Mundo ficciónIniciar sesiónLucy entrou em casa, o coração acelerado, ainda digerindo a revelação do banco. A sala estava escura, iluminada apenas pela luz tremeluzente da televisão. Mary, sua mãe, estava esparramada no sofá puído, uma garrafa de uísque pela metade na mesa de centro. Seus cabelos ruivos, desgrenhados, caíam sobre o rosto, e seus olhos verdes, opacos, fixavam-se na tela. Lucy parou na porta, apertando o colar de meia-lua que tirara da gaveta antes de sair do carro. O pingente parecia quente contra sua palma, e por um instante, ela sentiu um pulsar estranho, como se ele soubesse dos segredos que Mary escondia.
— O que foi? — Mary perguntou, erguendo os olhos, surpresa com o olhar intenso da filha.
Lucy respirou fundo, a raiva borbulhando em seu peito.
— Sóbria? Que novidade, mamãe — ironizou, a voz cortante.— Que tom é esse? Como ousa falar assim comigo? — Mary endireitou-se, mas sua voz tremia, denunciando a fragilidade por trás da fachada.
— Por que não me disse que eu tinha uma avó? — Lucy viu o rosto de Mary empalidecer, como se todo o sangue tivesse sumido. — Bethany Sales, mamãe! Ela morreu, e você nunca me contou que ela existia!
Mary recuou, encolhendo-se no sofá.
— Do que você tá falando? — murmurou, mas sua voz falhou, traindo-a.— O que mais você esconde? — Lucy avançou, as mãos cerradas. — Quem mais eu tenho que esperar morrer pra saber que faz parte da minha família?
— Quem te contou? — Mary perguntou, os olhos arregalados, quase assustados.
— Ia mentir pra sempre? — Lucy deu uma risada cansada, irônica. — Ia me prender aqui, usando o dinheiro da pensão pro seu vício, enquanto eu cuido de você como se fosse a mãe?
Mary se levantou, cambaleando, e tentou se aproximar. Lucy recuou, o colar pulsando contra seu peito.
— Eu ia te contar no momento certo — disse Mary, a voz fraca.— E quando seria? — Lucy quase gritou, a garganta apertada. — Quando você decidisse se portar como mãe, pra variar?
Mary começou a chorar, as lágrimas escorrendo silenciosamente. Por um instante, Lucy sentiu uma pontada de culpa, mas a raiva era mais forte.
— Você não entende — murmurou Mary, enxugando o rosto com as mãos trêmulas.— O que? Que você é egoísta? — Lucy virou-se, incapaz de encarar o que parecia um teatro. — Já passou pela sua cabeça que eu queria uma avó? Alguém que realmente cuidasse de mim?
— Acredite, foi melhor você não conhecê-la — disse Mary, a voz embargada. — Ela pediu que eu te levasse embora, que te afastasse de tudo.
— Então por que ela deixou a pensão pra mim? — Lucy retrucou. — Por anos, ela pagou pra me sustentar. Não parece algo que alguém que me odiasse faria.
Mary respirou fundo, como se lutasse contra algo dentro de si.
— Porque você é a última Sales. Pra quem mais ela deixaria? Ela não tinha escolha.— O advogado vem amanhã — disse Lucy, cruzando os braços. — Por que você não me contou? Por que escondeu isso?
Mary desabou no sofá, derrotada, os olhos fixos na garrafa.
— Não queria que você soubesse dela. Não queria que tivesse que voltar.— Voltar pra onde? — Lucy franziu a testa, sentindo o colar vibrar. Uma imagem fugaz passou por sua mente: um castelo envolto em névoa, com uma figura de cabelos vermelhos à entrada, sussurrando palavras que ela não entendia. Ela piscou, atordoada, a visão sumindo tão rápido quanto veio.
— Pra lá. Pra aquela maldita cidade! — Mary exclamou, a voz confusa, quase desesperada.
— Cameron? — Lucy perguntou, o nome ecoando como uma memória distante. — Onde meu pai morreu?
Mary congelou, os olhos arregalados. Ela nunca falara sobre a morte de Dick, e Lucy percebeu que tocara em algo proibido.
