Mundo de ficçãoIniciar sessãoA tarde passou arrastada, com a lentidão irritante dos dias em que o mundo insiste em testar minha paciência. Eu tentei me concentrar nos contratos, nas reuniões, nas propostas que chegavam para assinatura. Tentei agir como sempre agia: com precisão, domínio, frieza. Mas, por alguma razão que eu me recusava a aceitar, minha mente insistia em retornar ao relatório com o nome dela.
Jade Duarte.
Aquela pasta parecia emitir luz própria sobre minha mesa. Tudo ao redor ficava turvo, e o nome dela permanecia nítido. Isso não acontecia comigo. Não deveria acontecer.
Mas, enquanto eu tentava me forçar de volta ao trabalho, o interfone tocou, interrompendo qualquer linha de pensamento que eu tentava reconstruir.
— Senhor Moretti, é a escola da Aurora. Estão insistindo em falar com o senhor. Disseram que é urgente.
Meu corpo inteiro ficou tenso.
Aurora nunca era motivo de ligação sem que houvesse um problema. E problemas envolvendo ela eram sempre… delicados. Profundos. Complexos demais para qualquer pessoa que não fosse eu.
— Transfira a ligação.
A espera de dois segundos pareceu longa demais.
A voz da coordenadora surgiu abafada, trêmula — não pelo choro, mas pelo medo de lidar comigo.
— Senhor Moretti… desculpe incomodar. Minha equipe tentou resolver da melhor forma, mas Aurora está em crise há quase quarenta minutos. Ela se isolou no pátio interno e não permite que ninguém se aproxime.
Meu maxilar travou.
Aurora não gritava. Não quebrava coisas. Não fazia escândalos.
E quando isso acontecia, só uma pessoa conseguia alcançá-la: eu.
— O que desencadeou a crise? — perguntei, já levantando da cadeira.
Houve hesitação do outro lado da linha.
— Aparentemente, a nova auxiliar tentou interagir com ela. Aurora recusou contato, começou a tremer e correu para o pátio. Desde então, ninguém consegue fazê-la falar.
Claro que não conseguiriam.
Com a mãe, um dia.
Peguei meu paletó, mesmo sabendo que não tinha paciência para vesti-lo por completo. Passei os dedos pelos cabelos para afastá-los do rosto e respondi:
— Estou a caminho.
Desliguei antes que ela pudesse agradecer.
Andei pelo corredor da empresa ignorando todos os olhares que se abaixavam quando eu passava. Funcionários recuaram, como sempre faziam. Mas dessa vez, a energia que emanava de mim era diferente.
Martin já estava parado diante da porta da empresa quando subi ao térreo.
— O carro está pronto, senhor.
— Vá rápido.
Ele não questionou.
Assim que entrei, o carro disparou pela avenida. O trânsito parecia uma piada de mau gosto naquele dia. Cada semáforo vermelho, cada carro lento, cada pedestre atravessando sem olhar aumentava minha irritação.
Minha filha estava sofrendo. E eu não estava lá.
Meu telefone vibrou no bolso. Era a coordenadora novamente. Não atendi. Eu chegaria em menos de sete minutos. Saber mais detalhes antes de ver minha filha não ajudaria em nada.
Enquanto o carro se movia, minha mente retornou a algo que eu vinha tentando ignorar o dia inteiro: o modo como Aurora reagia ao mundo. O modo como ela se retraía. O modo como ela não falava com ninguém.
E, inevitavelmente, retornei ao pensamento mais incômodo de todos.
Se Jade tivesse sido a babá da Aurora…
Eu sabia o que poderia estar acontecendo.
Nada disso.
Aurora não estaria tremendo.
A imagem da minha filha encolhida no pátio me atravessou como uma lâmina. E, por trás dela, a imagem de Jade, com aquele olhar gentil, abraçando uma criança que chorava, acalmando outra que tinha medo, oferecendo segurança com o toque mais simples.
Algo dentro de mim se corroeu.
Quando chegamos, o carro mal havia parado e eu já desci, avançando pelos portões da escola.
A coordenadora correu até mim.
— Senhor Moretti… ela está no jardim interno, perto da fonte. Tentamos manter distância, mas estamos preocupados…
Eu não deixei que terminasse.
Atravessei o corredor comprido enquanto funcionários abriam caminho. Eu sentia o coração pesado demais, mas o rosto permaneceu impassível. Meu corpo aprendeu a não demonstrar nada desde cedo. Mas Aurora era a falha nessa estrutura. A única que conseguia atravessar minhas defesas.
Quando virei o corredor final, vi.
Aurora estava sentada no chão, as costas pressionadas contra a parede branca, os joelhos abraçados, o rosto escondido entre os braços. Seu cabelo escuro caía em cascata, escondendo qualquer traço de expressão. Ela não estava chorando. Aurora nunca chorava.
Ela desaparecia para dentro de si como se o mundo inteiro não merecesse ser ouvido.
Me aproximei devagar, ignorando a presença dos funcionários que tentavam fingir que não espiavam.
— Aurora.
Minha voz saiu baixa, firme, mas suave de um jeito que eu usava apenas com ela.
Os pequenos ombros dela tremiam. Não de choro, mas de esforço. Como se estivesse lutando contra algo que ninguém conseguia ver.
Ajoelhei ao lado dela. Não toquei.
Por alguns segundos longos demais, ela não se mexeu.
Os olhos dela estavam molhados, mas não de lágrimas. Estavam cheios. Cheios de medo. Cheios de rejeição. Cheios de algo que eu reconhecia muito bem: exaustão emocional.
— Papai…
Uma palavra. Pequena. Frágil. Rara.
E suficiente para quebrar qualquer coisa dentro de mim.
Estendi a mão. Ela rastejou devagar até mim, como um filhote ferido procurando abrigo, e se encolheu no meu peito. Segurei-a com cuidado, como se um toque mais forte pudesse desmanchar sua existência.
Ficamos assim por longos minutos, até que senti a respiração dela estabilizar.
— O que aconteceu? — perguntei, sem pressa.
Ela moveu a cabeça em negação, escondendo o rosto.
— Não gostei dela.
— De quem?
— Da moça nova.
Fechei os olhos.
A nova auxiliar.
A substituta temporária que, ao tentar fazer seu trabalho, havia invadido um espaço que Aurora não permitia que quase ninguém tocasse.
Eu deveria culpar a funcionária?
Mas dentro de mim, a irritação cresceu.
E só uma pessoa tinha mostrado isso diante dos meus olhos:
Jade.
Minha filha afastou o rosto para me observar de perto, como se quisesse confirmar que eu estava mesmo ali. Depois encostou a testa no meu peito novamente, mais tranquila.
Foi nesse instante, enquanto eu segurava Aurora nos braços, que uma verdade veio com força, silenciosa, inevitável:
Eu não precisava apenas de uma babá.
A obsessão que antes parecia inconveniente de repente ganhou propósito.
Jade tinha sido demitida.
E Aurora estava quebrando diante de mim.
Eu senti a decisão tomar forma dentro da minha mente com precisão cirúrgica.
Eu não deixaria Jade se perder.
Eu faria as duas cruzarem o meu caminho.
Custasse o que custasse.







