Mundo ficciónIniciar sesiónA tempestade começou antes do amanhecer, e a mansão inteira parecia reagir ao som da chuva pesada contra as janelas. Acordei com o eco ritmado dos trovões e, por um instante, precisei lembrar que não estava no meu antigo apartamento, mas no quarto que agora fazia parte do meu trabalho, da minha rotina e, de certa forma, da minha nova vida. O silêncio dos corredores contrastava com o barulho lá fora, criando uma estranha combinação que deixava o ar mais denso do que o habitual.
Vesti um moletom simples e saí do quarto, guiada pelo instinto. Eu já sabia o que encontraria, porque Lorenzo não lidava bem com tempestades. Ele acordava inquieto, vulnerável, e geralmente procurava algum tipo de conforto, ainda que não soubesse expressar isso em palavras. Bastava conhecer um pouco seu jeito para entender que a chuva interferia diretamente no seu sono. Quando virei o corredor da ala infantil, encontrei o menino parado perto da porta do próprio quarto, segurando o ursinho de pelúcia com firmeza. Seus olhos estavam arregalados, atentos ao som da água batendo nas janelas, e ele parecia tão pequeno diante daquele barulho assustador. Ao me ver, deu dois passos na minha direção e ergueu os braços, pedindo colo sem hesitar. Acolhi-o imediatamente, sentindo o corpo dele relaxar aos poucos contra o meu. Ele se ajeitou no meu ombro com a confiança de quem descobre que existe um porto seguro disponível. O modo como segurava meu moletom revelava o quanto a tempestade o incomodava, mas também mostrava que eu começava a ocupar um espaço importante na rotina emocional dele. Eu ainda estava embalando Lorenzo quando percebi que não estávamos sozinhos. No fim do corredor, Dante observava a cena em silêncio. Ele usava apenas uma calça leve e uma camisa aberta nos primeiros botões, revelando parte do peito e dando à sua figura uma informalidade que eu jamais esperaria ver nele. O cabelo estava levemente bagunçado, e a postura, embora ereta, transmitia um tipo diferente de tensão, como se ele tivesse sido arrancado do sono ao perceber que o filho não estava no quarto. O olhar dele não era duro, tampouco irritado. Ele parecia absorver cada detalhe, tentando compreender como Lorenzo havia ido parar ali, e por que estava tão tranquilo no meu colo. Havia surpresa na expressão dele, mas também algo além da surpresa — um reconhecimento silencioso que fez meu estômago apertar. — Ele acorda sempre que chove assim — Dante disse, aproximando-se com passos controlados. A voz estava mais grave do que o habitual, ainda marcada pelo sono. — Desde muito pequeno. A tempestade incomoda. — Ele estava assustado — respondi baixinho, acomodando melhor o menino. — Mas já relaxou. Acho que só precisava sentir alguém perto. Dante fez um movimento quase imperceptível com a cabeça, como se concordasse e discordasse ao mesmo tempo. Seus olhos, no entanto, permaneceram fixos no filho — e depois em mim. — Ele nunca vai para o colo de ninguém quando acorda assim — comentou, em um tom que não carregava desconfiança, mas sim constatação. O peso daquela frase me atravessou com uma força inesperada. — Talvez hoje tenha sido diferente — falei de maneira suave, sem ousar qualquer conclusão maior. Dante ficou em silêncio por alguns instantes, como se processasse o que não dizia. Quando finalmente falou, a voz saiu mais baixa: — Obrigado por estar aqui. Agradecimentos não pareciam algo comum em seu vocabulário, muito menos às cinco e meia da manhã. E aquilo, vindo dele, soou como algo muito mais íntimo do que realmente era. Levei Lorenzo para a sala de brinquedos quando percebi que ele havia adormecido de novo. Sentei-me na poltrona baixa, deixando-o repousar um pouco mais no meu colo antes de colocá-lo cuidadosamente sobre um dos sofás infantis. Cobri-o com o pequeno cobertor azul e fiquei observando seu rosto tranquilo, tão diferente da expressão assustada que tinha minutos antes. Quando ergui o olhar, encontrei Dante parado perto da estante, como se tivesse permanecido ali durante todo o tempo. Havia algo na postura dele que denunciava que não estava apenas verificando o filho — ele estava observando a forma como eu lidava com Lorenzo, a naturalidade com que eu o segurava, o cuidado espontâneo que oferecia. — Ele dormiu rápido — comentou. — Acho que o susto inicial passou. Às vezes, quando o medo vem forte, o cansaço logo vence — respondi. Dante cruzou os braços, mas o gesto não tinha rigidez; era como se ele tentasse reorganizar os próprios pensamentos antes de continuar. — Você tem um efeito estranho sobre ele — disse, com sinceridade transparente. — Lorenzo é uma criança que leva muito tempo para confiar. É… reservado. Seleciona quem deixa se aproximar. Percebi que a frase, mais do que um elogio, carregava um tom de alerta, como se ele próprio estivesse tentando entender por que isso acontecia. A proximidade súbita entre mim e o filho