Você mudou tudo
Você mudou tudo
Por: LeneGracce
O término

O telefone tocou, e Clara correu ansiosamente pelo quarto à sua procura, já que aquele não era um horário comum para receber ligações. Ao encontrá-lo dentro da bolsa, sobre a cômoda, percebeu que já havia parado de tocar e que a tela do aparelho mostrava a chamada perdida e o nome do namorado. No mesmo instante retornou a ligação, precisava descobrir o que o motivara a ligar tão tarde da noite.

Manuel e Clara namoravam há quatro anos, mais precisamente desde o dia em que perderam a virgindade juntos. Eram amigos inseparáveis de infância e quando cresceram, se apaixonaram. O começo da relação trouxe mais proximidade e intimidade entre os dois, então falavam sobre tudo. Faculdade, casamento e até quantos filhos teriam eram assuntos corriqueiros. Suas famílias já faziam grandes planos para o tão sonhado dia em que seus filhos se casariam e lhe dariam netos. Sentiam muito orgulho do quanto seus filhos foram responsáveis e determinados ao passarem um ano estudando sem cessar para o vestibular.

Manuel conseguira uma vaga para Direito, e Clara, para Publicidade e Propaganda, apesar de não ter sido sua primeira escolha — sempre desejou cursar Turismo e Hotelaria. Entretanto, sem o apoio e aprovação dos pais, a menina não sentiu coragem de ir adiante com o sonho de viajar o mundo. Além disso, aquele desejo não se encaixaria em seus planos com Manuel.

Se Clara não estava plenamente satisfeita com o curso, seus sogros eram o oposto, estavam tão felizes, que planejaram uma comemoração em homenagem aos dois na casa de praia, em Florianópolis, durante o carnaval. Depois disso, o casal moraria junto em um local próximo à faculdade.

Como faltavam alguns dias para o carnaval, Clara ainda estava em Porto Alegre, onde morava, e viajaria somente na semana seguinte. Como fotógrafa estagiária de um famoso estúdio, tinha formaturas para realizar antes das suas tão esperadas férias. Manuel, por outro lado, já estava na praia há algumas semanas e ligava para a namorada geralmente durante o almoço para conversarem. Porém, devido aos eventos de Clara, que tomavam praticamente seu dia e normalmente terminavam muito tarde, quase não conseguiam encaixar os horários.

— Oi, amor, o que faz acordado a essa hora? Saudades, é? — Clara perguntou, animada, enquanto sentava na cama e se livrava dos sapatos que tanto lhe fizeram sofrer durante mais uma noite de fotos intermináveis na formatura de uma escola de ensino médio.

— Oi, como você está? — Manuel perguntou de maneira fria.

— Estou bem, por quê? Aconteceu alguma coisa? — Clara indagou, nitidamente preocupada, jogando sobre a poltrona as meias e deitando na cama.

— Sim, e não. Na verdade, não aconteceu nada de grave, mas dependendo da perspectiva, pode até ser um pouco preocupante. Não sei como te contar isso...

— Fala logo, Manuel! O que houve? Seus pais estão bem? Seu irmão? Você? — Clara o interrompeu e sentou na cama, encarando o mural na parede à sua frente cheio de fotos suas com seu namorado, amigos e família. A preocupação a consumia só de cogitar que algo grave tivesse acontecido.

— Sim, todos estão bem! Precisamos conversar — respondeu.

Se antes a expressão de Clara era de preocupação, ao ouvir tais palavras, seu rosto demonstrava pânico. Ninguém falaria daquela forma se não fosse algo grave.

— O que está acontecendo, Manuel? — rompeu o silêncio, perguntando mais uma vez.

— Acho que precisamos dar um tempo — disse, simplesmente, e Clara se levantou e começou a andar pelo quarto, ainda com seu uniforme de fotógrafa, sem conseguir entender o que Manuel dizia.

— O quê? Como assim um tempo? Não existe tempo! Você está terminando comigo? Não! Peraí...

