Capítulo Um

Foi há muito tempo, mas descobri que não é verdade o que dizem a respeito do passado, essa história de que podemos enterrá-lo. Porque, de um jeito ou de outro, ele sempre consegue escapar.

Khaled Hosseini


O frio da tarde com o céu acinzentado refletiu o brilho tristonho dos olhos cansados de observar o copo de vidro contendo o líquido transparente. Os minutos avançavam conforme o "tic-tac" irritante dos pêndulos do relógio ecoavam pela sala. A solidão se tornou sua melhor companhia durante os anos transcorridos. Esquecer era mais uma das palavras da lista do impossível. Nada podia lhe tirar da cabeça as cenas dilacerantes que ainda provocavam um redemoinho de fúria e ódio.

Resmungando consigo mesmo, ergueu copo cheio de Vodca. Apesar de beber socialmente ele tentava aproveitar tal momento para esquecer a realidade. Mas, esse não era o cerne do problema. Theo possuía outro tipo de diversão que certamente deixaria todos horrorizados, caso viessem à descobrir. Algo desumano. Psicótico. Injustificável.

Leves batidas na porta interromperam seu momento de terapia. Nitidamente demonstrou desconforto por ser despertado de seus devaneios.

— Entre! — Bradou, continuando a beber, despreocupado.

— Senhor. — O rapaz loiro e esguio relutou antes de entrar na sala. Mas o olhar medonho do patrão o obrigou a engolir a saliva presa na garganta e fechar a porta atrás de si.

— Espero que seja algo importante, Guilherme. — Disse ele, largando o copo vazio em cima da mesa. O funcionário observou a cena,  espantado por presenciar a negligência profissional.

Guilherme pigarreou, se recompondo rapidamente ao recordar da pasta que trazia consigo. Se aproximou da mesa, sentindo o cheiro da bebida alcoólica e lhe estendeu o objeto, temeroso pela reação da figura superior.

— Er...senhor, ontem nós descobrimos um fator trágico no sistema numérico.— Exprimiu, assim que Theo pegou a pasta e a abriu, franzindo a testa.

— Sabotaram os números. — Murmurou, enquanto percorria os olhos nas páginas marcadas. — Quem fez isso?

— Desconfiamos dele porque sempre conversava ao celular após as reuniões internas...contratei um detetive para segui-lo e descobrimos que na semana passada uma das modelos da marca concorrente estava se encontrando com o diretor Júlio. As fotos que comprovam a culpa dele estão todas aí.

Theo contraiu as mandíbulas, desvendando o quebra-cabeças. Não esperava um de seus melhores acionistas traí-lo. Examinou atenciosamente as fotos, expelindo o ar dos pulmões.

— Ele teve acesso ao novo projeto? — Perguntou mesmo já suspeitando da resposta.

— Sim, senhor. Para piorar, este desvio gerou uma quebra de três milhões de reais do cofre. Segundo as investigações que fiz ele tem desviado boa parte do dinheiro há seis meses.

Theo ergueu os olhos para o rapaz amedrontado à sua frente. Embora, fosse dono de várias marcas de sucesso e tivesse poupanças com valores inestimáveis, não permitiria alguém lhe passar a perna — sendo funcionário ou não. Um plano maquiavélico projetou na mente dele.

Repuxou os lábios carnudos, outrora comprimidos numa linha rígida, e soltou uma risada diabólica. Guilherme engoliu em seco, evitando de encará-lo. Conhecia bem a famigerada alcunha "monstro do lago Ness" e aquela expressão sombria, evidenciava a sentença de um castigo.

— Chame meus sócios, agora. — Ordenou, cessando o riso. Guilherme assentiu, se retirando o mais rápido possível da sala. Do lado de fora, afrouxou a gravata sentindo um calor descomunal.

Os homens não demoraram nem cinco minutos para surgirem no escritório. Ambos ocuparam as duas cadeiras vazias, ajeitando os ternos impecáveis como todo homem de negócio usaria.

— É o seguinte — Ele estalou a língua entre os dentes. — Descobri que um dos diretores está me roubando. Em apenas seis meses ele acarretou um saldo negativo de três milhões de reais para mim.

Rafael, passou a mão no cabelo preto, bagunçando-o levemente. Embora, o trio de melhores amigos aparentassem normalidade ante a sociedade, não passavam de criminosos sem rastros.

— Quem é o cara? — Quis saber ele, apreensivo.

— Júlio Ferrari. Faz tempo que ele está agindo pelas minhas costas.

