Narrado por Mikhail Petrov
O segundo dia amanhecia no cativeiro, se é que podia chamar aquela mansão velha e esquecida de algo tão sofisticado. O sol mal atravessava as janelas empoeiradas, e o silêncio era apenas quebrado pela respiração inquieta de Mia. De onde eu estava, encostado na parede oposta, meus olhos não desgrudavam dela. O jeito como o corpo pequeno se encolhia no colchão improvisado, a pele clara marcada em tons vermelhos vivos — consequências da nossa última interação — me hipnotizava de uma maneira que eu odiava admitir. O calor subia pelas minhas veias feito veneno. Cada cicatriz, cada suspiro quebrado dela me instigava como gasolina sobre brasas vivas. Maldição... Ela era bonita até mesmo na dor. E isso me irritava mais do que qualquer outra coisa. Cruzei os braços, controlando a vontade absurda que ardia dentro de mim. Mia era um troféu de guerra, uma vingança contra o homem que me tirou tudo. Ela não era para ser desejada, não era para me fazer sentir nada além de desprezo e satisfação cruel. Mas a cada gemido contido, a cada movimento dela no sono conturbado, a batalha entre minha mente e meu corpo se tornava mais difícil de vencer. A vela da noite anterior ainda queimava seus resquícios no canto do quarto, e o cheiro de parafina misturado ao suor impregnava o ar. Senti meu punho se fechar. Eu precisava sair dali antes que fizesse algo de que pudesse me arrepender. Saí, batendo a porta atrás de mim com mais força do que deveria. Caminhei até o térreo, onde o cheiro de mofo parecia menos opressor, acendendo um cigarro enquanto me deixava cair sobre o sofá rasgado. Alguns minutos depois, ouvi o som do motor se aproximando na entrada. Mateo. Levantei devagar, indo ao encontro do meu amigo. Assim que ele cruzou a porta, o peso da perda que compartilhávamos caiu entre nós feito uma bomba silenciosa. — Está feito — disse ele, jogando as chaves sobre a mesa. — Dimitri está enterrado. Um cemitério local, nada que ele merecesse... mas foi o melhor que consegui. Fechei os olhos por um instante, permitindo que a dor me atravessasse como uma faca. Dimitri deveria estar na Rússia, entre os nossos, não naquele buraco esquecido por Deus. — Você fez o que pôde, irmão — murmurei, a voz rouca de raiva contida. — Obrigado. Mateo assentiu, mas seu olhar, sempre tão firme, estava pesado. — Sobre a garota... — ele começou, coçando a barba. — O pai dela... James Walter... ele nem sequer notou a ausência dela. Nem o irmão. Eles não moveram um dedo pra encontrá-la. A informação deveria me deixar satisfeito, confirmar a ideia de que Mia era apenas mais um instrumento na minha vingança. Mas algo dentro de mim se retorceu. Como podia? Ela era sangue deles. — Desgraçados — cuspi, jogando o cigarro longe. — Eles não merecem nem o ar que respiram. Mateo apenas deu de ombros. — Ela está nas suas mãos agora. — Ele sorriu de forma quase triste. — Tome cuidado pra não se perder no processo. Antes que eu pudesse responder, um grito cortou o silêncio da casa. Imediatamente, minha expressão mudou, endurecendo ainda mais. — Você já pode ir — falei, seco. Mateo, entendendo sem precisar de mais palavras, assentiu e desapareceu pela porta da frente. Subi as escadas em passos pesados, a raiva me consumindo a cada segundo. Abri a porta do quarto com violência, vendo Mia encolhida no canto, os olhos arregalados e brilhando em lágrimas. O som da corrente batendo ecoou nas paredes. Ela era frágil, quebrada... mas ainda ousava me desafiar com aqueles olhos. Agarrei seu queixo com força, obrigando-a a me encarar. — Que porra você quer agora, boneca? — rosnei, vendo-a estremecer. Mia mordeu o lábio inferior antes de sussurrar: — Eu... eu preciso usar o banheiro. Minha mandíbula se contraiu. Maldito seja meu instinto de querer dar a ela qualquer respiro. Eu devia deixá-la ali, se mijando de medo, para aprender a nunca pedir nada. Soltei seu rosto com brutalidade, dando um passo para trás. — Você acha que tem o direito de exigir alguma merda aqui? — cuspi as palavras. — Acha mesmo que pode mandar em alguma coisa? Ela ergueu o queixo, embora as lágrimas escorressem por suas bochechas sujas. — Eu prefiro morrer do que continuar aqui — disse, a voz trêmula, mas decidida. Soltei uma risada seca, cheia de crueldade. — Isso aqui é apenas o começo, boneca. Você não tem direito a nada. Nem mesmo a morte, se eu não permitir. O silêncio entre nós se tornou sufocante. A tensão era palpável, pesada como uma tempestade prestes a desabar. Respirei fundo, tentando controlar a tempestade dentro de mim. Me aproximei novamente, dessa vez com menos violência, e me abaixei para ficar à altura dos olhos dela. Sussurrei, deixando cada palavra cortar o ar como uma faca: — Seu pai sequer notou que você sumiu. Se você morrer aqui, Mia, não vai fazer falta a ninguém. Ela piscou, as lágrimas borbulhando com mais força, mas não pela dor física. Era outra ferida que eu havia aberto. Uma mais profunda. Abaixei a mão, soltando um suspiro pesado, um som mais de cansaço do que de raiva. — Ele nunca notou a minha presença nesses vinte e um anos de existência mesmo — ela respondeu, a voz embargada, mas sem fraquejar. Por um breve momento, algo dentro de mim rachou. Minha mão, antes tão tensa, relaxou. Nenhuma família é perfeita. As palavras ecoaram em minha cabeça. Nenhuma família é perfeita, mas a que se constrói, essa sim, tem o poder de te salvar. Eu e Dimitri tínhamos construído uma família juntos, um elo forjado no sangue e na dor. Algo que James Walter nos arrancou com as próprias mãos sujas. Encostei a testa na dela por um breve instante, deixando o calor da pele de Mia me atingir, mesmo contra minha vontade. — Família... — sussurrei. — Não é aquela que te dá o sangue. É a que escolhe lutar ao seu lado. A que não te abandona. Levantei-me de súbito, recuando como se tivesse sido queimado. Não podia me permitir suavizar. Não com ela. Não agora. Antes que eu me arrependesse, saí do quarto, trancando a porta atrás de mim com um estrondo. Mia ficaria ali. Isolada. Sozinha. Assim como eu estive toda minha vida. A diferença é que, para ela, talvez ainda houvesse salvação. Para mim, era tarde demais.