— Calma, Clara! Por favor, entenda... — Manuel a interrompeu, mas Clara já estava em choque.

— Calma?! Entenda?! Ei! Você está terminando comigo por telefone? O que aconteceu? O que eu fiz? São os eventos? Porque eu posso cancelar. Está bravo comigo? — a menina falava sem parar, e lágrimas já ameaçavam escorrer por seu rosto.

— Clara! Você não fez nada. Não é você, sou eu — Manuel tentava explicar, mas só piorava a situação.

— É sério que está usando a desculpa mais esfarrapada de todas, “não é você, sou eu”?

— Não! Não é isso que estou querendo dizer. É que você não fez nada! Sou eu quem precisa de algum tempo — respondeu, e Clara tentou disfarçar o choro, não podendo acreditar que estava sendo dispensada por telefone!

— Como assim? Você está brincando comigo, não é? Porque se for uma brincadeira, não tem graça nenhuma. Estamos juntos há quatro anos, e você me liga uma semana antes da nossa comemoração na praia para me dizer que quer dar um tempo?

— Clara, me desculpe. Mas não está dando certo. Preciso de um tempo, você pode respeitar isso? — Manuel perguntou, totalmente alheio aos sentimentos da namorada.

— Respeitar? Você quer falar de respeito? Está terminando comigo por telefone! São quatro anos, Manuel! Fomos amigos a vida toda! O que aconteceu com você? Está doente? — gritou.

— Pode se acalmar, por favor? — perguntou, como se a revolta de Clara fosse a coisa mais anormal do mundo.

— Me acalmar? Manuel, quero saber o porquê. Por que está terminando comigo dessa forma? Por que não fez isso antes de viajar? Eu mereço saber o que está acontecendo! Você não me ama mais? — Clara, já aos prantos, perguntou.

— Não é isso. Eu só não sei como lhe dizer...

— Dizer o quê? Eu mereço saber! Tenha pelo menos a decência de falar a verdade para quem um dia você amou. Se é que...

— Eu conheci alguém! Me perdoa — Manuel a interrompeu, já sem paciência.

O mundo de Clara pareceu desabar naquele exato momento. Seu namorado não estava somente terminando o relacionamento, mas também a deixava por causa de uma mulher que conhecera a algumas semanas?

— Você o quê? Não! É um pesadelo, não pode ser real! É pegadinha! Você está gravando para postar no YouTube, não é? — Clara perguntou, nada daquilo fazia sentido.

Como assim Manuel havia conhecido alguém?, pensou durante todo aquele pesadelo.

— Não torne isso ainda mais difícil, por favor.

— Como pode não ser difícil? Impossível! Manuel, você está se ouvindo? Está me dizendo que conheceu alguém e está terminando comigo pelo telefone! Me diz em que mundo algo assim pode ser fácil ou normal? Só se for para você! — Clara dizia, mas nada parecia convencê-lo de que aquele gesto era um erro.

Com uma mulher morena e de olhos cor de esmeralda sentada em seu

colo enquanto acariciava seus cabelos, Manuel se mostrava distraído. Já não era mais o mesmo homem pelo qual Clara havia se apaixonado. O Manuel que a menina convivera por anos jamais faria tamanha safadeza com ela e muito menos de maneira tão fria.

— Clara, preciso desligar. Meus pais estão me chamando — mentiu. — Quem sabe conversamos melhor outro dia? Você está muito nervosa agora — Manuel tentava encerrar a ligação para ir à melhor festa da praia de Jurerê Internacional com Agatha, a mulher pela qual havia se apaixonado. Ele não pretendia passar horas discutindo por telefone com sua ex-namorada.

— Manuel! Seus pais estão acordados a essa hora? Por favor, você não pode fazer isso comigo. É sério mesmo? Tem certeza que vai trocar nosso relacionamento por uma mulher qualquer? — Clara começou a gritar, furiosa.