Felipe arqueou uma das sobrancelhas, admirado com a ousadia do subordinado. Ele não foi o primeiro a tentar falir o bilionário, mas nenhum dos traidores escaparam ilesos para contar a história.

— Vai torná-lo um arquivo morto? — Questionou o perspicaz, fitando os olhos azuis sombrios nele.

— Eu pensei nisso..mas então, tive uma ideia melhor — Respondeu, se levantando da cadeira. — Vamos fazer uma visitinha à família primeiro. Quem sabe, também sejam cúmplices.

— Soube que ele tem uma filha mas ninguém da empresa se lembra de tê-la visto. — Comentou Felipe, pensativo. — Até parece ser o santo Graal perdido.

— O histórico dele comprova a existência da garota. Mas não diz a idade. — Afirmou Rafael, interessado.

— E se for uma criança? — Felipe semicerrou os olhos, apoiando o cotovelo esquerdo na altura da coxa enquanto observava seu amigo sacudir os ombros friamente.

— Crianças não estão na minha lista. — Retrucou Theo. — Cuidaremos disso depois. O dia de folga dele está prestes a se tornar um inferno.

Os dois rapazes se entreolharam. Seria a primeira vez que Theo mandaria exterminar uma família. Receosos, torciam para que realmente a operação não houvesse insurgentes — embora, o homem resoluto sempre cumpriu com sua palavra.

— Deixarei o vice no comando até o final do expediente — Avisou, consultando as horas no relógio de pulso. — Quero ver de perto o sofrimento e medo daquele miserável.

Theo ajeitou a roupa social, exibindo o sorriso tenebroso nos lábios. Gesticulou com a cabeça para os dois amigos se movimentarem para a saída. Pegou o celular dentro do bolso da calça e discou o número do segundo responsável pela administração da empresa.

— Miguel, estou de saída para resolver alguns negócios, enquanto isso, você fica no comando até eu voltar.

Sem esperar o outro responder, desligou o aparelho e se dirigiu para a porta. 

....

O veículo branco esportivo chamou atenção de alguns vizinhos. O bairro nobre era pouco movimentado, e naquele dia nublado não foi diferente. Mas sempre existem bisbilhoteiros se esgueirando nas janelas para acompanhar as novidades alheias. E ver o belo afortunado estacionar no asfalto da mansão da família Sanches, atraiu mais olhares.

— Bando de idiotas! — Murmurou ao ver algumas garotas surgirem nos portões de suas casas para tirar foto dele.

— Até que são bonitas, não acha? — Rafael piscou para o grupo, enquanto se aproximavam da mansão.

— Só servem para divertirem numa noite. — Retrucou Theo, apertando o interfone. — Não fazem o meu tipo.

— Hum...qual mulher faz o seu tipo? As insubmissas? — Provocou Felipe, soltando uma risadinha.

— Se concentrem no trabalho! — Esbravejou. — Trouxeram suas armas?

— Quando esquecemos de uma? — Bufou Rafael, acenando para as garotas do outro lado da rua. — Realmente é entediante ficar com garotas desse tipo. Mas por uma noite...

Uma voz feminina pelo interfone prendeu a atenção dos três homens.

— Mansão dos Sanches, posso ajudar?

— Preciso conversar com Júlio Ferrari, imediatamente. — Bufou, impaciente.

— Quem deseja falar com ele?

— Oras, sou eu quem deveria perguntar. Abra, logo a droga desse portão.

Meio segundo se fez de silêncio antes da voz feminina se alterar transparecendo indignação e raiva.

— Como é? Quem você pensa que é para chegar na minha casa e dizer isso? Eu não vou abrir a "droga" do portão enquanto não dizer seu nome.

Rafael e Felipe seguraram a risada, enquanto Theo sorriu sadicamente pela audácia da mulher. Sabia que a receptora naquela ocasião certamente seria a filha, por já ter conhecido a esposa do subordinado em um dos leilões da empresa. Sempre estranhou porque a garota nunca acompanhou os pais — logo havia imaginado que talvez não morassem juntos.

— Desculpe a minha grosseria, querida. — Disfarçou arrependimento. — Me chamo Theo Maldonaro e preciso conversar urgentemente com seu pai.

— Theo Maldonaro? Como você sabe que sou filha dele?

"Bingo", Pensou ele satisfeito.

— Tenho o currículo de todos os meus funcionários.

— Sei quem você é. Vou abrir o portão.

— Você é terrível. — Falou Rafael, averiguando a movimentação nas ruas que aos poucos dissipou.

