A fuga

Raia não dormiu.

Como poderia? Cada vez que fechava os olhos, via aquela luz dourada pulsando sob a pele de Kael. Ouvia aquele grito que era parte humano, parte algo muito mais antigo e selvagem.

Kael era o dragão.

O dragão era Kael.

Ela repetiu isso para si mesma centenas de vezes durante a noite, tentando fazer a informação se fixar em seu cérebro. Mas cada vez parecia mais impossível, mais absurda.

Exceto que não era.

Todas as pistas estavam ali. Ela apenas não quisera ver. Não quisera conectar os pontos porque isso significaria que o homem que a fizera sentir segura pela primeira vez em sua vida era a mesma criatura que todos temiam.

A mesma criatura que deveria tê-la matado.

Por que ele não matou?

A pergunta martelava em sua mente, mas Raia não tinha resposta. E não ficaria para descobrir.

Ela precisava ir. Agora. Antes que amanhecesse. Antes que Kael voltasse e tentasse explicar, ou pior tentasse impedi-la de partir.

Com mãos trêmulas, Raia reuniu suas poucas posses. O vestido branco rasgado que usara quando chegou ela o deixaria. Era uma lembrança que não queria carregar. Pegou apenas as roupas mais práticas que Kael deixara no armário do quarto, botas resistentes, um manto pesado.

Comida. Ela precisava de comida.

Deslizou até a cozinha, movendo-se pelas sombras como um fantasma. Encheu uma bolsa improvisada com pão, queijo, frutas secas, um cantil de água. Não muito apenas o suficiente para chegar ao sopé da montanha. Depois disso... bem, ela pensaria nisso quando chegasse lá.

A fortaleza estava silenciosa. Morta. Kael não havia voltado.

Parte dela uma parte pequena e estúpida se perguntou onde ele estava. Se estava bem. Se a transformação doía tanto quanto parecia.

Raia afastou os pensamentos. Não podia se importar. Não devia se importar.

Ele mentiu para você, ela se lembrou. Ele te enganou desde o começo.

Mas outra voz sussurrava: Ele te salvou. Te protegeu. Nunca te machucou.

Raia balançou a cabeça, forçando-se a focar. Sair. Isso era tudo que importava.

Encontrou a saída o grande portão que Kael mencionara estar sempre aberto. Ele não mentira sobre isso. As portas massivas estavam destrancadas, esperando.

Como se ele sempre soubesse que ela eventualmente fugiria.

Raia olhou para trás uma última vez. A fortaleza parecia diferente agora não mais um refúgio, mas uma prisão disfarçada. Uma gaiola dourada onde ela quase se deixara prender.

Não mais.

Empurrou as portas e saiu para a noite.

A descida era mais difícil do que Raia lembrava.

Sem Kael para guiá-la, cada passo era uma aposta. A trilha era irregular, traiçoeira na escuridão. A lua fornecia alguma luz, mas não o suficiente. Não quase suficiente.

Seu tornozelo protestava a cada passo. Não completamente curado, mas ela não tinha escolha. Forçou-se a continuar, uma mão sempre na parede rochosa para equilíbrio.

O ar esfriava conforme ela descia. O calor sufocante das Montanhas Flamejantes dando lugar a algo mais tolerável. Raia puxou o manto mais apertado ao redor dos ombros.

Quanto tempo havia passado? Uma hora? Duas? Ela não tinha certeza. O tempo parecia distorcido na escuridão, cada minuto se esticando como eternidade.

E então ouviu.

Não um rugido desta vez. Mas batidas de asas. Pesadas. Poderosas. Aproximando-se.

Não.

Raia se pressionou contra a parede rochosa, tentando se tornar invisível. Seu coração martelava tão alto que ela tinha certeza de que ele poderia ouvi-lo.

A sombra passou sobre ela enorme, bloqueando a lua momentaneamente. Asas que pareciam cobrir o céu inteiro.

Ele estava procurando por ela.