dele parecia deixá-lo em terreno desconhecido. — Não acho que seja um efeito — respondi. — Acho que ele está apenas encontrando segurança em pessoas diferentes. Você dá segurança a ele, mas às vezes eles precisam de mais de uma referência. Dante ficou me observando longamente, como se tentasse interpretar cada palavra que eu dizia. Depois desviou o olhar, olhando Lorenzo por alguns segundos silenciosos. — Mesmo assim… não é comum — murmurou. Não era uma reclamação. Não era ciúme explícito. Não era desconfiança. Era… vulnerabilidade. Uma que ele mal sabia como expressar. Quando Lorenzo acordou depois das seis, o céu ainda estava cinza, mas a chuva começava a diminuir. Levei-o para a cozinha infantil para tomar um pouco de suco. Ele estava mais animado, observando o barulho da água com menos medo e mais curiosidade. Foi nesse momento que meu talento natural para desastres decidiu atuar. Ao tentar entregar o copo a Lorenzo, meu cotovelo esbarrou na borda da mesa. O copo escapou dos meus dedos com uma velocidade impressionante, virou no ar e lançou suco exatamente na direção errada — a de Dante. Ele havia entrado na cozinha sem emitir sinal algum, silencioso como sempre. E, como se o universo tivesse escolhido aquele exato instante para me desafiar, o suco caiu diretamente sobre sua camisa branca. Fiquei completamente imóvel por dois segundos. Talvez três. O suficiente para sentir o pânico subir pelo meu corpo. — Meu Deus, Dante… quer dizer, senhor Valverde… eu… — comecei, tentando conter o desespero. — Me desculpa. Eu não sabia que você estava aí. Não vi você chegar. O copo escorregou. Eu sou um desastre às vezes, mas juro que não é sempre… Dante observou minha confusão com uma expressão que eu não esperava. Não era irritação. Não era frieza. Era… divertimento contido. — Laena — disse ele, interrompendo minha torrente de palavras. — Respire. — Eu estou respirando! — garanti, ainda sem conseguir parar de olhar para a camisa suja. — Acho. Talvez não do jeito certo. Um som muito próximo de um riso escapou dele. Ver Dante rir — mesmo que apenas um pouco — tinha um efeito estranho em mim. Era como ver uma rachadura momentânea em uma estrutura que eu tinha certeza que era inquebrável. — Acontece — disse, com a voz mais leve do que eu jamais tinha ouvido. — Não comigo. — respondi. — Comigo acontece três vezes por dia. Ele olhou para mim como se estivesse prestes a dizer algo mais profundo, mas foi interrompido quando Lorenzo puxou minha blusa com delicadeza, pedindo atenção. Aquele pequeno gesto desviou o olhar de Dante, e quando ele voltou a me encarar, a expressão já tinha mudado para algo mais controlado. Mais típico dele. Passamos o resto da manhã montando blocos e brincando com carrinhos, criando uma pista que Lorenzo supervisionava com precisão. Em alguns momentos, Dante se aproximava para observar, e a maneira como seus olhos seguiam as interações deixava claro que aquela conexão crescente entre mim e o filho o impactava de maneiras que ele tentava esconder. A cada sorriso espontâneo de Lorenzo, a cada toque leve, a cada risadinha que surgia quando a pista caía, algo se transformava na atmosfera da sala. A presença de Dante, mesmo silenciosa, parecia sempre reagir a isso — às vezes com sutileza, às vezes com intensidade. Quando Lorenzo adormeceu pela segunda vez, segui ao lado de Dante pelo corredor. A mansão estava silenciosa, exceto pelo som distante da chuva que ainda insistia em cair. Acompanhamos o menino até o quarto, e quando já estávamos voltando, Dante parou de repente, virando-se para mim. — Hoje… — começou, com a voz baixa e firme —, você fez mais diferença do que imagina. A frase me pegou desprevenida. Meu coração acelerou um pouco. — Eu estou apenas fazendo meu trabalho — respondi, mas havia mais emoção na minha voz do que eu pretendia demonstrar. Ele deu um passo lento na minha direção — não o suficiente para invadir meu espaço, mas perto o bastante para tornar o ar mais denso. — Não é só isso — disse, com honestidade desconfortável. — Eu convivo com muita gente nesta casa. Funcionários, consultores, pessoas contratadas… e você é diferente. Lorenzo percebe isso. Eu percebo isso. E ainda estou tentando entender se essa diferença é… positiva ou se é um risco. Eu não sorri. Não pisquei. Não fiz nada que quebrasse o momento. Apenas o encarei, esperando que ele continuasse, porque era evidente que havia mais por trás daquela frase. — Um risco? — repeti. — Para mim — respondeu, com calma precisa, antes de ser chamado à distância por alguém da equipe. Ele se virou e se afastou sem esperar resposta, como se tivesse revelado uma verdade que ele mesmo não estava preparado para sustentar por mais tempo. Mas a frase ficou, profunda e marcante. E eu soube, pela primeira vez com absoluta clareza, que não era apenas Lorenzo que estava se apegando. Dante também estava. Mesmo que nunca admitisse.