— Aprenda comigo! — Articulou ele, adentrando na mansão quando os portões lhe foram abertos. Conferiu a pasta contendo as provas incriminatórias contra o acionista, ansioso para finalmente conhecer a misteriosa garota. Se fosse menor de idade a mandaria para o reformatório ou algo do tipo.

Na sala, Júlio o aguardava junto com a esposa. Theo sentia ódio; ele era muito cara-de-pau para usar a imagem da mulher para tentar fazê-lo amenizar a consequência. Achou-o bastante tolo, pois, decidira o destino da família.

— Que honra tê-lo em nossa humilde residência, senhor. Eu sou a Sílvia. — Pronunciou a mulher, sorrindo. Ele apenas assentiu, desviando sua atenção da loira alta para o marido.

— A filha de vocês está em casa? — Ele estranhou a ausência da jovem junto com os pais.

— Como você... — Júlio empalideceu, mas se recompôs sob o olhar confuso da esposa. — Ah, sim, ela deve ter atendido o interfone. VALENTINA!

Todos os pares de olhos se voltaram para uma presença que acabara de surgir na sala. Theo a olhou de cima para baixo, apreciando a beleza da morena. Quando os olhos azuis-esmeralda dela se encontraram com os seus, o rumo do plano arquitetado, fora substituído por outro.

— Filha, esse é Theo Maldonado. Você já deve conhecê-lo. — Disse Júlio, sentindo o nervosismo aflorar na pele. Desconfiava que o rapaz não queria apenas conversar, ainda mais acompanhado por dois brutamontes.

— Eu sei quem é você. — Valentina deu de ombros o encarando. — Minhas colegas na faculdade só faltam comer sua foto no papel. Grande bobagem!

— Valentina! — Repreendeu a mãe dela.

A figura medonha exibiu o esbelto sorriso, porém sádico.

— Gostei de você. — Declarou Theo, exibindo o sorriso galanteador. — Por que não se assenta junto com seus pais? Tenho uma proposta para todos vocês.

Rafael raciocinou imediatamente que Theo não mandaria assassinar a família, mas, se mantinha impassível ao lado da porta. Valentina bufou, obedecendo a ameaça camuflada de sugestão. Ocupou o lugar no meio sem entender a procedência de toda aquela cena.

— Serei direto ao ponto! — Sibilou Theo, tirando a pasta da maleta que carregava. — Pode me explicar por quê você estava agindo pelas minhas costas, Júlio?

Um silêncio estarrecedor se instaurou na sala. Mãe e filha encaravam o homem pálido como se o espírito tivesse saído do corpo.

— Que história é essa, Júlio? — Inquiriu a mulher vendo o rapaz espalhar as diversas fotos em cima da mesa.

— Sem histerias, senhora. — Rugiu Theo, direcionando a atenção para o acionista. — Você estava se encontrando com uma modelo de marca concorrente e desviou três milhões de reais destinados ao cofre. Sabe o prejuízo que causou?

— Pai! — A jovem olhou para as provas, horrorizada.

— Você estava me traindo, Júlio? — Rebateu a esposa, chorando.

— Não, eu não te traí, querida. — Ele sentiu seu mundo desabar. Por causa da ganância colocou em perigo a própria família. — Eu...aceitei uma proposta de outra empresa. Foi só isso!

— Eles te pediram para ter acesso ao novo projeto. — Theo deduziu e o viu assentir, cabisbaixo.

— Eu poderia acabar com você e sua família e vim pensando em fazer isso. — Falou, respirando fundo.

— Não, por favor, a culpa foi minha. — Júlio estava tão assustado quanto às mulheres.

— Você é um criminoso? — Sílvia arregalou os olhos. — Meu Deus! Você é da máfia.

— Não, sou apenas um homem de negócios. Meus negócios! — Respondeu, impaciente pelo desenrolar de uma discussão fraternal.

— Você deveria estar atrás das grades. — Vociferou Valentina, apontando o dedo em riste. — Quantas famílias já matou?

— Ah, que ilusão. — Sorriu ele, sarcástico. — Devo estar com tanto medo. E respondendo sua pergunta, nenhuma família morreu, vocês seriam os primeiros.

— Seu sobrenome faz jus à sua pessoa! Você colherá tudo o que está plantando.

— Valentina, já chega! — Interveio Júlio. — Por favor, não machuque minha filha e minha mulher.

— Deveria ter pensado nisso antes de me trair. — Disse Theo, recolhendo as fotos e guardando novamente dentro da pasta. — Tenho uma proposta, se rejeitarem estarão ferrados e se aceitaram poderão viver sem manchar seus currículos.

