Mundo de ficçãoIniciar sessãoEu devia estar concentrado no relatório que estava aberto diante de mim. A reunião com o setor internacional começaria em poucos minutos, e havia números demais exigindo minha atenção. O ambiente do escritório era silencioso como sempre, com seu ar condicionado constante, o brilho frio das telas e o carpete que abafava qualquer passo. Era o tipo de lugar onde nada fugia do controle, onde a ordem reinava, onde tudo funcionava de acordo com a minha vontade.
Mas, naquele final de manhã, pela primeira vez em muito tempo, eu não estava totalmente ali.
Minha mente insistia em retornar à imagem dela. A garota correndo pela rua. A mochila apertada contra o peito. O cabelo loiro preso às pressas. O sorriso que ela deu para aquelas crianças. O jeito como abraçou aquela menina com uma doçura que eu não via há anos.
Existem coisas que marcam de um jeito estranho, silencioso, inesperado. Coisas que deveriam passar despercebidas, mas não passam.
E, para minha irritação, Jade Duarte era uma delas.
Uma batida discreta soou na porta do meu escritório.
— Pode entrar.
Martin surgiu com a postura sempre reta, expressão neutra, as mãos ocupadas por uma pasta fina. A eficiência dele era impecável. Era por isso que eu confiava nele. Não havia tarefa que ele não executasse com precisão.
— O que conseguiu? — perguntei sem rodeios.
Ele colocou a pasta sobre minha mesa.
— Todas as informações que pediu sobre a moça da creche, senhor.
O nome dela estampado na capa do relatório fez meu estômago reagir como se eu tivesse tomado algo forte demais. Abri lentamente, consciente de cada detalhe, cada linha escrita em letras claras e precisas.
Nome: Jade Duarte.
Idade: 19 anos.
Função: Auxiliar de Creche.
Local de trabalho: Creche Pequenos Passos.
Endereço residencial: Bairro Jardim Aurora.
Condição socioeconômica: Baixa.
Responsável por um irmão menor.
Mãe com problemas de saúde.
Ausência de figura paterna.
A simplicidade desses dados não deveria me afetar, mas afetou. Havia algo profundamente perturbador em perceber o contraste entre a vida dela e a minha. Era como olhar para dois mundos que nunca deveriam ter se tocado.
Mas se tocaram.
Por acaso.
Continuei lendo. Cada detalhe traçava uma imagem mais nítida da garota que me perseguia desde aquela manhã.
— Ela mora longe daqui — comentei, mais para mim do que para Martin. — A creche fica em outro bairro. O trajeto é longo para alguém que não tem carro.
— Sim, senhor. Provavelmente depende de transporte público.
Eu sabia o que isso significava. Atrasos. Cansaço. Desgaste.
Havia uma doçura ali que não existia mais em lugar algum da minha esfera.
— O senhor quer que eu investigue algo mais específico? — Martin perguntou.
Fechei a pasta, mantendo uma das mãos sobre ela, como se fosse um objeto que não queria permitir que o mundo tocasse.
— Não. Por enquanto, isso basta.
Martin assentiu, aguardando instruções.
— Descubra como está a situação dela hoje — acrescentei depois de um breve silêncio. — Se ainda está empregada. Se houve algum problema. Se… aconteceu algo.
Eu não deveria querer saber disso. Não fazia sentido algum para alguém como eu se envolver com a vida de uma desconhecida. Eu não perdia tempo com questões pequenas, com pessoas irrelevantes ao meu universo. Mas Jade… havia algo nela que fugia do padrão.
— Certo, senhor. Posso fazer isso ainda hoje à tarde.
Ele saiu, fechando a porta com discrição.
Fiquei sozinho com meus pensamentos, e isso era sempre perigoso. Peguei a pasta novamente. Passei os dedos sobre o nome dela impresso no papel. Não consegui evitar imaginar a vida que ela levava.
Acordando cedo.
Fiz algo que não fazia há anos: encostei o corpo na cadeira e respirei fundo, tentando ignorar o incômodo que crescia em mim. Não era pena. Eu nunca senti pena de ninguém. Era… outra coisa.
O interfone tocou.
Atendi com impaciência.
— Senhor Moretti, o setor jurídico pediu uma resposta sobre o arquivo que enviaram ontem. Também há um investidor esperando sua assinatura no contrato de fusão.
Eu deveria estar pensando nisso.
Mas, pela primeira vez em uma década, não era.
Desliguei sem responder, algo que deixaria qualquer funcionário apavorado. Minha mão voltou à pasta antes mesmo que eu percebesse.
Eu queria saber mais.
Joguei a pasta sobre a mesa com força, irritado comigo mesmo. Eu não podia permitir esse tipo de distração. Não era o tipo de homem que perdia o foco por causa de alguém que viu por menos de cinco minutos.
Eu não era fraco assim.
A porta bateu de leve outra vez. Martin entrou sem esperar permissão, o que significava que havia algo urgente.
— Senhor… consegui a informação que pediu. Liguei para a creche. Disseram que ela… foi desligada hoje pela manhã.
Algo dentro de mim ficou completamente imóvel.
— Por quê? — perguntei, a voz baixa, controlada demais.
— Mencionaram um incidente. Uma acusação vinda de uma das mães. Não deram muitos detalhes, mas foi imediato. Sem aviso prévio.
Meu maxilar travou.
Eu me lembrava claramente daquela manhã. Do modo como ela atravessou a rua. Da pressa. Do rosto cansado.
Ela já estava no limite.
— Ela foi injustiçada? — perguntei.
Martin hesitou.
— Não sei, senhor. Mas a rapidez da decisão pareceu… atípica.
Atípica era uma palavra gentil para o que meu instinto estava dizendo.
Meu corpo inteiro ficou tenso. Uma linha de pensamento começou a se formar na minha mente, rápida, lógica, precisa, como uma engrenagem que finalmente encontrava seu encaixe.
Jade era vulnerável.
E, de alguma forma que eu ainda não compreendia completamente, isso me atingiu em cheio.
Ela precisava de ajuda.
E essa era uma verdade que eu não estava pronto para admitir em voz alta.
Martin aguardava instruções. Ele sempre aguardava.
— Continue monitorando — ordenei. — E quero o endereço exato onde ela mora. Preciso dessa informação até o fim da tarde.
— Claro, senhor.
Ele saiu.
A porta se fechou.
E foi nesse instante, com a sala silenciosa ao meu redor, que admiti para mim mesmo o que até então havia tentado ignorar:
Eu não tinha apenas notado Jade.
Eu estava obcecado.
E, pela primeira vez em muito tempo, não me importei.







