Narrado por Mia Walker
Eu já tinha ouvido falar do inferno, lido sobre ele em livros, ouvido padres pregarem em igrejas lotadas. Mas nunca imaginei que o inferno pudesse ter cheiro de mofo, chão de terra batida e correntes frias que cortavam a pele. Nunca imaginei que o inferno seria solitário, cruel e silencioso como esse buraco onde eu estava enfiada. E que o demônio teria olhos tão azuis quanto o céu de inverno. Minha infância nunca foi digna de contos de fada. Minha mãe morreu quando nasci, e o que sobrou para mim foi a presença fria de babás pagas e olhares carregados de indiferença do meu pai e do meu irmão mais velho. Cresci cercada de luxo, mas privada do que realmente importava: amor. E mesmo assim, mesmo agora, trancada nesse lugar imundo, algo dentro de mim insistia em acreditar que meu pai viria me procurar. Era irracional, talvez patético, mas era a única esperança à qual eu conseguia me agarrar. Já tinha passado uma noite inteira e metade de um dia desde que aquele homem me arrancara da minha vida. Meus pulsos doíam de tanto puxar as correntes, meu estômago se contorcia em cólicas de fome, e meus lábios estavam rachados de sede. Ele havia me deixado aqui como quem esquece uma boneca quebrada em um canto escuro, sem comida, sem água, sem sequer olhar para trás. Eu estava exausta, mas o medo me mantinha acordada. O ranger da porta me despertou de um torpor que não sabia ser sono ou desespero. A figura dele surgiu na penumbra, alta, ameaçadora, carregando uma vela acesa na mão. A chama tremeluzente jogava sombras dançantes nas paredes sujas, tornando tudo ainda mais macabro. Meu coração disparou, mas eu obriguei minha voz a sair. — Qual é o seu nome? — perguntei, a garganta áspera como lixa. Ele parou a poucos metros de mim, observando-me com aquela expressão de puro desprezo misturado com uma diversão cruel. A luz da vela iluminava metade do seu rosto, realçando a linha afiada do maxilar, os lábios curvados em um sorriso cínico. — E por que diabos eu deveria te dizer? — retrucou ele, a voz grave e arrastada como veludo sujo. — É injusto — rebati, tentando soar firme, mesmo que minhas pernas estivessem tremendo sob mim. — Você sabe meu nome. Eu mereço saber o seu. Ele soltou uma risada baixa, debochada, que ecoou pelas paredes de pedra como um trovão sombrio. — Boneca, o mundo nunca foi justo com você. Por que eu seria? — Ele deu um passo à frente, abaixando-se até ficar na altura dos meus olhos. — Mas, já que você pediu com tanto jeitinho... Mikhail. O nome saiu dos seus lábios como uma sentença. Mikhail. Um nome bonito demais para um monstro como ele. Tentei manter minha expressão neutra, mas era difícil diante daquele olhar predatório. Entre nós se desenrolou um diálogo estranho, quase sórdido, feito de farpas disfarçadas, provocações veladas. Eu evitava desafiá-lo diretamente. Não fazia parte de mim a natureza agressiva; minha defesa sempre foi a resignação silenciosa, a esperança estúpida de que, se eu me comportasse, as coisas não piorariam. Mas no fundo eu sabia que ele não precisava de motivos para ser cruel. A maldade já corria em seu sangue. Ele saiu tão repentinamente quanto entrou, deixando-me novamente sozinha no breu, a vela sendo a única testemunha do meu desespero. As horas passaram de forma indistinta, misturando-se em uma massa disforme de dor e cansaço, até que a porta rangeu mais uma vez. Mikhail entrou, dessa vez com um sorriso que fez cada centímetro do meu corpo enrijecer. Na mão, além da vela, ele trazia algo que brilhou à luz: um canivete. Um arrepio percorreu minha espinha. — Está na hora do seu castigo, boneca — murmurou ele, com uma doçura fingida que fez meu estômago