— Sim, acabou, Clara! Talvez eu me arrependa de ter feito dessa maneira, mas, por ora, acabou! Preciso pensar em meus sentimentos, e a mulher que conheci não é uma vagabunda, ok? Não se rebaixe a ofendendo, pois você não a conhece. Além disso, não vou ficar discutindo com você, já disse tudo que tinha para dizer — Manuel cortou friamente.

— Ah! Claro, porque ficar com um homem comprometido e destruir um relacionamento de anos é uma coisa rotineira, não é mesmo? — ironizou com desdém.

— Eu sabia que não deveria ter dito nada sobre ela, mas quis ser sincero com você. Poucos dias após ter vindo, a conheci em uma festa e estou apaixonado. Isso significa que não sinto mais nada por você, ou jamais teria sequer olhado para outra mulher, não acha? Sinto muito, sei que vai doer, mas...

— Vá à merda, seu filho da puta! Não acredito que teve a coragem de ser tão cretino! — Clara gritou pouco antes de desligar e deitar na cama, afundando o rosto no travesseiro para tentar conter o choro. — Desgraçado! — gritava e chorava, socando o travesseiro. — Filho da Puta! Não acredito! É um pesadelo! Isso não é real! Não pode ser!

Clara não conseguia conter a indignação e decepção. A dor no peito era tão grande, que tinha a impressão de que morreria. Nunca havia sentido algo parecido em toda vida. Raiva, mágoa, abandono, traição, tristeza e muita dor. Uma explosão de sentimentos sem fim.

— Filha! O que está acontecendo? — Ester, mãe de Clara, entrou no quarto, apavorada com a gritaria.

— Mãe, está doendo! — gritou com a mão no peito.

— Onde, filha? Está doendo onde? No peito? O que houve? — Ester averiguava se Clara havia se machucado.

— Não acredito! Está doendo!

— Filha, por favor, precisa me dizer o que houve! — enquanto tentava entender o que a filha dizia, abraçava Clara, que soluçava de maneira inconsolável.

— Aqui! Não aguento! — apontou em direção ao coração.

— Pare, filha! Respira! Tente se acalmar, por favor. Estou ficando preocupada! — Ester segurava as mãos de Clara, fazendo carinho em seus cabelos e costas, tentando acalmá-la, mas sem obter muito sucesso. Acalmar um coração partido era uma tarefa praticamente impossível, mesmo para uma mãe.

Cinco dias passaram, e Clara permanecia no quarto sem querer falar com ninguém. Ester fez de tudo ao seu alcance para entender o que ocorria, mas a filha não lhe explicava nada com clareza. Manuel também se mantinha calado sobre o término do namoro com os ex-sogros, e seus pais estavam furiosos com a situação. Nas poucas vezes em que Clara conseguiu abandonar a cama, seus pais tentaram animá-la, mas nada lhe fazia sorrir. Uma tristeza profunda a dominava, a impedindo até mesmo de ir trabalhar.

Claudio, pai de Clara, conseguiu antecipar as férias da filha no estúdio, pois era um grande amigo do proprietário, porém o tão sonhado momento de descanso se tornou um pesadelo real, que a mantinha acordada por tempo suficiente apenas para chorar. No restante do tempo, dormia o quanto podia para esquecer de tudo.

— Entre, Sabrina, ela está no quarto há dias. Não sei mais o que fazer — Ester disse para a melhor amiga de Clara ao abrir a porta de sua casa para que a menina entrasse.

— Ela contou o que aconteceu? Eu estava na praia, voltei para fazer a prova final do curso de inglês, mas ela não quis me contar pelo telefone, tia. Acho que foi grave.

— Soube através de Manuel que eles terminaram, mas ele não me disse nada além disso — respondeu, abaixando a cabeça com uma expressão triste no rosto.

Manuel era como um filho para Ester, que nem imaginava o que o rapaz tinha feito com sua filha. Clara tinha decidido não contar os detalhes do término para não magoar a mãe.

— Eles o quê? — o espanto de Sabrina foi inevitável. Ela tinha passado uma semana inteira ajudando Manuel a escolher as alianças para o pedido de casamento surpresa que faria à Clara. Tudo estava programado para acontecer na comemoração na praia, o que havia mudado?