— Qual proposta? — Júlio demonstrava desespero.

Theo sorriu, fitando a jovem de semblante raivoso contra ele.

"Isso vai ser interessante”, Disse consigo mesmo.

— Como sabem, tenho vinte e quatro anos e nunca me preocupei com trivialidades. Vocês estão nas minhas mãos e posso muito bem levá-los á miséria.

— Aonde quer chegar? — Interrogou Sílvia, exasperada.

Theo cruzou os braços atrás das costas, fitando o rosto de cada um, até se demorar em Valentina.

— Proponho me casar com sua filha!

Valentina divagou lentamente, atordoada com aquela proposta ridícula. De fato, o homem à sua frente possuía uma beleza singular, mas ela não desejava se casar com alguém sem escrúpulos, insensível e que não professava a mesma fé.

— Eu não posso me casar com você! — Exclamou, quase inaudível. Contudo, ele arqueou uma das sobrancelhas, enquanto os olhos de todos fitavam a jovem lívida de espanto.

— Essa é a única saída que tenho à lhes oferecer. — Explicou ele. — Será apenas por dois anos. Depois disso, você poderá voltar para a casa de seus pais.

— Não! Quem em sã consciência faz esse tipo de contrato hoje em dia e...

— Ouça ele, Valentina. — Interveio a mãe, angustiada só de conjecturar tortura seguida de morte vinda daquele homem.

— Não, mãe. Somos absurdamente diferentes, além dele não professar a mesma fé que eu.

— Então é isso? — Pigarreou Theo, completamente desconfortável pelo rumo da conversa. — Você é crente?

— Sou cristã. — Pontuou — E isso é uma loucura. Pra quê o casamento se não tiver nenhuma racionalidade nisso?

— Filha, vamos morrer se não seguirmos esse acordo. — Ralhou o pai, embora ele a mulher não seguiam a crença dela, respeitavam tal decisão. Mas naquele instante o caso era completamente adverso quanto ao planejamento de vida dela.

Desde o atingimento da maturidade antes de completar a maioridade enfatizou, inabalável — só pretendia se casar após concluir os estudos. Agora, assistia em câmera lenta a ruína de seus projetos.

— Deixa-me resolver isso. — Falou Theo, impaciente, se aproximando de Valentina. — Tenho muito mais provas para encarcerar seu pai, sabia? Além do mais, ele não cometeu o crime somente contra mim. Países estão envolvidos.

— Como assim?

— Alguns países tem parceria comigo nos negócios, e se eles descobrirem a traição do seu pai, ficarão desconfiados dos demais acionistas e irão cortar os laços financeiros. Eu poderia m****r seu pai para a prisão e ele ser morto dentro do complexo mais perigoso do país e você e sua mãe estarão na miséria. É isso o que você quer?

Valentina deixou uma lágrima solitária rolar pela face, imaginado o sofrimento que causaria à família se não aceitasse o acordo. Pensou se seria o fim. Relembrou das orações que fizera à Deus. Sempre pediu alguém que seguisse a vontade dele. Agora, via-se num beco sem saída. Estava sendo obrigada a se casar com o bilionário mais visado pela mídia, com certeza um mulherengo. Valentina reprimiu o choro, com o coração apertado.

— Por que o casamento? — Ela ergueu os olhos úmidos de tristeza. — Existem outros métodos para quitar a dívida.

— Porque...você foi a única mulher que me fez pensar nisso. — Deu de ombros.

Estarrecida, ela levantou-se do sofá com as faces rubras de ira.

— Você acha só porquê é rico pode brincar com as pessoas conforme seu bel prazer? Todos possuem sentimentos e o direito de serem amadas também.

— Valentina. — A mãe tentou puxá-la de volta mas Theo lhe lançou um olhar fulminante a fazendo recolher a mão, trêmula.

Ele repuxou os lábios em um sorriso cruel, segurando o queixo dela e empregando certa pressão para causar um pouco de dor. Ela gemeu, afastando o contato dele com um tapa feroz nas costas da mão. Todos esbugalharam os olhos receosos pela reação do rapaz

— Sinta-se privilegiada, querida. — A expressão séria amedrontou-a. — Você pressupõe que talvez eu me importe com insetos. Tampouco me importo se você está irritada comigo. Querendo ou não, você é minha senão...

Ele olhou para os pais dela longamente enquanto aspirava o ar como se capturasse uma ideia inspiradora tentando encontrar a saída.

