A viagem passou rápido. Os dias seguintes foram leves, e Vanessa e Aylla aproveitaram ao máximo. Vanessa, como sempre, era uma companheira animada, cheia de vida e ideias. Aylla riu, dançou, provou comidas diferentes e, pela primeira vez em semanas, não teve tempo de pensar em Ayron. Desde o embate entre os dois, ela não o viu mais — e, para ser sincera, não desejava encontrá-lo de novo.
O retorno para casa, no entanto, trouxe um aperto incômodo ao peito. Aylla estava triste, sabia que em poucos dias teria de voltar ao hospital e reencontrar Catherine, uma colega com quem um dia sentiu afinidade, talvez até uma ponta de amizade. Agora, só de imaginar ter que olhar em seus olhos, sentia vontade de largar tudo. Era desesperador. O celular não parava de tocar. Leonardo. Sempre ele. Insistente, cansativo. Aylla já estava exausta daquele joguinho de ligações e mensagens. Decidiu bloquear o número. Mas ele, como sempre, deu um jeito de burlar. Ligou de um número desconhecido. Ela ignorou. Foi então que teve uma ideia: trocar de chip. Saiu do apartamento com passos decididos. Vestiu um suéter sobre a camisa, sentindo o vento frio cortar a pele. Os cabelos estavam soltos, bagunçados pelo vendaval, e ela nem se importou. Caminhou até uma loja de conveniência e, ao chegar ao balcão, perguntou: — Oi, boa tarde. Vocês têm chip? Quero trocar de número. A atendente lhe entregou um novo. Aylla pagou rapidamente e se virou para sair. Foi nesse instante, ao cruzar a porta, que esbarrou em um homem. — Me desculpa, eu não te vi. Ela olhou para cima e tomou um leve susto. O homem era alto, de cabelos negros e olhos âmbar. Não tão intensos como os de Ayron, mas mesmo assim, hipnotizantes. Tinha tatuagens visíveis no pescoço e perto da orelha. Sorrindo, ele respondeu: — Não é todo dia que a gente esbarra com uma gata. Riu. Aylla sentiu o flerte no tom, desconfortável. Murmurou outro pedido de desculpas e se afastou, mas, curiosa, lançou mais um olhar por cima do ombro. O homem estava saindo da loja, acendendo um cigarro. E a encarava. Quando percebeu que ela o olhava, sorriu abertamente. Aylla ficou envergonhada, acelerou o passo. “O que ele deve estar pensando? Que estou interessada?”, pensou. Mas não era isso. Era porque ele a lembrava Ayron — aquele Ayron misterioso que conheceu naquela primeira noite. Só que Ayron era mais bonito. Muito mais. Caminhou rápido. Ao dobrar a esquina, um carro estacionado chamou sua atenção. Já o tinha visto antes, em outras ocasiões. Um frio na espinha percorreu seu corpo. Apressou-se, quase correndo até o prédio. Quando entrou no apartamento, trancou a porta com força e ligou para Vanessa. — Van, posso te pedir ajuda com uma coisa? — Claro, amiga. Você sabe que pode contar comigo pra tudo. O que houve? — Você pode me ajudar a encontrar um novo apartamento? Não estou me sentindo segura morando aqui. Vanessa ficou em silêncio por alguns segundos, como se pensasse. — Por que você não vem morar comigo? Já te chamei mil vezes, você nunca aceita. Aylla hesitou. Gostava do seu canto, de ter seu espaço. Sempre se virou sozinha. Não queria ser um incômodo. — Eu gosto do meu canto, Van... Vanessa entendeu na hora. — Tá bem, amiga. Vou procurar um lugar e te aviso. Aylla desligou. Sentou-se no sofá, ligou a TV. As notícias eram as mesmas: crimes, gangues, desaparecimentos. Em um trecho da reportagem, a jornalista dizia: “Famílias ligadas ao crime estão inseridas em todos os setores da sociedade. Você, cidadão, precisa estar atento. Eles podem estar ao seu lado.” Aylla franziu o cenho. Pensou: “Isso nunca aconteceria comigo. Não me envolvo com esse