Capítulo 1

Lucy Sales, aos dezesseis anos, encarava seu reflexo no espelho rachado do quarto. A luz fraca da lâmpada tremeluzia, lançando sombras sobre as paredes descascadas da casa. Em suas mãos, uma faca de cozinha refletia o brilho pálido, pressionada contra o pulso. Seus olhos castanhos, vermelhos de cansaço, marejavam enquanto os cabelos avermelhados caíam em cascata até a cintura. Você não aguenta mais, pensou, a respiração entrecortada. A lâmina roçou a pele, e uma gota de sangue escorreu, mas a imagem de sua mãe, Mary, encontrando-a ali, sem vida, a fez recuar. A faca caiu no chão com um som seco, ecoando no silêncio.

— Sou mesmo um fracasso — murmurou, enxugando as lágrimas com a manga da blusa.

Seus olhos vagaram pelo quarto, parando em uma gaveta entreaberta do criado-mudo. Lá dentro, algo brilhou sob a luz fraca: um colar com um pingente em forma de meia-lua, que ela nunca usava, mas também nunca jogava fora. Era um presente de sua mãe, dado em um raro momento de lucidez, anos atrás. Ao tocar o pingente, Lucy sentiu um calor estranho, como se ele pulsasse contra seus dedos. Três semanas antes, durante uma febre alta, ela ouvira uma voz em seu quarto: “Agora é com você, querida.” A memória a fez estremecer. Ela guardou o colar rapidamente, como se temesse o que ele representava.

Pela janela, a chuva caía em cortinas, o vento sacudindo as árvores do quintal. Lucy sorriu, mesmo que por um instante. A beleza da tempestade, com seus relâmpagos distantes, sempre a acalmava, como se a natureza entendesse sua dor. Ela queria viver por esses momentos, mas a ideia de continuar naquela casa, naquela vida, a sufocava.

O toque do celular a arrancou de seus pensamentos. Lucy pulou na cama e viu “Mamãe” na tela. Seu coração acelerou. Com uma mãe alcoólatra, qualquer ligação podia ser um mau presságio.

— Alô? — respondeu, a voz trêmula.

— Tem alguém mais velho com você? — perguntou um homem, com um tom calmo, mas preocupado.

— Não. O que aconteceu? — Lucy já estava de pé, pegando as chaves do carro.

— Encontrei uma mulher bêbada, caída na frente do bar da Relly. O número dela estava no celular.

— Onde vocês estão? — Ela calçou os tênis, ignorando a chuva que molhava o chão através da janela mal fechada.

— Em frente ao bar da Relly.

— Estou indo. Obrigada. — Lucy desligou e correu para seu carro azul de 1965, um traste que rangia a cada curva, mas que ela mantinha como uma relíquia do pai que nunca conhecera.

A cidade pequena, com suas ruas esburacadas e casas desbotadas, parecia ainda mais sombria sob a chuva. Ao chegar ao bar, Lucy viu Mary encostada na parede, os cabelos ruivos desgrenhados e o rosto, outrora belo, manchado de maquiagem borrada. Um homem robusto, de capa de chuva, estava ao lado dela, segurando um guarda-chuva. Uma lágrima escapou antes que Lucy pudesse contê-la. Ela a enxugou rapidamente e se aproximou.

— Obrigada por ligar — disse, evitando o olhar do homem.

— De nada. Ela é sua mãe? — Ele a observou, notando as roupas molhadas e o cansaço em seu rosto jovem.

— É, sim. — Lucy se abaixou, verificando o pulso de Mary, que estava desacordada, mas respirava.

— Ela estava discutindo com o dono do bar. Sorte que passei por aqui antes de ir trabalhar, ou a coisa ia ficar feia.

— Nem sei como agradecer. — Lucy tentou sorrir, mas a timidez a traiu.

— Não precisa. Seu pai está no trabalho? — A curiosidade na voz dele era gentil, mas a pergunta cortou como uma faca.

Lucy hesitou, o peito apertado.

— Ele morreu. É por isso que ela bebe.

O homem pareceu envergonhado, coçando a nuca.

— Desculpe-me. Você precisa de ajuda?

— Não, obrigada. Já estou acostumada. — As palavras saíram frias, quase automáticas, enquanto ela puxava Mary com dificuldade.

— Fique com Deus. — Ele se afastou, deixando Lucy sozinha com a mãe.

Ela deu um leve tapa no rosto de Mary.

— Mamãe, acorda! — Sem resposta. Com esforço, arrastou-a até o carro e a colocou no banco do passageiro, o cheiro de uísque impregnado em suas roupas.

