Mundo ficciónIniciar sesiónEu acordei antes do despertador, mas não por causa de uma boa noite de sono. Na verdade, eu mal tinha dormido. Meu corpo ainda estava quente, como se a lembrança de mãos desconhecidas tivesse ficado presa na minha pele. Era ridículo… eu sabia. E mesmo assim não conseguia evitar.
Aquele homem — sem nome, sem contexto, sem absolutamente nada — havia me tocado como se me conhecesse. Como se soubesse o que eu escondia até de mim mesma. Passei as mãos no rosto e respirei fundo. Era hora de me levantar. A vida não esperava ninguém. Meu corpo ainda dolorido dos movimentos da noite passada,, uma dor gostosa e prazerosa. Trabalhar na escola infantil não era o emprego dos meus sonhos, mas por quase um ano tinha sido a única coisa estável na minha rotina. E estabilidade, para alguém como eu, era quase luxo. Vesti minha roupa simples — jeans escuro, camiseta da instituição, tênis confortável — e prendi meu cabelo em um rabo de cavalo. Antes de sair, me olhei no espelho. Eu parecia a mesma de sempre…, mas não me sentia a mesma. Talvez fosse o olhar dele. Ou o modo como segurou minha cintura. Ou o jeito como meu próprio corpo reagiu, quase como se lembrasse que ainda era vivo. Sacudi a cabeça. Eu não podia me dar ao luxo de pensar nisso. Não agora. Peguei minha bolsa e fui. As crianças estavam mais agitadas que o normal. Ou talvez eu estivesse mais distraída que o normal. As vozes se misturavam em risadas, choros, pedidos simultâneos por ajuda, e eu respirava fundo entre uma tarefa e outra, repetindo mentalmente a lista de contas que venceriam na próxima semana. Água. Aluguel. Energia. O financiamento pendente. E a parcela atrasada do acordo judicial das dívidas deixadas por Théo. E era aí que todo aquele aperto no peito voltava. Não era dor por ele. Era o rastro de destruição que ele deixou. Uma herança amarga. Um lembrete diário de que eu estava sempre um passo atrás — lutando, remendando, empurrando a vida para frente com as mãos trêmulas. — Isa? — A voz doce da estagiária me chamou. — Você está bem? — Estou — sorri — só cansada. Era verdade. Só que um tipo específico de cansaço. Um que vinha de dentro, como ferrugem. No intervalo, sentei-me sozinha na sala dos funcionários, tentando organizar minha mente. Tive um impulso bobo de pegar meu celular e checar mensagens. Como se ele — ele — tivesse alguma chance de ter mandado algo. Mas nós nem tínhamos trocado nomes. Bufei. Ridícula. Voltei para a sala para o período da tarde. Foi quando tudo começou a desmoronar. A coordenadora me chamou, a expressão séria demais para ser casual. — Isadora, podemos conversar um minuto? O estômago afundou. Entramos na salinha administrativa. Ela fechou a porta. E isso nunca era um bom sinal. — Infelizmente… — ela começou, e meu coração já sabia. — A escola está passando por um corte de gastos muito rígido. Algumas vagas serão encerradas. E… a sua é uma delas. Estalo. Como vidro trincando. Fiquei em silêncio. Não porque aceitava. Mas porque as palavras simplesmente… sumiram. — Você é uma funcionária ótima, de verdade. Não tem absolutamente nada a ver com seu desempenho, ok? — ela continuou tentando amenizar. — Mas precisamos reduzir a equipe, e como você não é concursada… O resto se perdeu. Não concursada. Corte de gastos. Vaga encerrada. Ou seja: eu estava desempregada. Outra vez. Ela me ofereceu duas semanas de aviso — nada mais. E um abraço constrangido que eu não consegui retribuir. Saí da sala com as pernas bambas. O corredor parecia mais longo que o normal. O mundo parecia maior. Ou eu menor. Talvez as duas coisas. Respirei fundo antes de entrar na rua. A sensação de ar frio no rosto foi a única coisa que me impediu de chorar. Eu precisava de dinheiro. Precisava pagar dívidas. Comer. Morar. Viver. Era simples. E brutal. Caminhei alguns quarteirões, sem saber para onde ir. Nenhuma das minhas opções era realmente uma opção. Quando a gente cai de verdade, descobre que não existe muito chão para escolher. Meu celular vibrou. Era Clara, minha colega da escola e uma das poucas pessoas com quem eu ainda conversava além do necessário. “Fiquei sabendo agora. Isa, estou tão chateada. Se quiser, posso indicar você para uma amiga que está buscando uma babá. Acho que paga bem. Quer que eu fale com ela?” Eu parei na calçada. Olhei para a mensagem por vários segundos. Babá. Eu jamais imaginei trabalhar como babá. Mas “imaginar” não pagava contas. Digitei com dedos trêmulos: “Sim. Por favor.” O telefone vibrou quase imediatamente: “Vou falar com ela agora. Ela trabalha para o pai da criança. Família boa. Te aviso assim que me responder.” Família boa. Eu precisava disso. Precisava de alguma chance, qualquer uma, que me puxasse para fora daquele buraco. Mesmo assim, senti o peso da realidade esmagar minha caixa torácica. Eu estava tão perto do fundo que qualquer coisa servia como tábua de salvação. Continuei andando sem rumo, até perceber que havia parado diante da vitrine de uma cafeteria. Me vi refletida no vidro — rosto cansado, cabelo preso às pressas, expressão indefinida entre ansiedade e desespero. E pensei nele. No homem sem nome. No beijo. Nas mãos. No corpo firme sob o tecido da camisa. No olhar que parecia me despir de verdades que eu nunca disse. Eu me perguntei como alguém como ele existia e, ao mesmo tempo, parecia tão fora do meu mundo. Ele não era como Théo. Nem remotamente. Não tinha a instabilidade, a fraqueza, a insegurança disfarçada de arrogância. O estranho do bar — aquele que me segurou como se tivesse direito — parecia completo de um jeito que eu jamais tinha visto. Respirei fundo, empurrando a lembrança para o fundo da mente. Eu nunca mais o veria. Isso era óbvio. E talvez isso fosse melhor. Eu precisava arrumar a vida. Um emprego. Um caminho. O resto tinha que ficar em silêncio dentro de mim, escondido entre memórias que eu não me permitia revisitar. Meu celular vibrou de novo. “Ela pediu para você enviar um mini resumo seu e disponibilidade. Acho que vão querer te entrevistar.” Meu coração apertou. Um emprego. Era isso. A porta que eu precisava. Mesmo que fosse pequena. Mesmo que fosse humilhante para alguém que já foi dona da própria empresa. Enviei tudo rapidamente. E enquanto aguardava, parada no meio da calçada, senti uma estranha mistura de medo e esperança. Não fazia ideia de que, naquele momento, a vida já estava se movendo na minha direção com força suficiente para virar tudo de cabeça para baixo. Nem imaginava que aquele emprego… … Me surpreenderia.