— Sim! Terminaram pelo telefone — Ester finalizou, e Sabrina correu em direção ao quarto da amiga. Subiu as escadas em meio a xingamentos e palavrões.

— Não acredito que esses dois idiotas fizeram isso pelo telefone!

— Clara! Acorda! Você não fez isso, né? Não pelo telefone! — Sabrina entrou no quarto gritando e descobrindo Clara, que estava enrolada em cobertas até a cabeça.

— Me deixa em paz! — gritou.

— Levanta agora dessa cama! Sua mãe disse que você não sai mais do quarto. Vai virar um zumbi? — indagou, furiosa.

— Sabrina, não estou a fim de conversar agora, por favor! — Clara puxou as cobertas e se cobriu novamente.

— Pode parar com essa palhaçada! Está um forno lá fora, e você congelando nesse ar-condicionado.

— Cala a boca!

— Não calo! Você sabe que foi só mais uma briga e que vão voltar em breve. Já brigaram tantas vezes... Até terminaram, mas nunca foi o fim. Isso vai passar, vocês vão voltar — Sabrina disse, rindo ao sentar na cama ao lado da amiga.

— Não foi uma briga! Dessa vez não tem mais volta. Me deixa aqui quietinha morrendo em paz, por gentileza?! — reclamou e cobriu o rosto, tentando fugir da conversa.

— Quantas vezes já ouvi isso? — Sabrina debochou tentando animá-la.

— Porque agora ele tem outra! Está satisfeita? Ele terminou comigo pelo telefone e disse que está apaixonado por uma mulher que conheceu na praia! — Clara gritou aos prantos.

Um silêncio invadiu o pequeno quarto azul de Clara. Sabrina queria gritar, mas não conseguia encontrar palavras para expressar o ódio que estava sentindo de Manuel, então fez a única coisa que poderia fazer: abriu os braços e ofereceu seu colo para sua amiga recostar a cabeça e chorar. Enquanto fazia carinho nos cabelos de Clara, a menina sofria mais uma vez a dor da traição.

Depois de alguns minutos em silêncio, Sabrina levantou, decidida a mudar a situação em que a sua irmã de alma se encontrava. Clara a olhava com olhinhos de Gato de Botas, quando Sabrina começou a discursar:

— Amiga. Estou aqui por você. Eu sei que deve estar doendo, mas você não pode ficar assim para sempre. Então eu vou te dar uma última chance para sofrer. Você está livre para chorar, bater, gritar e até espernear essa noite. Depois disso, você vai subir em seu salto quinze, jogar esses lindos cabelos loiros para o lado, secar as lágrimas desses olhos cor de mel de dar inveja a abelhas, tirar essa camiseta larga, rasgada e ridícula, que você chama de pijama, desse corpinho estilo pista de skate e vai mostrar para aquele otário de merda o que ele perdeu. Estamos entendidas? — Sabrina ameaçou, fazendo pose com o dedo indicador para o alto, com direito a movimento de pescoço da Fat Family e muitas caras e bocas.

— Ele terminou comigo, amiga. Terminou por telefone! Me trocou por uma vagabunda qualquer! — Clara começou a falar como se ainda não entendesse o que acontecera.

— Ele é um cretino, e eu vou matá-lo! Pode ter certeza que o que é dele está guardado. Estou tão perdida quanto você, amiga, mas já dizia minha tia: Deus não nos tira nada nessa vida, Ele nos dá livramento desses capirotos disfarçados de bons moços! Ele remove o ruim para que o bom possa ocupar o seu lugar! Você não merecia essa sacanagem! Ele não é o Manuel que conhecemos, ou sempre foi esse canalha e só se revelou agora. Melhor durante o namoro do que depois de casada, amiga. Vai por mim!

Clara a ouvia atentamente.