— Juro que se tocar nos meus pais eu não respondo por mim. — Sibilou ela, no fundo pedindo ajuda à Deus para fazê-lo mudar de pensamento.

Theo simplesmente riu sonoramente enfiando as mãos dentro do bolso da calça.

— A cada segundo me fascino ainda mais por você. Escolha, querida. Vai ser por bem ou por mal?

Para mostrar a veracidade das ameaças ele gesticulou para um de seus amigos exibir o revólver preso na cintura. A família arquejou de medo.

— Espere! Com...esse acordo...a dívida de meu pai vai estar paga?

— Não sou uma divindade que perdoa. Você será minha garantia de pagamento, entendeu?

— Mas...são três milhões de reais.

— Ele conseguiu me tirar essa proeza em seis meses. Estou sendo generoso em conceder-lhe dois anos.

Valentina encara os pais com dor no coração. Ambos estão cabisbaixos vertendo lágrimas. Como seu pai não pensou nas consequências daquele ato?

Derrotada, deixou os braços caírem ao lado do corpo ao assentar-se novamente no sofá, desnorteada pela procedência dos fatos.

— Quando vamos nos...casar? — Perguntou num fio de voz. Theo sorriu, satisfeito pela resposta da garota.

— Daqui uma semana.

Ela arregalou os olhos.

— Ah, não se preocupe, irei providenciar tudo. Deseja saber mais alguma coisa?

Valentina assentiu, lançando um olhar receoso para os demais da sala. Ele compreendeu que ela queria conversar em particular.

— Minha noiva quer conversar à sós. — Lançou um olhar ameaçador para os outros. Imediatamente, Rafael e Felipe decidiram esperá-lo do lado de fora junto com os pais da jovem.

O silêncio retornou, embora a respiração ofegante de Valentina fosse observada por ele. Nervosa, ela olhava para a direção oposta, sentindo-se no fundo do poço.

— Tenho algumas perguntas à fazer. — Pronunciou, trêmula. — Você vai me oferecer emprego? Porque eu estou cursando a faculdade de gestão financeira e meu pai estava pagando pra mim.

— Olha, só, você também gosta de números. — Sorriu, se assentando ao lado dela que logo, se distanciou. — Está com medo de mim?

— Até o próprio diabo estaria.

— Bem...deixarei esse quesito de lado. Agora, você não precisará se preocupar com dinheiro. Eu irei pagar sua faculdade e todas as suas despesas. Pode arranjar outro curso se quiser. Mais alguma coisa?

— Sim! — Valentina colocou uma mecha atrás da orelha, atraindo o fascínio dele sem perceber. — Eu não sei se você acredita em Deus, mas peço respeito quanto à minha pessoa enquanto estivemos nesse...falso matrimônio.

Theo franziu a testa, fingindo-se de desentendido.

— Sem palavras de baixo escalão perto de mim e nem me desrespeitar em todos os sentidos. — Esclareceu ela, o olhando com firmeza.

— Você não está em condições de exigir nada, gracinha. — Ele segurou um de seus braços. — Você não vai abrir o bico nem para suas amiguinhas, está entendendo? Você poderá continuar com a sua vida social normalmente, mas precisará me avisar quando for sair. E outra, fará o papel de esposa apaixonada e que ama seu marido.

— Detesto isso, mas não tenho opção. — Ela puxou o braço de volta e se levantou do sofá. — Quero que a cerimônia seja apenas no cartório.

— Por mim tanto faz!

Amanhã mesmo vamos no cartório para marcar a data. — Ele balançou os ombros. — Se arrume hoje à noite para jantarmos fora. — Enunciou, ajeitando a gravata. — A mídia precisa saber que estamos juntos. Te buscarei às dezenove horas em ponto.

— Seus pais sabem disso?

Ele apenas lhe lançou um olhar frio antes de sair pela porta sem responder.

Valentina torceu o nariz sem saber se o silêncio dele significava um sim ou não. Parecia estar vivendo num pesadelo. Um pesadelo decretado por dois anos.

....

Valentina se analisou no espelho pela última vez, desconfortável com a situação. Naquele momento não entendia se era a vontade de Deus ou as consequências de seu pai — se assim fosse, porque ela teria que pagar no lugar dele?

O barulho da maçaneta girando despertou-a dos devaneios. Olhou, se deparando com sua mãe. A mulher carregava a tristeza no olhar, as bolsas por baixo dos olhos inchados evidenciava a sessão de choro.