revirar. Tentei recuar, mas as correntes me mantinham presa como um animal encurralado. Ele se aproximou devagar, saboreando o medo que via nos meus olhos. Eu fechei as pálpebras com força, tentando me preparar para o que viesse. O corte veio rápido, preciso, em minha coxa. Arregalei os olhos e soltei um gemido baixo de dor. Era suportável, como o arranhão de uma faca afiada. Eu podia lidar com isso. Eu podia aguentar. Mas não foi o corte que me fez desejar morrer. Foi o que veio depois. Mikhail inclinou a vela sobre a ferida aberta. A primeira gota de cera caiu com um chiado quase inaudível... e a dor explodiu como uma bomba dentro de mim. Gritei sem querer, a voz ecoando pelas paredes como um animal ferido. Era como se minha alma estivesse sendo arrancada do meu corpo em pedaços. Ele sorriu. Um sorriso satisfeito, perverso. — Tão sensível, boneca... — murmurou ele, pingando outra gota, e outra, e outra. Cada nova queimadura arrancava de mim uma súplica muda, uma lágrima teimosa. Enquanto ele torturava minha pele, suas palavras escorriam como veneno: — Você é mesmo linda... até chorando. Especialmente chorando. Minha mente gritava para que eu o odiasse, para que me agarrasse ao nojo que sentia dele. Mas meu corpo... meu corpo era um traidor. Cada toque, cada palavra, cada olhar intenso, incendiava algo proibido dentro de mim. O calor da vela parecia se espalhar para além do corte, aquecendo lugares que eu não queria que esquentassem. Eu odiava Mikhail com cada fibra da minha razão, mas meu corpo... meu corpo o desejava com uma força que beirava o insano. Quando ele deslizou a mão áspera entre meus seios, o mundo inteiro pareceu parar. Meu coração bateu tão forte que doeu. Minha pele queimava de vergonha, de raiva... e de uma fome animalesca que eu não conseguia controlar. Ele se inclinou até seu hálito quente roçar meu ouvido e sussurrou: — Imagine o que eu poderia fazer se decidisse espalhar essa cera quente... por todo o seu corpinho... Minha cabeça tombou para trás, em parte pelo desespero, em parte pelo prazer cruel que suas palavras prometiam. Minha intimidade pulsava violentamente, um tambor invisível clamando por algo que eu deveria odiar, mas que desejava como o ar que eu respirava. Senti uma lágrima quente escorrer pelo meu rosto. Não era apenas dor física. Era o colapso da última muralha que eu havia erguido dentro de mim. Mikhail se afastou lentamente, saboreando cada pedaço da minha humilhação como um gourmet que aprecia o prato mais sórdido. — Você vai quebrar, boneca — disse ele, baixinho. — E eu estarei aqui para juntar cada pedaço. Depois disso, ele saiu, deixando-me sozinha mais uma vez com minha vergonha, minha dor e o desejo sujo que ele havia plantado em mim. Encolhi-me no chão sujo, tentando apagar a memória do toque dele, do calor dele. Mas era impossível. Mikhail estava dentro da minha pele agora. Dentro da minha cabeça. Dentro da minha alma. E eu sabia, com o pavor crescente de quem entende que está perdida, que ele ainda não havia terminado comigo. Não. Aquilo era apenas o começo. O começo do fim de Mia Walker.Narrado por Mikhail Petrov O segundo dia amanhecia no cativeiro, se é que podia chamar aquela mansão velha e esquecida de algo tão sofisticado. O sol mal atravessava as janelas empoeiradas, e o silêncio era apenas quebrado pela respiração inquieta de Mia.De onde eu estava, encostado na parede oposta, meus olhos não desgrudavam dela. O jeito como o corpo pequeno se encolhia no colchão improvisado, a pele clara marcada em tons vermelhos vivos — consequências da nossa última interação — me hipnotizava de uma maneira que eu odiava admitir. O calor subia pelas minhas veias feito veneno. Cada cicatriz, cada suspiro quebrado dela me instigava como gasolina sobre brasas vivas.Maldição... Ela era bonita até mesmo na dor. E isso me irritava mais do que qualquer outra coisa.Cruzei os braços, controlando a vontade absurda que ardia dentro de mim. Mia era um troféu de guerra, uma vingança contra o homem que me tirou tudo. Ela não era para ser desejada, não era para me fazer sentir nada além de