Raia prendeu a respiração, não se atrevendo a se mover, não se atrevendo a fazer o menor som.

A sombra circulou uma vez. Duas. E então continuou, voando para mais longe, desaparecendo na direção oposta.

Ela esperou. Contou até cem. Depois até duzentos. Apenas quando tinha certeza absoluta de que ele havia ido embora, continuou descendo.

Mais rápido agora. Mais desesperada.

Precisava sair destas montanhas. Precisava colocar distância entre ela e Kael antes que ele voltasse. Antes que ele a encontrasse e...

E o quê? Perguntou aquela voz irritante em sua mente. O que você acha que ele vai fazer? Te devorar?

Ele teve dezenas de chances de me machucar, Raia reconheceu relutantemente. E nunca o fez.

Mas isso não mudava nada. Ele ainda mentira. Ainda a enganara.

Ainda era um dragão.

O amanhecer a encontrou muito mais abaixo na montanha, exausta e trêmula.

Raia havia parado apenas uma vez, quando suas pernas simplesmente se recusaram a continuar. Sentara-se por quinze minutos preciosos, comendo um pedaço de pão e bebendo água, antes de forçar-se a levantar novamente.

Agora, com a luz do sol pintando o céu em tons de rosa e dourado, ela podia ver o quanto havia progredido.

A fortaleza era apenas um ponto distante acima dela. E abaixo... abaixo ela podia ver o início da floresta que marcava o sopé das montanhas.

Quase lá. Apenas mais um pouco.

Mas seu corpo tinha outros planos.

A adrenalina que a mantivera em movimento durante a noite estava desaparecendo, deixando apenas exaustão crua. Seu tornozelo pulsava com dor constante. Suas pernas tremiam a cada passo.

Raia tropeçou, pegando-se na parede rochosa no último segundo.

Precisava descansar. Apenas por um momento. Apenas...

Seus olhos se fecharam contra sua vontade.

Apenas cinco minutos. Então continuaria.

Apenas cinco minutos...

Kael retornou à fortaleza quando o sol nascia.

A transformação sempre o deixava exausto era por isso que ele evitava fazê-la, ficando preso naquele estado intermediário doloroso a maior parte do tempo. Mas a dor de ver Raia fugir, de ver aquele medo em seus olhos...

Ele precisara voar. Precisara liberar a pressão, ou explodiria completamente.

Mas agora, retornando à forma humana, a realidade o atingia como um martelo.

Ela sabia.

E ela fugira.

Exatamente como ele previra. Exatamente como todos faziam.

Kael se vestiu mecanicamente, cada movimento pesado de resignação. Ele deveria deixá-la ir. Deveria aceitar que era assim que tinha que ser.

Mas primeiro, precisava garantir que ela estava bem. Que chegara ao quarto em segurança. E então... então ele a deixaria em paz.

Subiu as escadas até o quarto dela, batendo na porta gentilmente.

-Raia?

sua voz saiu rouca pelo desuso e pelo grito mais cedo.

- Eu sei que você está assustada. Eu entendo. Mas precisamos conversar. Por favor.

Silêncio.

-Raia, Eu não vou te machucar. Eu nunca machucaria você. Você tem que acreditar nisso.

Nada.

Uma sensação gelada começou a se formar em seu estômago. Kael empurrou a porta destrancada.

O quarto estava vazio.

Completamente vazio.

Não apenas vazio de Raia, mas de seus pertences. As roupas que ele deixara. O manto. Tudo havia sumido.

- Não

ele sussurrou, virando-se e correndo para a cozinha.

Comida faltando. Cantil desaparecido.

Ela não apenas fugira do quarto. Ela fugira da fortaleza.

-Não, não, não

Kael correu para o portão principal.

Aberto. Como sempre estava. Como ele prometera que estaria.

E nenhum sinal de Raia.

O pânico real e visceral rasgou através dele. Ela estava lá fora. Sozinha. Na montanha. Com um tornozelo mal curado e sem conhecimento real do caminho.

