrovO motor do carro roncava baixo enquanto eu observava a calçada do outro lado da rua. O final da tarde pintava Los Angeles com uma cor dourada que não combinava em nada com o que eu sentia por dentro. Apoiei o braço na janela aberta, o vento quente me acertando o rosto, enquanto meus olhos se fixavam nela.Mia Walker.Vinte e um anos. Estudante de literatura. Sem antecedentes criminais, sem ligações perigosas. Uma vida limpa, inocente... diferente de tudo que eu conhecia. Ela era, ironicamente, o oposto da podridão do sangue que corria em seu sobrenome. James Walker. O homem que matou meu irmão, mesmo sem sujar as próprias mãos. Meu peito ainda ardia com o gosto amargo da perda, mas enquanto via Mia caminhar pela rua, tão despreocupada, sentia uma outra coisa crescer dentro de mim. Algo quente. Algo sujo.Mateo tinha me avisado que seria assim. Disse que às vezes a vingança te arrastava para becos escuros da alma onde você nem sabia que podia chegar. E ali es
Narrado por Mia WalkerEu já tinha ouvido falar do inferno, lido sobre ele em livros, ouvido padres pregarem em igrejas lotadas. Mas nunca imaginei que o inferno pudesse ter cheiro de mofo, chão de terra batida e correntes frias que cortavam a pele. Nunca imaginei que o inferno seria solitário, cruel e silencioso como esse buraco onde eu estava enfiada. E que o demônio teria olhos tão azuis quanto o céu de inverno.Minha infância nunca foi digna de contos de fada. Minha mãe morreu quando nasci, e o que sobrou para mim foi a presença fria de babás pagas e olhares carregados de indiferença do meu pai e do meu irmão mais velho. Cresci cercada de luxo, mas privada do que realmente importava: amor. E mesmo assim, mesmo agora, trancada nesse lugar imundo, algo dentro de mim insistia em acreditar que meu pai viria me procurar. Era irracional, talvez patético, mas era a única esperança à qual eu conseguia me agarrar.Já tinha passado uma noite inteira e metade de um dia desde que aquele homem
Narrado por Mikhail Petrov O segundo dia amanhecia no cativeiro, se é que podia chamar aquela mansão velha e esquecida de algo tão sofisticado. O sol mal atravessava as janelas empoeiradas, e o silêncio era apenas quebrado pela respiração inquieta de Mia.De onde eu estava, encostado na parede oposta, meus olhos não desgrudavam dela. O jeito como o corpo pequeno se encolhia no colchão improvisado, a pele clara marcada em tons vermelhos vivos — consequências da nossa última interação — me hipnotizava de uma maneira que eu odiava admitir. O calor subia pelas minhas veias feito veneno. Cada cicatriz, cada suspiro quebrado dela me instigava como gasolina sobre brasas vivas.Maldição... Ela era bonita até mesmo na dor. E isso me irritava mais do que qualquer outra coisa.Cruzei os braços, controlando a vontade absurda que ardia dentro de mim. Mia era um troféu de guerra, uma vingança contra o homem que me tirou tudo. Ela não era para ser desejada, não era para me fazer sentir nada além de