Em casa, o ritual era o mesmo: levou Mary ao banheiro, lavou-a sob o chuveiro frio e a colocou na cama. Exausta, Lucy sentou-se no chão do quarto da mãe, abraçando os joelhos. As lágrimas vieram, silenciosas, enquanto olhava para a figura frágil na cama. Tudo o que queria era uma mãe que a abraçasse, que perguntasse sobre seu dia. Mas ali, naquela casa que cheirava a mofo e arrependimento, ela se sentia invisível.

Na geladeira, nada além de uma jarra de água morna. A pensão estava atrasada há semanas, e pedir fiado na venda do Eli não era mais uma opção. Com o estômago roncando, Lucy se deitou, virando-se na cama até o sono vencer.

Na manhã seguinte, o sol tentava atravessar as nuvens cinzentas. Lucy correu ao quarto de Mary, beijou seu rosto — sabendo que o gesto não seria retribuído — e desceu as escadas para não se atrasar para a escola. O carro ficou na garagem; a gasolina era preciosa, reservada para as próximas crises de Mary.

— Oi, Lucy! — Verônica, sua melhor amiga, a cumprimentou na entrada da escola. Alta, loira e de olhos verdes brilhantes, ela usava uma minissaia vermelha e uma blusa branca que desafiavam as regras do colégio. Seu sorriso era um raio de luz na manhã cinzenta.

— Verônica, como te deixaram entrar vestida assim? — Lucy riu, tentando esquecer a noite anterior.

— Sou a melhor aluna que eles têm. Vão me expulsar por quê? — Verônica tirou os óculos de sol, piscando com charme.

— Porque parece que você tá indo pra uma balada, não pra escola.

— Me deixa ser feliz! — Verônica jogou os cabelos, rindo.

— Você é incorrigível. — Lucy balançou a cabeça, sentindo o peso no peito aliviar um pouco.

— Teve problemas ontem? — Verônica perguntou, o tom suavizando ao notar a expressão da amiga.

Lucy encolheu os ombros, desconfortável.

— Como sempre.

Verônica a abraçou, o calor do gesto contrastando com a frieza da manhã.

— Meu pai ia adorar se você fosse morar com a gente. Sério, Lucy.

Lucy suspirou, lembrando da oferta dos pais de Verônica quando ela tinha treze anos. Eles queriam adotá-la, mas isso significaria internar Mary. Ela recusara por causa de uma promessa feita à avó que nunca conhecera, uma promessa que Mary mencionara em um momento de sobriedade: “Cuide de mim, por ela.”

— Não posso, V. Prometi à minha avó que cuidaria da mamãe.

— Você só tem 16 anos! Deveria ter alguém cuidando de você, não o contrário. — Verônica cruzou os braços, irritada.

— Vamos mudar de assunto. Tô ficando triste. — Lucy desviou o olhar, tentando esconder as emoções.

— Vai à praia amanhã, né? — Verônica tentou animá-la.

— Minha mãe tá insistindo pra eu ir, mas não sei. Quem vai cuidar dela?

— Ela prometeu que não vai beber. — Verônica soou pouco convincente, e ambas sabiam o quanto essas promessas valiam.

— Ela prometeu isso pra minha avó e olha no que deu. — Lucy pensou na casa quase incendiada por Mary, bêbada, anos atrás.

— O que vai fazer hoje? — Verônica mudou de assunto, percebendo o desconforto da amiga.

— Vou ao banco. A pensão tá atrasada há semanas.

— Quer companhia? — Verônica ofereceu, sorrindo.

— Não precisa, mas valeu. — Lucy devolveu o sorriso, grata pela amizade.

Na sala de aula, o professor de cabelos negros e olhos azuis sorriu para Lucy.

— Bom dia, senhorita Sales!

— Bom dia, professor! — Ela tentou parecer animada, mas sentiu o olhar de Verônica.

— Olha como ele te seca — Verônica sussurrou, rindo.

— Eca, é meu professor! — Lucy corou, olhando para o homem. Ele era bonito, mas ela não o via assim.

— Se ele desse em cima de mim, eu pegava — Verônica provocou, maliciosa.

— Quem você não pegaria? — Lucy retrucou, rindo.

— O professor Verón. — Verônica fez uma careta de nojo.

— Só uma doida ficaria com ele. — Lucy riu, e Erik, um garoto loiro de sardas, suspirou ao ouvi-la. Ele tinha uma queda por Lucy, mas ela só o via como amigo.

— Bom dia, Lucy! — Erik acenou, animado.

— Bom dia, Erik! — Ela sorriu, gentil, enquanto Verônica dava um tapa leve na cabeça dele.

— Outro apaixonado — Verônica zombou, sentando-se.