Narrado por Mia Walker O som enferrujado da tranca ecoou no pequeno banheiro quando Mikhail finalmente cedeu. Depois de horas — talvez dias, já tinha perdido a conta —, ele me permitiu usar o banheiro. Mas a sensação de alívio se dissipou rápido, substituída pela vergonha: ele permaneceu lá, me observando como uma águia faminta, cada movimento meu registrado naqueles olhos frios e afiados.Tentei ignorá-lo, embora a humilhação queimasse minha pele. As lágrimas ameaçaram brotar novamente, mas me recusei a dar a ele mais esse prazer. Concentrei-me apenas em terminar e me recompor da melhor maneira possível.Me aproximei do espelho quebrado pendurado na parede, encarando meu reflexo mutilado através dos cacos. Minha aparência era deplorável: os cabelos desgrenhados, a pele pálida com manchas vermelhas nos pulsos e tornozelos onde as amarras haviam mordido minha carne. Meus olhos, outrora vibrantes, pareciam vazios, apagados.Passei a mão trêmula pelo rosto, tentando encontrar algum traç
Narrado por Mia Walker Já era o terceiro dia no meu inferno particular.A noção de tempo havia se diluído entre paredes mofadas e o cheiro metálico de sangue impregnado em cada centímetro daquele lugar. As horas escorriam como tinta preta, e a luz do dia era apenas uma lembrança esquecida. Eu me sentia como um rato em uma gaiola invisível, sendo observado, testado… punida sem sequer saber por quê.Mikhail não me tocava mais com lâminas, mas suas palavras, seus olhares, suas ausências e presenças repentinas eram golpes silenciosos, desferidos com precisão cirúrgica. Cada silêncio dele era um grito abafado dentro de mim. A água vinha em goles contados. A comida, sempre fria, parecia só uma provocação. E o sono… esse era um privilégio que vinha acompanhado de pesadelos tão vívidos quanto a realidade.Acordei assustada, como das outras vezes. Encostei as costas na parede áspera, sentindo as farpas do concreto rachado rasparem contra minha pele. Meus olhos vagaram pelo cômodo escuro até o
Narrado por Mikhail Petrov Já era o quarto dia. Quatro malditos dias em que eu tinha me tornado um prisioneiro da minha própria armadilha. Ela continuava ali, deitada na cama, nua, os cabelos bagunçados caindo sobre o rosto, os pulsos ainda marcados pelo cinto. Tão frágil. Tão linda. E, ainda assim, tão perigosamente viciante. A mulher que eu havia prometido usar e destruir. Mas que agora... agora habitava meu inferno particular. Mia. Eu a havia corrompido. Tomado sua virgindade da forma mais brutal. Sem promessas. Sem romantismo. Só selvageria. Só domínio. E o mais desprezível de tudo... eu havia gostado. Porra, como eu havia gostado. Me sentei à beira do colchão, o cotovelo apoiado sobre o joelho, a cabeça mergulhada nas mãos. Eu podia ouvir sua respiração leve, lenta, quase inocente. Ela dormia como se não tivesse sido arrancada do mundo dela. Como se já tivesse se acostumado com a prisão que eu construí. Mas eu sabia que não. Aquilo era fingimento. Resistência. Ela era filh