— Você está linda, filha. — Comentou ela, a voz embargada.

— Não chore, mãe. — Valentina apressou os passos para abraçá-la.

— Não sente raiva do seu pai?

— Para dizer a verdade eu queria esganá-lo. — Admitiu. — Mas...eu aprendi a perdoar. Quero dizer...vai demorar um pouquinho para eu voltar a encará-lo sem lembrar desta tarde.

— Admiro sua fé, querida. — Respondeu, isso aumentou as expectativas de Valentina. Desde sua conversão, sempre orou por seus pais e tinha fé que eles conheceriam a Deus, também.

Quando abriu a boca para dizer algo, o interfone tocou. Olhou para o relógio que marcava dezoito horas e cinqüenta minutos.

— Ele é adiantado. — Disse Sílvia. — Cuide-se, Valentina.

Ela assentiu, abraçando a mãe novamente e se retirando do quarto. Ao descer as escadas, engoliu em seco pelo vislumbre da figura sombria estática, conversando com seu pai. Teve que admitir. Ele era um homem muito bonito, infelizmente possuía a alma podre.

Theo se virou para encarar a jovem, e o sorriso malicioso surgiu no canto dos lábios. Sempre o maldito e belo sorriso!

— Senhorita Sanches, devo dizer...sua beleza preenche meu campo de visão. — Elogiou, percebendo a mesma arqueando a sobrancelha ao mesmo tempo em que um leve rubor espalhou pelas maçãs do rosto. Esse detalhe o agradou em demasiado nível egocêntrico.

— Obrigada. — Disse, se voltando para o pai que baixou os olhos no mesmo instante. Valentina notou o quanto ele estava constrangido. Apesar de não ser capaz de guardar qualquer rancor contra alguém, ela decidiu abraçá-lo. — Tchau, pai.

Júlio sorriu, retribuindo o carinho da filha. Sentiu-se aliviado por ver que ela não o odiava. Theo observou a cena, enquanto lapsos do passado invadiram sua memória.

— Pai, e se a gente prender cem balões na bicicleta ela poderá voar?

— Claro que não, filho. — O homem esguio de feições soturnas forçou risada. — Mas nós podemos imaginar.

— Eu posso ser um professor igual ao senhor?

— Claro, filho! — Ele olhou para o menino fixamente — Um dia, você poderá ser o que quiser.

— Theo! — Ele piscou os olhos, encarando a "noiva" de expressão confusa. — Você está bem?

Ele praguejou em pensamento por ter se distraído, logo, em público. Theo só se submergia nas lembranças quando estava sozinho. Repreendeu-se por ter sido tão descuidado.

— Estou sim, querida. — Respondeu, ironicamente. — Vamos! Trago sua filha às dez, sr. Júlio.

A limusine branca polida os esperava do lado de fora, Valentina meneou a cabeça, achando aquela extravagância desnecessária.

Um homem baixo uniformizado e de meia-idade, abriu a porta. Theo segurou em uma das mãos dela com elegância, e seu braço envolveu sua cintura.

— O que está fazendo? — Perguntou, constrangida por estarem tão próximos um do outro.

Theo havia desconfiado de dois carros estacionados há alguns metros de distância e aproveitou o ensejo para se mostrar as câmeras.

— Estão nos vigiando. — Sussurrou no ouvido dela. — Lembre-se de fazer o papel da esposa apaixonada.

Valentina arregalou os olhos, compreendendo a intenção dele. Podia-se ver suas pupilas dilatadas. Ela suou frio. Nunca havia beijado ninguém antes. Theo se divertiu com o nervosismo da moça. Passeou a mão da cintura para as costas até chegar nos cabelos longos e ondulados. Valentina sentiu um misto de arrepio e choque. Mas por impulso, abraçou-o em volta do pescoço.

— Você nunca beijou ninguém, não é? — Valentina ruborizou, se negando a respondê-lo.

Ele semicerrou os olhos, impaciente pelo silêncio dela. Juntou seus lábios num beijo feroz e rápido. Valentina se assustou pela agressividade, mas não perdeu tempo de entrar no veículo ao se separarem. Ainda trêmula, encarou o rapaz que se assentara ao seu lado. Ele a olhava de um modo que a assustava.

— Espero que no jantar você beije melhor. — Falou, aumentando o espanto dela.

"Meu Deus, que enrascada fui entrar", Pensou consigo mesma, virando o rosto para a janela ao lado. Seus pensamentos se tornaram turbilhões de medo e planos de fuga — talvez, impossíveis.

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo