Eu vou te resgatar

Sérgio já estava dirigindo há quase uma hora e não conseguia encontrar Abigail em lugar nenhum. Como ela poderia ter sumido assim? Ele tinha saído apenas alguns minutos depois dela, e com aquela tempestade, ela não poderia ter ido tão longe, sem contar que suas coisas continuavam no apartamento. A chuva castigava a cidade, deixando o fim de tarde com ares de noite. Quando já pensava em desistir, avistou uma silhueta abrigada sob uma estátua na praça. A camiseta com pequenos corações coloridos era inconfundível. Ele estacionou e ficou por um instante parado, hesitante. Mas não podia deixá-la ali.

Respirou fundo, saiu do carro e atravessou a chuva fria. Ao se aproximar, viu Abigail encolhida, abraçada nas próprias pernas. Parecia tão pequena, tão frágil. A culpa pesou.

— Abigail. — Sua voz foi suave, mas ela não respondeu. Ele se agachou ao lado dela. — Sou eu, Sérgio. Por favor, me desculpe, não era minha intenção.

Ela levantou levemente a cabeça, o rosto manchado pelo choro, evitou o olhar dele.

— Você quer que eu ligue para o Marcos? — perguntou, ainda que soubesse que isso talvez custasse sua amizade. Mas ela balançou a cabeça, recusando.

— Certo... — disse ele, mantendo o tom calmo. — Mas você precisa sair daqui. Já está escurecendo e está frio. Podemos voltar ao apartamento e trocar essas roupas. Depois te levo para casa ou chamo um táxi, como você preferir.

Ela apenas assentiu e, com certa dificuldade, se levantou. Ele ofereceu a mão, mas ela recusou. Caminharam em silêncio até o carro e Sérgio abriu a porta do passageiro esperando que ela entrasse.

Dentro do carro, Abigail estremeceu, pois só agora percebia o frio cortante. Cruzou os braços, tentando se aquecer. Sérgio, ficou irritado por não ter um agasalho, então ligou o aquecedor mesmo sabendo que não faria muita diferença. Ele não sabia se ela tremia de frio ou medo, provavelmente ambos. O trajeto de volta foi silencioso.

— Melhor você tomar um banho quente. — Ele disse ao chegarem. Ela assentiu. Subiram as escadas, mas ela parou no meio.

— O que foi? Tudo bem?

— Eu não tenho outra roupa... — disse ela, envergonhada.

— Sem problema, eu encontro algo. — Ele sorriu de leve. — Pode usar o que quiser e leve o tempo que precisar, ele abriu a porta do quarto e indicou o banheiro.

Assim que Sérgio saiu Abigail trancou a porta do banheiro e olhou-se no espelho. O rosto inchado, os olhos vermelhos, suspirou, desapontada consigo mesma.

Sob o chuveiro quente, relaxou por alguns minutos, mas logo as emoções voltaram com força. Sentou-se no piso frio e chorou silenciosamente, tentando conter a dor.

Do lado de fora, Sérgio ouvia os soluços através da porta. Ele quis bater, perguntar se estava bem, mas se conteve. Não queria que ela pensasse que a vigiava, então deixou roupas de moletom sobre a cama e saiu.

Quando Abigail terminou o banho, viu as roupas mas eram grandes demais. A blusa parecia um vestido, e a calça simplesmente não servia. Tentou ajustar, mas desistiu e vestiu apenas a blusa. Sorriu, por um instante, da imagem refletida no espelho. Escovou os cabelos e se sentou na cama observando a chuva que ainda caía lá fora.

Três batidas leves na porta interromperam seus pensamentos.

— Pode entrar.

— Licença. — Sérgio entrou e franziu a testa. — Você não vai secar o cabelo?

— Não precisa.

— Precisa sim. Está frio, você pegou muita chuva. Tem um secador no banheiro. — ele disse indo ao banheiro e voltando com o aparelho na mão. — Pode usar sentada na cama mesmo.

Ela hesitou. — Eu... não sei usar.

— Nunca usou?

Ela balançou a cabeça.

— Tudo bem, senta mais perto, eu seco pra você.

Ela obedeceu, sentando-se de costas para ele. Quando sentiu o calor do secador e o movimento suave da escova em seus cabelos, seus olhos se fecharam involuntariamente. Aquele cuidado, mesmo que simples, trazia um conforto que ela desconhecia.

Sérgio, por sua vez, se perguntava quantas vezes ela fora cuidada assim. Pensar em Regina o enchia de raiva, então ele prometeu a si mesmo: protegeria aquela menina, independente do que o exame de DNA dissesse.

— Pronto. — Disse, desligando o secador. — Não sou profissional, mas...

— Ficou ótimo, obrigada. — Ela diz se olhando no espelho.

— Vejo que a calça não serviu. — comentou, notando as pernas expostas.

Ela puxou a blusa para baixo, constrangida. — Não.

— Tudo bem, talvez só a blusa resolva.

Os dois saem juntos do quarto e descem a escada em silêncio.

- Vou fazer chocolate quente, quer? – ele diz quando chegam na sala.

Ela assentiu, e ele pediu que ela ficasse no sofá. Pouco tempo depois voltou com dois copos fumegantes.

— Pode ligar a TV.

— Não sei o que assistir.

— Que tal uma comédia? A gente precisa rir.

Ela deu um pequeno sorriso e então sentaram-se lado a lado. Durante o filme, ele percebeu que ela ainda tremia. Foi até o quarto e voltou com um cobertor. Ao cobri-la, seus olhos involuntariamente recaíram sobre suas pernas, foi então que ele viu uma cicatriz.