— Onde tudo acaba — disse Mary, a voz quase um sussurro. — Não vamos voltar, Lucy. Não importa o que o advogado diga, você nunca deve voltar.— Me explica o que tá acontecendo! — Lucy implorou, sentindo o colar quente contra sua pele. — Não me trate como criança!
— Não posso — disse Mary, os olhos perdidos, como se buscasse uma memória que não encontrava. — Não é que eu não queira. Eu... não sei como. Só sei que você não deve voltar.
— Me poupe dessas mentiras! — Lucy gritou, a frustração explodindo.
— Me respeite! — Mary retrucou, levantando-se. Sua mão voou, dando um tapa no rosto de Lucy, que a encarou, furiosa, o choque misturado com dor.
— Ontem eu quase me matei porque não aguento mais! — Lucy mostrou o pulso, onde um arranhão vermelho marcava a pele sob o curativo. — Vivo por você, e você nem liga!
Mary olhou para a filha, os olhos cheios de lágrimas, a mão ainda suspensa, como se não acreditasse no que fizera. Ela sabia que era um fracasso como mãe, que Lucy carregava um peso que não merecia, mas nunca imaginara que a filha pensara em desistir.
— Filha, eu... — começou, mas a voz falhou.— Não venha com palavras doces! — Lucy gritou, as lágrimas escorrendo. — Minha vida é um inferno! Eu vivo por você, e você não se importa!
— Você acha que eu não sei? — Mary murmurou, caindo no sofá. — Queria ser forte, mas não sou.
— Então eu tenho que ser forte por nós duas? — Lucy perguntou, a voz quebrada.
— Vá pro seu quarto! — Mary gritou, a raiva misturada com culpa. Lucy nunca a enfrentara assim antes.
— Não suporta ouvir a verdade — disse Lucy, subindo as escadas. Ao passar pela mesa, seus olhos caíram na garrafa de uísque. De repente, ela voou, espatifando-se contra a parede com um estrondo. Lucy parou, atônita, olhando para Mary.
— Não há força nisso! — Mary gritou, encarando o vazio onde a garrafa se quebrara. — Ela não é forte o bastante!
Lucy correu para o quarto, trancando a porta. As lágrimas vieram, quentes e pesadas, enquanto ela se jogava na cama. Sentia-se culpada por jogar tantas verdades na cara da mãe, mas também aliviada. Era a primeira vez que dizia o que realmente sentia. Tocou o colar, que parecia pulsar com mais força agora, como se respondesse à sua dor.
Pela manhã, a chuva havia parado, mas o céu cinzento refletia o humor de Lucy. Ela acordou com o toque do celular. Era Verônica.
— Tem certeza que não vai pra praia? — perguntou Verônica, a voz triste.
— Preciso saber mais sobre essa avó que nunca conheci — disse Lucy, olhando para o colar em seu pescoço. — E sei que minha mãe não vai me contar nada.
— Tá bom, mas me liga pra contar o que aconteceu — pediu Verônica.
— Prometo. — Lucy sorriu, apesar de tudo. — Beijos, coisa.
— Beijos, baranga! — Verônica riu, desligando.
Lucy olhou para o relógio. Eram quase nove horas. Ela se levantou, o coração acelerado, sabendo que o advogado chegaria em breve. Vestiu uma blusa simples e prendeu os cabelos ruivos, tentando ignorar o peso do colar contra sua pele.
Um carro preto parou em frente à casa, a tinta azul desbotada da fachada parecendo ainda mais triste sob a luz fraca. O doutor Kinderman desceu, segurando uma pasta de couro, surpreso ao ver onde uma Sales morava. Ele bateu à porta, e Mary abriu, os cabelos presos e vestindo uma blusa limpa, um esforço raro para parecer apresentável. Mesmo magra demais, sua beleza ainda impressionava, com traços delicados que lembravam Lucy.
— Aqui mora a senhora Sales, viúva de Dick Sales? — perguntou Kinderman, os olhos negros fixos em Mary.
— Sim, sou eu — respondeu ela, a voz firme, mas hesitante.
— Sou Kinderman, advogado de Bethany Sales. Posso entrar?