— Você sabe que me divorciei após um ano por causa disso. Achei que conhecia o Carlos, mas só fui descobrir que ele era um mentiroso da pior espécie depois de ter sido uma otária e ter entrado naquela igreja de vestido de noiva. Homens quando prestam raramente estão solteiros ou são héteros — Sabrina continuava a discursar, e pela primeira vez arrancou um sorriso bobo de Clara, que sabia que sua amiga era a pessoa certa para lhe tirar da fossa, já que para a amiga se tornar uma palhaça só faltava o circo.

Porém, mesmo diante de todas as incansáveis tentativas de Sabrina de arrancar sorrisos da amiga, Clara continuava revoltada ao imaginar Manuel com outra. O que estariam fazendo enquanto ela sofria?

— Não adianta! Ele está com outra mulher na nossa praia, na semana da nossa comemoração. Acabou! — a ficha ainda não havia caído, porém de uma coisa ela tinha certeza: jamais conseguiria perdoá-lo.

Sabrina passou o final de semana na casa de Clara a consolando. Conversavam durante horas, revendo vários pontos do relacionamento dos dois e tentando identificar quais seriam os motivos para um término como aquele. Clara até mandou mensagens para Manuel, perguntando mais detalhes daquela mudança tão repentina, mas ele só respondeu o primeiro contato com um simples e curto “Sinto muito”. Depois disso passou a ignorá-la e até a bloqueou nas redes sociais e no aplicativo de mensagens.

Clara continuava muito abatida, todos os anos de planejamento haviam sido destruídos em uma única ligação. Os sonhos do casal não faziam mais parte de sua vida, e ela não conseguia se imaginar sem eles. Tudo tinha sido roubado por causa de uma nova mulher. Anos de relacionamento e amizade trocados por

dias com uma desconhecida. Inacreditável!

Manuel era um homem incrível, além de seu melhor amigo. Conheciam tudo sobre o outro e raramente brigavam. Todas as vezes em que terminaram por pirraça, não passaram mais do que dois dias separados. Para Clara, Manuel era o seu mundo, e ela acabara de perdê-lo.

— Bom dia, amiga. Acorda! — a voz de Sabrina invadia os sonhos de Clara enquanto mãos acariciavam seu rosto e cabelos. Tudo o que desejava era não acordar. Em seus sonhos, tudo permanecia normal, e acordar obrigava Clara a enfrentar a realidade.

— Sai... me deixa dormir. Não quero acordar, está tão bom aqui! — ela implorava com a voz arrastada e dengosa.

— Tenho novidades, levanta essa bunda da cama, agora! — Sabrina gritou, puxando a coberta, como tinha feito nos últimos dias, já que a amiga parecia ter incorporado a Elsa de Frozen em seu quarto congelado.

— Nenhuma novidade me faz sair dessa cama hoje, por favor! Só me deixa... — Clara afirmou, se cobrindo novamente, o que durou apenas alguns segundos até Sabrina jogar as cobertas para longe.

— Vamos viajar! Já comprei as passagens e falei com seus pais. Vamos arrumar as malas? — Sabrina disse, animada, enquanto abria as cortinas, fazendo com que Clara quase se enfiasse debaixo da cama como um vampiro fugindo da luz.

— Você só pode estar ficando louca! Eu não vou viajar! Sai já do meu quarto, sua infeliz! — Clara exclamou, correndo em direção à janela para fechar as cortinas novamente.

— Ah! Você vai! — ameaçou.

— Não! Eu não vou! — revidou, revirando os olhos.

— Vai, sim! Nossa amizade depende disso! E você me deve uma desde a vez em que me deixou sozinha naquela pousada para sumir com seu namorado do capeta. Agora você vai, e acabou! — Sabrina gritou, apontando o dedo

indicador em direção ao rosto de Clara, que lhe deu um tapa na mão.

— Tira esse dedo da minha cara, desgraça! E, não, eu não vou!

— Bom, como eu já disse, nada melhor do que montar em cima de um homem para esquecer outro. Há quantos anos você não está solteira? Eu quero minha amiga toda só para mim nesse carnaval. Então você vai! — Sabrina finalizou.

Em seguida, pegou a mala vazia ao lado da porta, a colocando em cima da cama de Clara, que a encarava com olhos semicerrados. Se existisse um meio de soltarem faíscas, sua amiga teria virado uma torrada sardenta e ruiva.

— Passagens para onde? — Clara perguntou, e Sabrina abriu um sorriso convencido. Lutar contra as teimosias de sua melhor amiga era impossível, desde a infância sabia que quando a esquentadinha colocava uma coisa na cabeça, ninguém conseguia tirar.

— Praia de Torres, gata! — respondeu, abrindo o guarda-roupas de Clara. — Vamos ver se lhe restou alguma peça sexy do tempo em que ainda podia escolher suas próprias roupas — comentou enquanto vasculhava as prateleiras. — Adoro! Eu sabia que não ia se livrar das peruíces. Uma vez perua, sempre perua! — sorriu ao encontrar o esconderijo das peças, na última gaveta.

Manuel era muito ciumento e, com o passar do tempo, passou a controlar as roupas que Clara vestia, a fazendo acreditar que suas antigas roupas não eram adequadas para uma mulher decente e comprometida.

— Torres? — perguntou, desanimada. No fundo, tinha a esperança de ver Manuel, e quem sabe conhecer de perto a mulher que o roubou tão facilmente. Havia passado dias procurando fotos e alguma informação a respeito dela nas redes sociais de seu ex, mas não tinha encontrado nada. Até que foi bloqueada por Manuel.

— Sim! Já temos até onde ficar, eu sou ou não sou a melhor? — debochou enquanto pegava algumas roupas e as jogava dentro da mala.

— Temos? Onde? — perguntou, curiosa.

— Vamos ficar na casa da minha tia Jaque, não é na praia, mas é no

centro. Fica próximo da rua de onde partirá a escola de samba que faremos parte

— disse e saiu depressa em direção ao banheiro para pegar alguns pertences de Clara.

— Escola de samba? Eu nunca desfilei em nenhuma antes, e não será agora que vou. Então pode esquecer! — Clara respondeu a caminho do banheiro, revoltada. Odiava samba e tudo que representava o carnaval, apesar de ser um dos seus feriados favoritos, já que podia curtir com a família, amigos e com o namorado. Mas, naquele momento, nutria um ranço mortal por tudo que lembrava o ocorrido.

— Depois conversamos sobre isso. Agora vai tomar um banho, você está fedendo a mendigo. Vou terminar de arrumar suas malas e depois do almoço vamos para a rodoviária.

Clara apenas assentiu, decidindo não avançar na discussão. Bateu a porta do banheiro e entrou em modo offline, desligando seus pensamentos o máximo que conseguia.

O ônibus de viagem sairia às cinco e trinta da tarde, o que fazia com que tivessem um bom tempo para almoçar e encontrar o mais novo integrante da missão “Clara, sai da fossa!”, Edson, amigo de Sabrina, que passou a ser seu companheiro de balada, já que Manuel era mais caseiro e detestava festas, impedindo Clara de curtir com os amigos.

— Vamos, Clara! Temos que encontrar o Edy — Sabrina dizia enquanto, apressada, corria pela rodoviária em direção à plataforma.

— Já estou indo! Não é você que está carregando a casa toda na mala, não é mesmo? Ainda vou te matar por ter feito a minha mala! Não bastava me arrastar, tinha que trazer o Edson também?

— Sem ele, não teria graça. Você vai ver! — piscou para Clara, que não resistiu e sorriu, concordando.

Edson era sempre a alegria das festas e encontros entre amigos, uma pessoa que encantava a todos por onde passava com seu carisma. Quando tinha quatorze anos, morou por algum tempo com Sabrina, durante o processo de aceitação de sua orientação sexual por seus pais. Tudo foi descoberto quando,

em uma sexta-feira, seus pais chegaram mais cedo do trabalho e pegaram seu filho aos beijos com o colega da escola. Apesar do baque ter sido constrangedor, seus pais demonstraram muito amor e compreensão alguns meses após o ocorrido, o convidando para voltar para casa.