tipo de gente. Se um dia me envolver, eu mato meus pais de decepção.” Desligou a TV. Tomou banho, colocou o novo chip no celular e enviou uma mensagem para Vanessa com o novo número. Logo depois, caiu no sono. --- Os dias passaram depressa. Aylla estava de volta ao hospital. Para seu alívio, Catherine não se aproximou. Ao menos isso. Mas o clima era estranho. As enfermeiras cochichavam nos corredores, e Aylla se sentia observada, mesmo tentando disfarçar. As crianças, por outro lado, vibraram com sua volta. A abraçaram, sorriam, perguntavam por ela. Uma nova paciente tinha chegado: uma menina de longos cabelos negros e olhos castanhos profundos. Tinha cerca de oito anos e um sorriso encantador. — Oi, eu sou a Aylla. Vou cuidar de você, tá bem? A menina sorriu, mostrando dentes brancos e alinhados. Aylla teve a estranha sensação de que já havia cuidado daquela criança antes. — Vou medir sua temperatura, tudo bem? Cadê seus responsáveis? — Meu irmão veio comigo. Ele foi buscar algo pra eu comer. — Qual seu nome? — Me chamo Isabel, mas pode me chamar de Bel. Aylla achou o apelido adorável. Enquanto media a temperatura da menina, perguntou: — Está com dor em algum lugar? Bel tirou a blusa com cuidado. Aylla ficou em choque: a menina não tinha um dos braços. No lugar, havia uma prótese mecânica. — Não estou com dor, doutora. Só vim fazer exames de rotina — respondeu a menina, sorrindo. Aylla se lembrou, então, de uma criança que havia atendido há três anos. Uma menina envolvida em um grave acidente. Será que era ela? Antes que pudesse perguntar, a porta se abriu. Um homem entrou com um sanduíche nas mãos. — Bel, trouxe seu lanche. Aylla congelou. Era o homem da loja de conveniência. Ele sorriu, reconhecendo-a. — Olá. Nos encontramos de novo. Me chamo Nikolai Petrov. Um prazer. A menina cutucou o irmão. — Ela não é bonita, Nikolai? Ele não hesitou. — Muito. Aylla sentiu vontade de desaparecer. Mas precisava tirar o sangue de Bel. Fez tudo com profissionalismo, embora estivesse inquieta. Quando terminou, disse: — Bel, terminamos. Quando sair o resultado, você traz para mim, tudo bem? — Sim! — respondeu animada. Ao sair da sala, ouviu a voz de Nikolai: — Doutora... obrigado por cuidar da minha irmãzinha, mais uma vez. E foi ali que Aylla entendeu. Bel era a menina que quase morreu no acidente. E Nikolai, o irmão. Não se lembrava dele. Na época, estava em residência, ainda aprendendo, lutando para ajudar cada criança. Mas nunca esqueceu os olhos daquela pequena. Foi andando até sua sala, tentando processar a coincidência. O mundo era realmente pequeno. O celular tocou. Era Vanessa. — Aylla? — Sim, Van? — Consegui um apartamento lindo! Você vai amar. Pareceu rápido demais, mas conhecendo Vanessa, ela era eficiente. Aylla foi se encontrar com a amiga. O prédio era muito bonito, com um parque próximo. Moderno, limpo, novo. — Van, não é caro? — Amiga, relaxa. Eu conheço o dono. Tá tudo certo. Subiram. O apartamento era espaçoso, com dois quartos, banheiro, sala decorada em estilo minimalista. Aylla amou. Pensou que poderia mudar a decoração com o tempo. Foi até a varanda. Estava no sétimo andar. Do outro lado da rua, um prédio ainda mais luxuoso. Algo nele chamou atenção. Em uma das janelas do prédio vizinho, alguém a observava. Tentou focar, mas a pessoa desapareceu rápido demais. Levou um susto. — Aylla! Terra chamando Aylla! Era Vanessa, rindo. — O que foi, Van? — O que achou? Vai fechar negócio? Aylla pensou por um momento. E disse, com um leve sorriso: — Sim. Eu gostei daqui. Mal sabia ela, porém, que havia, mais uma vez, colocado seu destino nas mãos erradas.