A madrugada estava densa, abafada, como se o próprio ar soubesse que algo estava prestes a quebrar. As fogueiras da alcateia ardiam mais fracas que o habitual, e o uivo dos lobos parecia ter se recolhido para dentro da garganta de cada um.Aurora não dormia. Estava encolhida num canto da cabana, tremendo, o corpo ainda sentindo o eco dos sonhos. Sonhos que mais pareciam lembranças... mas de outra vida. De outra pessoa.Fogo. Gritos. Uma mulher vestida com roupas antigas, chorando diante de um berço envolto em chamas. Um trono vazio. Símbolos como o que carregava nas costas, gravados nas paredes de uma caverna feita de ossos e cristal.E no fim, sempre a mesma palavra sussurrada por uma voz feminina, antiga, quase maternal:"Desperte."Ela acordou com um grito preso na garganta — e com o mundo ao seu redor... quebrado.O chão de madeira sob seus pés rachara, linhas finas de fenda espalhando-se como veias por todo o cômodo. Um vento estranho soprava dentro da cabana, mesmo com as janela
A alvorada chegou coberta de névoa, espessa como lã. O silêncio era estranho, pesado, diferente do costumeiro alvoroço das aves e dos passos apressados dos guerreiros. A floresta parecia segurar o fôlego.Aurora acordou com um arrepio subindo pela espinha. Não era frio. Era presságio.Ela vestiu a capa às pressas e saiu da cabana, os olhos varrendo o acampamento. Vários lobos estavam reunidos na borda da clareira, murmurando, tensos. Um cheiro forte de sangue no ar denunciava que algo havia acontecido — algo ruim.Ela correu até lá, o coração disparado.E então viu.Havia corpos.Três patrulheiros, deitados lado a lado como oferendas. Os olhos abertos, mas sem vida. Não havia sinais de luta. Nenhuma gota de sangue fora dos corpos. Só o silêncio — e as marcas.As mesmas marcas que Aurora carregava nas costas.Cravadas no peito de cada guerreiro com precisão cirúrgica. Queimadas. Como se tivessem sido feitas com ferro em brasa.Aurora cambaleou para trás.— Quem fez isso...? — ela sussu
Naquela noite, Aurora não conseguiu dormir. Cada vez que fechava os olhos, via os corpos — as marcas — e, pior ainda, sentia algo queimando dentro de si.Era como se a própria pele estivesse viva.Ela tentou se acalmar, respirar, pensar em outra coisa. Mas então... uma memória surgiu.Uma mulher. Com olhos como os dela. Cantando uma canção que ninguém mais parecia entender.Aurora se sentou na cama, suando. Não era um sonho. Era uma lembrança.— O que está acontecendo comigo...? — ela sussurrou, apertando os punhos contra as têmporas.Foi quando algo estalou.Literalmente.Um dos jarros de cerâmica em cima da prateleira rachou no meio. Do nada. Sem toque, sem vento. Só... rachou.Aurora arregalou os olhos. Levantou-se devagar, o coração disparado. Quando tocou o jarro rachado, um clarão azulado brilhou em sua mão — e explodiu, arremessando-a contra a parede da cabana.Do lado de fora, Darius e Elias correram ao ouvir o barulho.Aurora tentava se levantar, tonta, os olhos piscando rápi
A noite chegou mais silenciosa do que o habitual. Nenhum uivo, nenhum farfalhar de cauda entre os arbustos. A alcateia parecia suspensa no tempo — como se o próprio mundo soubesse que algo estava prestes a mudar.Aurora ficou de pé diante da janela, os olhos perdidos no breu da floresta. O vento gelado batia contra sua pele, mas ela mal sentia. Sua mente estava tomada por lembranças: o toque de Darius, sua voz rouca dizendo “você é meu lar”… e a dor em seus olhos quando ela perdeu o controle.Ela não podia deixá-lo passar por isso de novo.Seus dedos apertavam um pedaço de pergaminho, onde as palavras ainda estavam frescas, rabiscadas com pressa, mas carregadas de sentimento.Colocou a carta sobre a mesa de madeira onde Darius costumava deixar seus mapas. Um lugar onde ele a encontraria. Um lugar impossível de ignorar."Darius,Você sempre foi o único lugar onde meu coração descansou. Meu lobo reconheceu o seu antes que eu mesma soubesse o que sentia.Mas agora… eu sou um perigo. Algo
