Mundo de ficçãoIniciar sessãoCapítulo 6
Henrique Lancaster Assim que saí do hospital, sem encontrar a ruiva misteriosa daquela noite, senti um aperto estranho no peito, como se tivesse perdido algo que nem era meu. Era ridículo pensar assim. Eu nem sabia o nome dela. Não fazia sentido algum sentir aquela inquietação, aquele incômodo silencioso que me acompanhou até o estacionamento. Sacudi a cabeça, tentando afastar qualquer lembrança dela, e segui para o escritório. O trabalho sempre foi meu porto seguro, a única coisa que eu conseguia controlar. Precisava ocupar minha mente, porque se eu ficasse parado, acabaria afogado pelo peso da vida que estava vivendo. No escritório, mergulhei em pilhas de papéis. Meu pai estava negociando um hotel em uma praia da Espanha, e a quantidade de relatórios, contratos e verificações parecia infinita. Parte de mim agradecia por isso, quanto mais trabalho, menos espaço para pensar. Assinei alguns documentos, despachei outros e peguei a pasta referente ao tal hotel em Marbella. As fotos do lugar me prenderam por alguns segundos. O mar azul, as paredes claras, a vista privilegiada… era o tipo de lugar que qualquer pessoa escolheria para respirar, e eu estava precisando muito disso. "Oportunidade perfeita para fugir por um tempo", pensei. Os herdeiros do hotel não tinham interesse algum em administrar o negócio. Era um bom investimento para a corporação LC, quase óbvio demais. Fechei a pasta com decisão. Caminhei até a sala do meu pai e bati duas vezes na porta. Ele sempre dizia que eu não precisava bater, mas eu preferia manter alguma formalidade. Ele levantou o olhar e sorriu. — Meu filho, voltou tão cedo. — Nunca é cedo pra trabalhar, pai. Estava analisando algumas coisas sobre Marbella. Tem um minuto? — Claro, sempre. E aí, o que achou? Bom investimento? — Ótimo. A renda deles é alta, o lugar é lindo, e a reforma para entrar no padrão Lancaster é mínima. Acho uma compra excelente. Ele encostou-se na cadeira, satisfeito. — Então é só fazer a verificação pessoalmente e fechar negócio? — Isso. E é sobre isso que quero falar com o senhor. Eu gostaria de ir pessoalmente. Meu pai franziu o cenho, percebendo de imediato o que havia por trás da minha decisão. — Mas, filho… você acabou de se casar. Essa verificação pode demorar mais de quinze dias. Respirei fundo. Eu já sabia que essa conversa viria. — Pai, você sabe que eu não casei pelos melhores sentimentos. Eu… preciso focar no trabalho até o bebê nascer. Ele ficou em silêncio. Bateu a caneta algumas vezes contra a mesa, sinal claro de que estava nervoso, tentando encontrar as palavras certas. — Eu entendo, filho. Sei que não foi fácil pra você. — Ele suspirou. — Eu e sua mãe também nos casamos assim. Sem amor. E construímos algo com o tempo. O tempo ajuda. Balancei a cabeça. — Não é algo que eu consiga, pai. Fiz isso por vocês, mas eu não sinto nada pela Débora. Nada. Ele fechou os olhos por um segundo, digerindo minha sinceridade. Quando falou, sua voz estava mais suave. — Sabe, Henrique… meu amor pela sua mãe nasceu devagar. Quando sua irmã nasceu… ali eu percebi que podia amá-la. Você já tinha cinco anos. O tempo pode ser um bom aliado. Mas, se precisa respirar, vá. Às vezes o espaço é necessário pra enxergar com clareza. Depois que seu filho, ou filha, nascer… pode apostar, tudo começa a fazer sentido. E nunca esqueça eu tenho muito orgulho de você. O sorriso de canto dele me atingiu mais do que eu esperava. Respondi com outro, mais fraco, e saí. Eu precisava realmente daquele espaço. E, no fundo, sentia que talvez eu nunca fosse viver o que ele descreveu. Talvez eu não tivesse essa capacidade. Quando cheguei em casa, Débora estava sentada no sofá fazendo as unhas, completamente à vontade na mansão, como se tivesse nascido ali. Me olhou com um sorriso animado demais. — Meu amor, que bom que chegou! Vamos sair pra jantar? — Não vai dar. Preciso organizar minhas coisas. Amanhã cedo eu viajo. Ela piscou algumas vezes, surpresa. Irritada. — Como assim? Acabamos de nos casar, Henrique! — Eu preciso trabalhar, Débora. Temos um