Lucy notou o curativo em seu pulso à mostra e o escondeu rapidamente. Verônica percebeu.

— De novo? — perguntou, preocupada.

— Não! — Lucy respondeu rápido, desviando o olhar.

As aulas passaram em um borrão, com Lucy sentindo o peso do olhar de Verônica. Quando o sinal tocou, ela correu para o banco, mas Verônica a alcançou.

— De novo, sério? — Verônica segurou o braço dela, a voz cheia de preocupação.

— Não me olha assim! — Lucy segurou as lágrimas, odiando a sensação de ser julgada.

— O que seria de mim se você... — Verônica balançou a cabeça, frustrada. — Vou com você pro banco.

Lucy cedeu, cansada de discutir.

— Tá bom.

No carro novo de Verônica, a música alta abafava qualquer conversa.

— Vamos passar no shopping depois! — Verônica gritou, sorrindo.

— Não! — Lucy tentou protestar, mas a música venceu.

No banco, uma recepcionista de cabelos cacheados as levou até o gerente, um homem de terno e cabelos castanhos.

— Bom dia! No que posso ajudá-las? — Ele sorriu, apontando para as cadeiras.

— Sou Lucy Sales e gostaria de conversar em particular — disse Lucy, séria.

— Claro, venha até minha sala. — O escritório era aconchegante, com um aquário brilhante perto da janela.

— Lindo, né? — O gerente sorriu, orgulhoso.

— Sim — Lucy respondeu, distraída, ansiosa para resolver o problema.

— Então, o que traz vocês aqui?

— Recebo uma pensão pela morte do meu pai, mas tá atrasada há semanas.

— Qual era o nome do seu pai? — O gerente digitou no computador, franzindo a testa.

— Dick Sales.

Ele olhou para Lucy, confuso.

— Tem certeza de que a pensão é do seu pai?

— Sim! — Lucy respondeu, confusa.

— Me dá o número da sua conta? — Após verificar, ele pareceu surpreso. — Você não recebe uma pensão do seu pai, mas da sua avó paterna, Bethany Sales.

Lucy sentiu um nó no estômago. Uma avó? Ela nunca soubera da existência de Bethany. A voz que ouvira durante a febre voltou à sua mente: “Agora é com você, querida.” Seria ela?

— Do que está falando?

— Bethany Sales, mãe de Dick Sales, faleceu há três semanas. Estranho que o advogado dela não tenha procurado você.

— Como assim? — Lucy estava atordoada.

— Em caso de morte, os bens são congelados até a abertura do testamento. — O gerente pegou o telefone. — Vou ligar para o advogado dela.

Verônica, que estava no celular, levantou a cabeça.

— Sua avó rica morreu? — perguntou, sorrindo.

— O quê? — Lucy ainda tentava processar a informação.

O gerente discou o número.

— Alô, doutor Kinderman? — Após uma breve conversa, ele desligou, constrangido. — Senhorita Sales, por que mentiu pra mim?

— Não entendo — Lucy respondeu, perdida.

— O advogado avisou sua mãe sobre a morte da sua avó. Ele virá amanhã às nove para ler o testamento.

Lucy percebeu tudo. Mary escondera a verdade.

— Engraçado, porque amanhã às nove estarei na casa de praia da Verônica. — Ela olhou para Verônica, que parecia surpresa. — Desculpe, senhor, mas minha mãe não me disse nada.

— Tudo bem — o gerente respondeu, suavizando o tom.

Lucy puxou Verônica, que ainda estava distraída no celular.

— Vamos!

— Já? — Verônica perguntou, confusa.

— Vamos! — Lucy insistiu, pálida.

No carro, Verônica notou a expressão da amiga.

— O que foi? Tá triste porque sua avó morreu?

— Nem sei. É estranho, vazio. — Lucy fez uma pausa, pensando no colar e na voz misteriosa. — Só queria saber que tinha uma família além da minha mãe.

Verônica suspirou, sem saber o que dizer. Lucy olhou pela janela, a mente girando com perguntas. Ao chegarem em casa, ela ficou parada, encarando a fachada desbotada.

— Acho melhor você entrar — Verônica disse, gentil.

— Ela vai mentir pra mim — Lucy respondeu, com um sorriso amargo.

— Talvez não.

— Vai, sim. Ela sempre mente. — Lucy respirou fundo e desceu do carro, pronta para enfrentar a mãe e as verdades que ela escondia.

Sigue leyendo este libro gratis
Escanea el código para descargar la APP
Explora y lee buenas novelas sin costo
Miles de novelas gratis en BueNovela. ¡Descarga y lee en cualquier momento!
Lee libros gratis en la app
Escanea el código para leer en la APP