Clara e Sabrina encontraram Edson na plataforma em meio a abraços e pulos animados. Durante o embarque, trocaram de assento no ônibus para que ficassem mais próximos, dessa forma partindo juntos em direção à praia de Torres.

Edson tentava animar Clara o tempo todo contando suas histórias com os “saradões” da academia onde trabalhava. No entanto, ela se sentia anestesiada, não conseguia pensar em nada além do que tinha acontecido e muito menos no que os amigos falavam sem parar ao seu lado. Porém, quando finalmente conseguiu refletir sobre a viagem, um detalhe veio à mente.

— Amiga, como vamos ajudar na casa dos seus tios? Tem certeza que não vamos incomodar? — Clara indagou, preocupada.

— Não, fica tranquila. Já combinei tudo com a tia. Daremos uma ajuda de custo para as despesas pelos dias que ficarmos lá. Vou com ela amanhã no supermercado comprar algumas coisas também. Eu e o Edy fazemos isso todos os anos. Relaxa e confia em mim — Sabrina disse, orgulhosa de si mesma.

— Me empresta o celular rapidinho, Edy? — Clara tentou fugir das fofocas enquanto ambos conversavam.

— Claro, não tem muita bateria, mas acho que dá para você usar rapidinho — entregou, distraído com o babado que ouvia de Sabrina a respeito de um novo vizinho que era um pedaço de mau caminho e a tinha convidado para sair.

Pelas redes sociais de Edson, Clara aproveitou a distração dos amigos e buscou o perfil do ex-namorado para ver se conseguia alguma informação da mulher que o conquistara. Assim que abriu o perfil dele, lá estava a garota abraçada a Manuel, de frente ao quiosque preferido de Clara em Florianópolis. Era uma moça com cabelos longos e pretos, pele bronzeada, pequenos seios, cobertos por um tomara que caia que mostrava a marquinha da alça do biquíni anterior, quadris proporcionais e nada que chamasse muita atenção em sua aparência, exceto o sorriso contagiante.

De perfil, o casal estava de frente para o outro, as mãos dela nos ombros de Manuel, e as dele, na cintura da menina. Seus olhos encaravam os de Manuel de um jeito que ambos aparentavam ser namorados por décadas. Ele estava de sunga vermelha, com as pernas torneadas pelo futebol de todas as quintas-feiras totalmente modeladas. Seus gominhos recebiam o toque da barriga chapada de Agatha, nome que foi citado na legenda com a frase que dizia “Encontrei meu refúgio em você”.

Era como se Clara fosse esfaqueada através da tela do celular. A jovem não parecia ser capaz de respirar novamente depois daquela imagem. Voltou um pouco mais, e Manuel aparecia sozinho em uma foto que fora tirada por Clara, na última noite em que estiveram juntos no Gasômetro de Porto Alegre, ao pôr do sol. “Alguns ciclos precisam se romper para que novos portais se abram em nosso caminho. Que venham novos ares.”, dizia a legenda, claramente editada. Há poucas semanas, o texto acima daquela imagem era outro: “Tarde perfeita com a pessoa mais perfeita do mundo para mim”. Ver tudo aquilo só fazia piorar a sensação de ser esfaqueada sem piedade. Uma lágrima solitária escapou e passeou pelo rosto de Clara, repousando e salgando seus lábios trêmulos, tamanha era a vontade de gritar que sentia por dentro.

Reuniu todas as forças que ainda lhe restavam, uniu ao pouco de dignidade que encontrou, fechou as redes sociais e devolveu o celular de Edson. Em seguida, se virou, colocando fones de ouvido para ouvir sua Playlist da Bad, e fechou os olhos, pensando se seria possível morrer dormindo. A viagem duraria algumas horas, e conhecendo os dois, ela sabia que não conseguiria dormir direito à noite. Cada minuto de sono era essencial para aguentar a energia do carnaval.

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