filho pra sustentar. Ou você pretende trabalhar também? Ela fez uma careta. — Nossos pais são ricos… — Exato. Nossos pais. Eu não uso o dinheiro dos meus. Eu uso o MEU. Por isso preciso trabalhar. Subi as escadas antes que a discussão piorasse. A mansão era linda, mas eu sentia falta do meu apartamento. Da minha paz. Da minha vida antes de tudo isso. Tomei um banho longo e frio, tentando desligar a mente. Depois arrumei as malas para pelo menos um mês fora. Talvez mais. Desci e percebi que Débora não estava na sala. Agradeci mentalmente. Jantei sozinho. As paredes enormes da mansão pareciam mais vazias do que nunca. Depois subi pro quarto, rolei um pouco meu feed, tentando me distrair, mas nada chamava minha atenção. Minha cabeça estava cheia, pesada demais. Deitei e adormeci rápido, mas não profundamente. Horas depois senti quando Débora deitou, mas ela não me tocou, e isso foi um alívio. Na manhã seguinte, embarquei no jato particular da família para a Espanha. Eu costumava amar viajar, mas dessa vez minha mente estava inquieta demais. Algo em mim parecia… desalinhado. Como se eu estivesse correndo de algo que me alcançaria mais cedo ou mais tarde. O voo estava tranquilo. O céu estava limpo, azul, e a equipe de bordo era a mesma de sempre. Eu deveria estar relaxado. Mas minha mente insistia em me levar para aquela ruiva misteriosa. Aqueles olhos. A forma como ela pareceu… familiar, mesmo sendo uma estranha. Fechei os olhos, cansado daquilo. Por volta das três horas de voo, algo mudou. Primeiro foi um estalo forte, metálico, que ecoou pela aeronave. Depois um leve tremor. Eu franzi o cenho e me endireitei na poltrona. O piloto falou pelo comunicador, a voz firme, mas tensa: — Senhor Lancaster, tivemos uma pequena pane. Estamos verificando. “Pequena.” Mas outro solavanco mexeu com o jato, dessa vez mais forte, e eu senti meu estômago revirar. O painel próximo à porta fez um ruído e as luzes piscaram. A turbulência ficou pior, violenta. A aeromoça tentou se manter firme, mas os olhos dela denunciavam o desespero crescente. — Senhor… peço que coloque o cinto imediatamente. Outro estrondo. Mais forte. Como se algo tivesse quebrado na estrutura externa. E então… As máscaras de oxigênio despencaram do teto. O pânico tomou o ambiente. O barulho das respirações aceleradas, do vento cortando a fuselagem, do alerta sonoro ecoando sem parar… tudo se misturou num caos. Coloquei a máscara, tentando controlar minha respiração. Minha mente gritava para manter a calma, mas meu corpo reagia ao instinto puro: medo, real e brutal. O avião perdeu altitude rápido demais. As coisas dentro da cabine começaram a deslizar, objetos caindo, copos quebrando no chão. A aeromoça gritava instruções que ninguém conseguia ouvir direito. Eu olhei pela janela. O mar. Um mar gigantesco, azul escuro, se aproximando numa velocidade assustadora. Meu coração parecia que ia explodir dentro do peito. — Merda… merda… merda… A aeronave sacudiu como se fosse feita de papel. O piloto surgiu, desesperado: — Impacto iminente! Segurem firme! Meu corpo inteiro gelou. Fechei os olhos. Pensei na minha família. Pensei no bebê. Pensei… nela, foi o último rosto que vi em minha mente... E então o mundo virou de cabeça para baixo quando o jato bateu contra a água. O som foi ensurdecedor. A força do impacto arrancou meu ar. Minha cabeça bateu em alguma coisa. O mundo ficou branco. Depois preto. Tudo rodou. Eu senti a água invadir a cabine. Senti meu corpo sendo puxado para algum lugar. Senti o ar faltar. Tentei lutar. Mas a escuridão venceu. Acordei com o rosto colado em algo úmido e quente. A cabeça latejava como se tivesse sido atravessada por uma barra de ferro. O gosto salgado na boca denunciava água do mar. Abri os olhos com dificuldade. Areia. Areia grossa, dourada. O som das ondas quebrando perto. Tentei me mover, mas meu corpo não respondeu de imediato. Cada músculo doía. Cada respiração queimava. Aos poucos, percebi. Eu estava em uma praia. Sozinho. Vivo. Mas sem ideia alguma de onde. E com ecos na mente como se pedaços faltassem, apaguei de novo...






