Mundo de ficçãoIniciar sessãoO corredor parecia menor naquele instante, como se cada parede tivesse avançado alguns centímetros enquanto eu caminhava. A porta da sala de Elisa estava entreaberta, deixando escapar uma faixa de luz amarelada que tremulava sobre o chão gasto da creche. A cada passo que eu dava em direção a ela, sentia algo apertar o meu peito, uma intuição antiga, incômoda, aquela mesma sensação que antecede uma queda inevitável.
Eu bati de leve e esperei, mesmo sabendo que ela já tinha ouvido meus passos antes de eu tocar na porta. Elisa não era o tipo de pessoa que se surpreendia com nada. Sempre observava tudo com olhos analíticos demais, frios demais, calculados demais para alguém que trabalhava cercada de crianças.
— Entre, Jade.
A voz dela saiu firme, impessoal, e foi o primeiro sinal de que algo estava errado. Ela não levantou o rosto. Não sorriu. Não fez o mínimo esforço para suavizar a tensão. Continuou escrevendo na prancheta com calma irritante, como se o mundo não estivesse prestes a desabar dentro daquela sala.
Eu dei um passo para dentro, sentindo o ar mudar. Era pesado demais. Quente demais. Carregado de algo que não consegui identificar de imediato, mas que meu instinto reconheceu como perigo.
— Aconteceu alguma coisa? — perguntei, tentando manter a voz firme, mesmo que por dentro tudo estivesse tremendo.
Elisa finalmente ergueu os olhos. A expressão era neutra, quase preguiçosa, como se aquilo fosse apenas mais um procedimento, mais uma tarefa da manhã, mais um item da lista dela.
— Recebemos uma reclamação formal sobre você.
Essas palavras bateram como uma porta que se fecha com força no meio da madrugada. Fiquei imóvel por alguns segundos, tentando organizar todas as possibilidades que poderiam justificar aquilo. Nada fazia sentido. Nada se encaixava.
— Reclamação do quê?
— Uma mãe relatou que presenciou uma situação de negligência da sua parte hoje cedo. Segundo ela, seu atraso colocou o filho em risco. E, considerando seu histórico recente, a direção decidiu que não podemos ignorar o ocorrido.
Minha respiração travou. Era tão absurdo, tão surreal, tão fora da realidade que por um instante precisei olhar ao redor, como se alguém estivesse prestes a gritar que aquilo era uma brincadeira de mau gosto.
A mãe do Enzo.
— Elisa, isso não aconteceu. Eu não deixei nenhuma criança em risco. Eu cheguei e imediatamente cuidei de todos. Você pode verificar as câmeras.
Ela balançou a cabeça devagar, como quem tem pena da outra pessoa por não entender que já perdeu.
— Não é necessário rever as imagens. A palavra da mãe é suficiente. E não estamos avaliando apenas o incidente de hoje.
Algo sufocante começou a se espalhar por dentro de mim, como se o ar tivesse engrossado.
— Não entendi. O que mais está sendo avaliado?
Elisa apoiou os cotovelos sobre a mesa, entrelaçando os dedos com calma calculada. Foi nesse gesto que percebi que a decisão já estava tomada antes mesmo de eu entrar ali.
— Você tem se atrasado com frequência. Tem se mostrado cansada, distraída. Sabemos que sua vida pessoal é complicada, mas não podemos permitir que isso interfira na rotina da creche. As crianças exigem atenção constante. E, sinceramente, não estamos vendo essa constância vinda de você.
O golpe atingiu forte demais, fundo demais. Minha visão escureceu nas bordas e por um instante precisei piscar várias vezes para impedir que lágrimas caíssem.
Vida pessoal complicada.
— Eu faço o meu melhor — respondi, com a voz rouca. — Eu sempre fiz.
— Às vezes o nosso melhor não basta.
Essa frase foi dita com tanta calma que doeu mais do que se tivesse sido gritada.
Elisa abriu a gaveta ao lado, retirou um envelope pardo e o colocou na mesa. O som do papel batendo contra a superfície de madeira ecoou dentro de mim como uma sentença.
— Este é o documento de desligamento. Seu afastamento é imediato. Não há necessidade de aviso prévio. Assine aqui.
Minhas mãos tremiam tanto que precisei segurá-las uma com a outra por alguns segundos. A realidade ali, diante de mim, era tão cruel que parecia uma cena fora do meu próprio corpo. Um borrão de humilhação, injustiça e impotência.
— Elisa… eu preciso desse emprego. Eu nunca faria nada que colocasse uma criança em risco. Eu não tenho culpa desse atraso, nem dessa acusação. Por favor, me dê uma chance de explicar.
Ela desviou o olhar, como se cada palavra minha fosse apenas ruído inconveniente.
— A decisão está tomada. Assine, por favor.
Eu assinei.
Assinei porque não tinha escolha.
Quando saí da sala, senti o chão balançar levemente, como se algo dentro de mim estivesse tentando se desprender. As vozes no corredor pareciam distantes, abafadas. Algumas funcionárias me olharam com curiosidade. Outras desviaram o rosto. As mães continuavam entrando e saindo, arrumando laços de cabelo, conferindo mochilas, falando sobre reuniões, compras e viagens.
Ninguém percebeu que meu mundo tinha acabado de quebrar no meio.
Fui até o gancho onde havia deixado minha bolsa e peguei minhas coisas com movimentos automáticos. Meu caderno. Meu lanche. Uma garrafa d’água pela metade. Um brinquedo quebrado que eu tinha prometido tentar consertar.
As crianças começaram a correr ao meu redor, chamando meu nome com aquela alegria inocente que deveria confortar, mas naquele momento só fazia arder ainda mais.
Uma delas me abraçou pelas pernas.
— Tia Jade, você vai brincar comigo depois?
A pergunta atingiu como faca.
— Eu… não sei, meu amor.
Minha voz falhou. Eu a abracei com força, respirando o cheiro doce de shampoo infantil, tentando guardar aquele momento em algum lugar seguro dentro de mim.
Quando finalmente saí pelo portão, senti o ar frio bater contra meu rosto como se estivesse zombando de mim. A rua estava viva, cheia de carros, motos, pessoas indo e vindo, mas tudo parecia distante demais.
Eu andei alguns passos até sentar no meio-fio. Só então percebi que ainda segurava o envelope amassado contra o peito, como se ele pudesse impedir que meu coração se partisse mais do que já tinha se partido.
Olhei para o céu. Cinzento. Pesado. O tipo de céu que parece anunciar chuva, mesmo que ela nunca venha. Meu peito ardia. Minha garganta doía. Meu corpo inteiro tremia como se eu estivesse tentando me manter em pé por dentro.
Eu precisava desse salário.
Mas naquele momento, tudo o que senti foi fracasso.
Uma lágrima caiu. Depois outra. E então a terceira, que eu não consegui mais segurar.
Enquanto eu me desmontava ali, no meio-fio, um carro preto passou lentamente pela esquina. Um carro caro, silencioso, com vidros tão escuros que ninguém conseguiria ver quem estava dentro.
Eu não prestei atenção.
Alguém que já tinha me visto antes.
E, sem saber, naquele instante, minha vida começou a mudar.
Não porque eu queria.
Mas porque alguém decidiu.