— Sim. — Mary abriu a porta, e Lucy desceu as escadas, surpresa ao ver a mãe arrumada.
— Bom dia — disse Lucy, ainda admirando Mary.
— Deve ser Lucy Sales, herdeira de Bethany Sales — disse Kinderman, com um sorriso educado.
— Acho que sim — respondeu Lucy, tímida, sentando-se ao lado da mãe no sofá.
— Vamos acabar com isso — disse Kinderman, abrindo a pasta. — Tenho que voltar ainda hoje.
Mary e Lucy sentaram-se, o silêncio pesado entre elas. Kinderman pigarreou e começou a ler o testamento:
— Bethany Sales deixa para sua neta, Lucy Sales, uma pequena fortuna, uma casa na cidade vizinha e o castelo Sales, em Cameron. Mas há uma condição.— Qual? — Mary perguntou, desconfiada, já imaginando o pior.
— Lucy deve morar em Cameron — disse Kinderman, ajustando os óculos.
— Não! — Mary exclamou, o pânico evidente em sua voz.
— E se eu não quiser ir? — perguntou Lucy, assustada com a ideia de deixar tudo para trás.
— A herança será doada para uma casa de órfãos — respondeu Kinderman, com um tom neutro.
— Não há outro jeito? — Lucy insistiu, o coração apertado. Ela ainda não terminara a escola, não trabalhava, e a pensão era sua única renda.
— Lamento, sua avó foi bem específica — disse Kinderman. — Ela até escolheu a escola onde você deve estudar em Cameron.
— Ela não vai! — Mary gritou, levantando-se.
— E do que vamos viver? — Lucy retrucou, a raiva voltando. — Você não trabalha, mamãe! Como vamos sobreviver sem a pensão?
— Damos um jeito! — Mary insistiu, mas sua voz soava frágil.
— A é, claro que damos — disse Lucy, irônica, revirando os olhos.
— Então, o que decidem? — Kinderman perguntou, olhando para Lucy.
— Eu vou — disse Lucy, decidida, sentindo o colar pulsar. — Não tenho escolha.
— Não vou! — Mary gritou, os olhos cheios de lágrimas.
— Então fique, porque eu vou — disse Lucy, a voz firme, apesar do medo. Ela imaginava uma nova vida, longe daquela casa, mas o desconhecido a aterrorizava.
— Mandarei buscá-las amanhã à noite — disse Kinderman, anotando algo em sua pasta. — Sua avó deu um prazo de um mês, e como só as encontramos esta semana, você precisa estar em Cameron na segunda-feira para assinar o acordo.
— É muito rápido — murmurou Lucy, atordoada.
— Não vamos! — Mary insistiu, a voz carregada de raiva. — Eu sou a mãe aqui!
— Então se porte como uma! — Lucy retrucou. — Se preocupe com meu futuro, porque você não pode pagar uma faculdade, nem sustentar essa casa!
Mary ficou em silêncio, derrotada. Kinderman observou a discussão, percebendo que a chegada de Lucy a Cameron seria mais complicada do que imaginava. Ele nunca estivera na cidade, mas os boatos sobre seu passado sombrio o deixavam inquieto.
— Como ela era? — perguntou Lucy, olhando para Kinderman, a curiosidade superando a raiva.
Ele hesitou, ajustando os óculos.
— Nunca conheci Bethany pessoalmente, mas por telefone ela era gentil, determinada. Parecia se importar com você.— Então por que nunca me procurou? — perguntou Lucy, os olhos brilhando com uma mistura de esperança e dor.
Kinderman olhou para os olhos verdes de Lucy, tão parecidos com os de Mary, e por um momento pareceu perdido. Então, levantou-se abruptamente.
— Preciso ir. Não posso ficar mais. — Ele caminhou até a porta, como se fugisse de algo. — Nos vemos amanhã.Lucy achou a saída dele estranha, mas não insistiu. Após Kinderman partir, ela ficou sozinha na sala, o colar quente contra sua pele, a mente girando com perguntas. Mary subiu para o quarto sem dizer nada, o silêncio entre elas mais pesado do que nunca.