Havia lobos naquelas montanhas. Penhascos traiçoeiros. Mil formas de uma garota inexperiente se machucar ou pior.

E ele a deixara ir.

Não ele não deixara. Ela fugira enquanto ele estava... enquanto ele estava se destruindo em dor e transformação por causa dela.

A dor.

Kael pressionou uma mão contra o peito, onde aquela agonia constante pulsava. O vínculo. O maldito vínculo que os prendia, que ficava mais forte a cada dia, que estava lentamente os matando porque ela não sabia.

Porque ela não aceitava.

E agora ela estava lá fora, afastando-se mais a cada momento, e a dor estava piorando. Não mais uma pontada surda, mas algo agudo, rasgando, como garras cravadas em seus pulmões.

Ele precisava encontrá-la.

Não para trazê-la de volta ele não faria isso, não a forçaria mas para garantir que ela estava segura. Para guiá-la até o sopé da montanha se necessário. Para se certificar de que ela sobreviveria.

Mesmo que isso o destruísse no processo.

Kael não se preocupou em pegar suprimentos. Apenas correu descendo a trilha que conhecia de cor, movendo-se mais rápido do que qualquer humano poderia, deixando a transformação parcial tomar conta apenas o suficiente para aumentar sua velocidade e sentidos.

Ele a encontraria.

Tinha que encontrá-la.

Porque a alternativa perdê-la completamente, deixá-la desaparecer sem ao menos garantir sua segurança era impensável.

Duas horas depois, Kael parou, ofegante.

Ele percorrera quilômetros de trilha. Verificara cada desvio, cada caminho alternativo.

Nada.

Nenhum sinal de Raia.

Nenhuma pegada fresca. Nenhum pedaço de tecido preso em rochas. Nada.

Como se ela simplesmente tivesse desaparecido.

-RAIA! RAIA, POR FAVOR!

Apenas seu próprio eco respondeu, zombeteiro em sua futilidade.

A dor em seu peito era insuportável agora. Cada respiração era agonia. O vínculo estava gritando, exigindo que ele a encontrasse, que a trouxesse de volta.

Mas ele não conseguia.

Pela primeira vez em sua longa e solitária vida, Kael sentiu algo próximo ao desespero real.

Ela se fora.

E ele não fazia ideia de onde.

Tudo que restava era dor, e a certeza crescente de que se ele não a encontrasse logo...

O vínculo os mataria.

A ambos.

Raia acordou com o sol já alto no céu.

Seu corpo inteiro doía. O tornozelo estava inchado novamente, pulsando com dor que fazia lágrimas brotarem em seus olhos. E ela estava com frio um frio profundo que penetrava até os ossos apesar do sol.

Quanto tempo dormira? Horas, aparentemente. Horas preciosas desperdiçadas.

Forçou-se a levantar, gemendo com o esforço. Precisava continuar. Precisava...

Uma tontura súbita a fez cambalear. Raia se apoiou na parede rochosa, esperando o mundo parar de girar.

Estava bem. Apenas cansada. E com fome. E machucada.

Estava bem.

Exceto que não estava.

Havia algo errado. Algo além da exaustão física. Uma sensação estranha em seu peito como se algo estivesse faltando. Como se parte dela tivesse sido arrancada e deixada para trás.

Era o mesmo sentimento de quando Kael se afastava, mas pior. Muito pior.

Raia tentou ignorar, forçando-se a dar mais um passo. Depois outro.

Cada movimento era tortura.

Mas ela continuou.

Porque voltar não era opção.

Mesmo que seu corpo estivesse gritando que estava.

Mesmo que aquela dor em seu peito estivesse crescendo, espalhando-se, tornando cada respiração mais difícil.

Mesmo que uma parte dela pequena, assustada, mas persistente sussurrasse que ela cometera um erro terrível.

Que fugir de Kael era a pior coisa que poderia ter feito.

Não apenas para ela.

Mas para ambos.

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