— Pelo jeito você foi uma criança bem agitada. — tentou brincar.

Ela o olhou, depois para as próprias pernas, e puxou a blusa após entender o motivo da frase dele.

— Não era.

— Desculpa. — Ele entregou o cobertor, arrependido.

 Sérgio tentou conversar durante o filme, mas ela respondia pouco. Então optou por ficar em silêncio. Quando os créditos rolaram, ainda estavam ali, em silêncio.

— Me desculpa. — ela disse de repente.

Ele a encarou, surpreso.

— Pelo quê?

— Por hoje, por ter gritado com você. Eu não podia...

— Olha, você não fez nada de errado. – ele disse a interrompendo - Se sentiu ameaçada, reagiu como podia. Eu sou um homem grande e te assustei. Sua reação foi de defesa. — ele segurou as mãos dela com cuidado. — Por favor, não se desculpe por se proteger.

Ela o olhou, com os olhos marejados.

— Você também chora demais. — Ele secou uma lágrima com o dedo.

Ela sorriu. — Me descul...

Os dois riram.

— Chorar é humano, você só precisa tomar cuidado para quem mostra essas emoções.

— Na verdade isso me faz fraca.

— Não. Você só é fraca quando desiste de ser feliz. E você ainda está aqui, tentando. Isso é força.

Ela ficou em silêncio, digerindo aquelas palavras. Pela primeira vez, sentia que alguém a via.

— Obrigada por hoje. — ela disse, olhando para ele pela primeira vez em muito tempo sem desviar o olhar. — Por não ter desistido de me procurar.

— Eu nunca teria deixado você ali. — a resposta veio firme, quase impulsiva.

— Mesmo depois do jeito que eu falei com você?

— Principalmente por isso. — ele sorriu de canto. — Você tinha todo o direito de reagir daquele jeito. Eu que fui um idiota.

Ela sorriu também, pequena e verdadeira. E então, sem pensar muito, disse:

— Você é diferente do que eu imaginei.

— E o que você imaginou?

— Que você fosse mais... indiferente, que não se importasse com ninguém além de você mesmo, assim como todos os outros adultos.

— Eu não sou tão bom assim quanto você tá pensando. — ele brincou, mas a voz saiu mais baixa do que pretendia.

— Talvez não. — ela respondeu, com um brilho nos olhos. — Mas, mesmo assim, me fez sentir segura. Isso já é mais do que eu esperava.

Houve um instante de silêncio em que nenhum dos dois sabia o que dizer. O que fazer com aquela vulnerabilidade escancarada entre eles. Até que ele falou, baixinho:

— Você é forte, Abigail. Muito mais do que pensa.

— Você também.

Ele deu uma risada curta, quase surpresa.

— Eu? Forte?

— Forte o suficiente pra me ouvir, me procurar, e ficar do meu lado mesmo quando eu tentei te afastar.

— Isso se chama teimosia. — ele rebateu, mas ela sabia que era mais do que isso. E ele também.

Eles ficam alguns segundos em silêncio quando ela pergunta:

— Podemos ver outro filme?

— Claro você pode escolher.

Alguns minutos depois, já estavam assistindo uma animação. Sérgio não prestava muita atenção e quando se deu conta de que Abigail havia adormecido ao seu lado, algo dentro dele suavizou. Havia uma fragilidade naquele sono que o desarmava por completo. Ela dormia com o rosto tranquilo, diferente da expressão tensa que costumava carregar, como se, por um instante, tivesse encontrado alguma paz ali com ele.

O cobertor tinha escorregado das pernas dela, e ele se inclinou devagar para cobri-la de novo. Mas, ao se aproximar, seu olhar foi atraído pelas marcas em sua pele. Cicatrizes finas, lineares, que se agrupavam de forma irregular na perna exposta. O tipo de ferida que não acontecia por acidente. O tipo que se carrega por dentro antes de se revelar por fora.

Um nó se formou em sua garganta. Ele conhecia muito bem aquela assinatura. Alguém a machucou, repetidamente. E ela aprendeu a esconder.

O impulso imediato foi de raiva – não com ela, mas com quem quer que tivesse sido capaz de fazer aquilo. Regina, era quase certo. Mas não fazia diferença, pelo menos não agora. O que importava era o que ele faria a partir dali.

Ele puxou o cobertor devagar, cobrindo as pernas dela, como se pudesse protegê-la não só do frio, mas também do passado. Sentou-se novamente, mas ficou observando por mais alguns minutos. A respiração dela estava regular, os ombros levemente relaxados. Ainda assim, havia algo frágil naquele sono. Algo que o fazia querer prometer que nunca mais ninguém a machucaria.

Quase sem perceber, ele esticou a mão e ajeitou uma mecha do cabelo dela atrás da orelha. Seus dedos roçaram a pele quente e suave, e ele recuou no mesmo instante, como se tivesse ultrapassado um limite invisível. Ela não se mexeu.

Sérgio suspirou, levando a mão ao rosto, como se tentasse reorganizar os próprios pensamentos. Estava entrando em um território desconhecido e perigoso. Não pelas cicatrizes ou pelo passado de Abigail. Mas por tudo que ela estava começando a significar para ele.

Ela não era só uma garota perdida em busca de um pai. Ela era alguém que estava mexendo em algo que ele mantinha bem trancado há muito tempo.

Um pensamento se formou de maneira nítida: ele não podia deixar que ela fosse embora. Não ainda. Não daquele jeito.

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