Narrado por Mia WalkerMais um dia amanhecia naquele buraco esquecido por Deus, e, por um segundo, Mia acreditou que estava sonhando. A claridade tênue da manhã mal atravessava as cortinas grossas, e o silêncio era quase incômodo. Mas logo a realidade a alcançou, cortante como navalha. Mikhail entrou no quarto sem bater, como sempre fazia. Seus olhos carregavam uma expressão indecifrável, quase entorpecida, e sua voz veio fria e direta:— Levanta. Você vai embora hoje.Mia piscou devagar, tentando processar as palavras. Não sentia alegria, nem alívio imediato. Apenas uma pressão súbita no peito, como se algo estivesse prestes a ser arrancado à força de dentro dela.— Agora? — perguntou, a voz rouca do sono mal dormido.Mikhail não respondeu. Apenas a observou com aquele olhar de ferro fundido, duro e impenetrável. Ela se levantou em silêncio, ainda vestindo apenas uma camisa dele — a mesma que havia se tornado uma espécie de armadura improvisada nos últimos dias. A manga cobria parte
Narrado por Mikhail Petrov Matei um homem hoje.Não que isso seja novidade. É o que faço. É o que sou. Um fantasma, um sussurro entre assassinos, uma lenda silenciosa nos becos gelados da Rússia. Mas hoje... hoje foi diferente. Porque, ao puxar o gatilho, não senti o gosto da vitória. Não saboreei o alívio da vingança. Senti... vazio.Deixei Mia horas antes do disparo. Ainda podia sentir o cheiro dela no meu peito, na camisa que agora estava dobrada no banco traseiro da minha Porsche. Aquela garota maldita havia me desarmado, e isso me enojava. E me atraía.Mateo me ligou assim que deixei Mia em uma das ruas centrais de Los Angeles. O sol ainda nem havia esquentado o asfalto, e eu já estava de volta ao modo autônomo, frio, letal.— James vai estar no Tribunal de Justiça, às quinze horas. Tem uma entrada lateral reservada para figurões. Visitei um prédio a trinta metros dali. Vista livre, sem vigilância.— Posso fazer isso de olhos fechados — respondi. E podia mesmo. Já havia feito mu
Narrado por Mikhail PetrovO cheiro de óleo, pólvora e ferrugem impregnava o ar do porão. Uma sala enorme, com paredes de concreto rachado, estantes de metal abarrotadas de armas de todos os calibres e caixas marcadas com símbolos que o mundo nunca deveria conhecer. A luz amarelada piscava de tempos em tempos, criando sombras nas paredes que pareciam monstros se contorcendo no breu. Era o meu templo. Meu santuário. Meu esconderijo.Abaixei-me para examinar a mira de um dos rifles de precisão quando o celular vibrou no bolso da minha calça jeans surrada. O número na tela me fez franzir a testa. Nikita não ligava sem motivo. Peguei o telefone e atendi, sentindo uma tensão involuntária subir pela minha espinha.— Fala — minha voz saiu grave, seca.— Mikhail... — a voz do outro lado parecia hesitante, pesada — você precisa saber disso. É sobre o Dimitri.Fechei a mão em volta do telefone com força suficiente para fazer meus nós dos dedos ficarem brancos. Dimitri era tudo que me restava. M
Narrado por Mikhail PetrovO motor do carro roncava baixo enquanto eu observava a calçada do outro lado da rua. O final da tarde pintava Los Angeles com uma cor dourada que não combinava em nada com o que eu sentia por dentro. Apoiei o braço na janela aberta, o vento quente me acertando o rosto, enquanto meus olhos se fixavam nela.Mia Walker.Vinte e um anos. Estudante de literatura. Sem antecedentes criminais, sem ligações perigosas. Uma vida limpa, inocente... diferente de tudo que eu conhecia. Ela era, ironicamente, o oposto da podridão do sangue que corria em seu sobrenome. James Walker. O homem que matou meu irmão, mesmo sem sujar as próprias mãos. Meu peito ainda ardia com o gosto amargo da perda, mas enquanto via Mia caminhar pela rua, tão despreocupada, sentia uma outra coisa crescer dentro de mim. Algo quente. Algo sujo.Mateo tinha me avisado que seria assim. Disse que às vezes a vingança te arrastava para becos escuros da alma onde você nem sabia que podia chegar. E ali es