Mundo de ficçãoIniciar sessãoAlgumas horas depois do episódio na escola, Aurora finalmente adormeceu no banco traseiro do carro, a cabeça apoiada contra o vidro, o pequeno corpo encolhido como se ainda tentasse se proteger do mundo. Eu a observei por alguns instantes antes de ordenar que Martin dirigisse devagar, para não acordá-la. A cidade se movia lá fora, indiferente ao caos que havia passado pela mente da minha filha naquele dia.
Eu ainda sentia o peso daquilo no peito, como uma pedra que não se acomodava.
E tudo isso havia sido causado por uma simples tentativa de alguém desconhecido se aproximar dela.
Meu telefone vibrou no bolso. Ignorei na primeira vez, mas vibrou novamente, insistente.
Atendi apenas porque a irritação começou a crescer.
— O que é?
A voz do diretor pedagógico da escola surgiu do outro lado, escolhendo as palavras com cuidado, como quem pisa sobre um terreno que pode explodir.
— Senhor Moretti… antes que interprete isso como intromissão, peço que considere nossa preocupação com a saúde emocional da Aurora.
Eu fechei os olhos por um instante.
Eles nunca ligavam à toa.
— Diga logo — respondi.
O diretor respirou fundo.
— Conversamos com a psicóloga da escola sobre o episódio de hoje. Aurora tem necessidades muito específicas, o senhor sabe, e qualquer mudança no ambiente pode afetá-la profundamente. Pensando nisso, gostaríamos de sugerir algo. Uma orientação, mais do que uma intervenção.
Não gostei do tom.
— Seja direto.
— A psicóloga mencionou que Aurora precisa de uma figura estável. Alguém fixo. Uma cuidadora que consiga lidar com a sensibilidade dela e com seus padrões de apego. Não uma profissional qualquer. E sim alguém… raro.
Meu olhar se desviou involuntariamente para o painel do carro, para o reflexo da cidade passando pela janela.
Eu sabia disso há anos. Mas ouvir de outra pessoa fez algo dentro de mim endurecer.
— Continuando — o diretor prosseguiu — houve uma cuidadora que chamou a atenção da equipe pelas características exatas que Aurora precisa. Simpatia natural. Paciência incomum. Uma suavidade que acalma crianças mais reativas. Observação intuitiva. E, segundo relatos, uma habilidade que poucos profissionais do setor têm.
Um silêncio denso se instalou entre nós.
Eu senti antes mesmo de ouvir.
Eu sabia o que ele diria.
— O nome dela é Jade Duarte — finalizou.
Meu peito se contraiu de um jeito que eu não esperava.
— Jade… — repeti, saboreando a certeza que eu já tinha pressentido desde o início.
O diretor continuou:
— Ela trabalhava em outra instituição, não na nossa escola, mas a psicóloga conheceu o trabalho dela em um seminário infantil regional. Pacientes com perfis parecidos ao da Aurora respondiam bem à presença dela. Crianças que se isolavam começavam a interagir. Crianças agressivas se acalmavam. Ela possui… algo. E isso não é comum.
A imagem dela abraçando aquela criança no portão da creche voltou à minha mente com nitidez cruel.
Eu já tinha percebido.
O diretor finalizou:
— É apenas uma indicação, senhor Moretti. Mas acreditamos que seria extremamente benéfico que Aurora tivesse contato com alguém como essa jovem. Alguém com esse perfil. Com esse tipo de energia. Aurora precisa disso.
Meus dedos bateram de leve contra o volante, um hábito que surgia quando eu pensava rápido demais.
— Houve um problema — acrescentei. — Jade foi demitida hoje.
Silêncio completo do outro lado.
— Demitida? Mas… isso não faz sentido. Pelas referências que temos, ela era uma profissional excepcional.
— Foi acusada injustamente.
Eu mesmo não tinha provas. Mas eu sabia.
Aquela garota não era descuidada.
E, mais do que isso, era tudo o que eu queria por perto.
O diretor pigarreou.
— Senhor Moretti, com sua influência, acredito que não teria dificuldade em… reverter essa situação. Ou, ao menos, em contratá-la diretamente. Aurora necessita de alguém assim.
A recomendação caiu como a última peça de um quebra-cabeça que eu já vinha montando desde o primeiro instante em que vi Jade atravessar a rua naquela manhã.
O destino estava empurrando as linhas que nos conectavam.
— Agradeço a indicação — respondi, retomando o tom firme de sempre. — Vou resolver isso imediatamente.
Desliguei antes que ele dissesse qualquer outra coisa.
Fiquei em silêncio por alguns instantes, observando Aurora dormir, o rosto relaxado, os cílios longos repousando sobre as bochechas pequenas.
Ela raramente dormia assim fora de casa.
E tudo isso porque alguém tentou tocar nela sem compreender seu mundo interior.
Eu não iria permitir que isso acontecesse novamente.
Se Jade tinha perdido o emprego…
Então eu faria o que fosse necessário para aproximá-la de mim.
A obsessão que antes queimava silenciosa agora encontrava justificativa.
Aurora precisava de Jade.
Olhei para Martin pelo retrovisor.
— Traga todos os detalhes sobre Jade Duarte. Tudo. Nome do proprietário do prédio onde mora, histórico do contrato de aluguel, situação financeira. Quero tudo na minha mesa hoje.
Ele assentiu.
— Claro, senhor.
Enquanto o carro seguia pelas avenidas iluminadas, senti algo mudar dentro de mim.
Eu já sabia o que faria.
E Jade ainda não imaginava que sua vida estava prestes a colidir com a minha de um jeito que mudaria tudo.
Para ela.