O lago agora estava silencioso. As figuras encapuzadas cercavam Aurora como sombras vivas, imóveis como estátuas de pedra. O frio aumentou, mas não era um frio natural. Era um arrepio que vinha de dentro, como se o ar ao redor tivesse sido arrancado do tempo.Aurora apertou o casaco contra o corpo, protegendo mais do que sua pele. Protegendo o segredo que pulsava sob suas costelas — seu filho. Ou filha. Ou o que quer que fosse essa nova vida que ela mal conseguia entender. Mas já amava.Um dos encapuzados deu um passo à frente. A voz soou rouca, mas carregada de autoridade.— A Lua enfim trouxe você. A filha perdida. A marca viva da linhagem esquecida.Aurora não respondeu. Sentia o gosto do medo na boca, mas manteve o queixo erguido. Eles a chamavam de filha, princesa, como se já soubessem quem ela era. Mas ela mesma ainda não sabia. E não confiaria cegamente em ninguém.— Não sei quem vocês são — disse, firme. — Nem por que me chamam assim.O homem — se é que era um homem sob aquele
Darius vasculhava a floresta como um animal ferido, cada respiração um grunhido sufocado de raiva e desespero.A carta ainda estava em sua mão, amassada, suada, marcada por suas garras. As palavras dela ecoavam em sua mente como uma maldição suave: "Eu te amo infinitamente. Mas por isso mesmo, preciso partir. Preciso descobrir quem sou, antes que machuque quem mais amo."Ela não pediu permissão. Não explicou tudo. Só... se foi.E Darius se sentia como se tivessem arrancado parte de sua alma com uma unha suja e cruel.— Onde você está, Aurora? — murmurou, os olhos dourados fitando o nada entre as árvores.Elias se aproximou em silêncio, mas o alfa sentiu sua presença de longe.— Não há rastros dela — disse o beta. — Nem cheiro. Nem pegadas. Nada.— Isso é impossível — Darius rosnou. — Ela não saberia como apagar o cheiro. Não sozinha.— A não ser que tenha recebido ajuda.Darius o encarou.— Você está dizendo que ela foi levada?— Ou... guiada. Por algo que queríamos ignorar.O silênci
A floresta onde Aurora acordava todas as manhãs não era mais a mesma. As árvores tinham troncos escuros como carvão e folhas que sussurravam em línguas esquecidas. O céu por cima era cinzento mesmo sob o sol, e o chão tremia com os passos daqueles que a observavam em silêncio.A Matilha da Lua Negra.Eram sombras com olhos. Guerreiros que não pareciam respirar, mas se moviam como predadores antigos. Ela não via seus rostos — nunca. Sempre encapuzados, sempre em silêncio. Mas ela sentia o respeito... e o medo. Não o medo deles por ela, ainda não. O medo de que ela nunca se tornasse o que deveria ser.O medo de que falhasse.Na primeira semana, pensou que morreria. No fim da segunda, desejou morrer.Agora, ela apenas resistia.— De novo. — a voz rouca do treinador ecoou pela clareira.Aurora estava de joelhos, os braços tremendo, coberta de suor e sangue seco. À sua frente, uma criatura invocada por magia da Lua — parte lobo, parte fumaça, parte pesadelo — rugia em círculos.Ela tentou
Aurora acordou antes dos primeiros uivos da madrugada.Não por insônia, mas porque, enfim, o corpo e a alma estavam alinhados.A floresta da Lua Negra já não a assustava como antes. Os galhos retorcidos pareciam inclinar-se quando ela passava. Os olhos entre as árvores a seguiam — não com dúvida, mas com algo próximo de temor silencioso.Naquela manhã, ela não hesitou ao vestir a túnica preta de guerreira. Já não sentia o peso da coroa invisível sobre sua cabeça — ela começava a vesti-la por vontade própria.No centro da clareira, a Matilha a esperava. Sem um som, como fantasmas de carne. Ninguém dizia seu nome. Mas todos sabiam: a herdeira havia despertado.Velho Sangue a observava com atenção. O olhar dele já não era de reprovação, mas de análise — como se estudasse a lâmina que ele mesmo forjou.— O que vê em si, agora? — ele perguntou, pela primeira vez quebrando o silêncio antes do combate.Aurora respondeu com os olhos firmes:— Vejo o que sempre fui. Só que agora... eu aceito.