Mundo de ficçãoIniciar sessão
Capítulo 1🧯🔥
Sofia Bragança O cheiro do café recém-passado preenchia a cozinha, misturado ao som suave do rádio tocando uma música antiga. Com uma mão, eu mexia o mingau de aveia no fogão; com a outra, equilibrava Bruna no meu quadril. A pequena resmungava baixinho, ainda sonolenta, esfregando os olhinhos no meu ombro. — Calma, meu amor, já tá quase pronto — murmurei, beijando sua testa quente e macia. Do outro lado da cozinha, perto da janela, minha mãe me observava da cadeira de rodas com aquele sorriso discreto que só ela sabia dar. Dona Rose pode ter perdido os movimentos das pernas, mas nunca perdeu a força. Aos 45 anos, ainda era uma mulher de presença marcante — olhos vivos, língua afiada e um carinho silencioso que me sustentava nos dias difíceis. — Esse homem devia te pagar em ouro, viu? — ela disse, com a voz rouca da manhã. — Você cuida da filha dele como se fosse sua. Soltei uma risada curta, ajeitando Bruna no colo. — Ele já faz muito deixando a senhora ficar aqui com a gente. E… ele é um bom pai. Só não sabe demonstrar. — Ah, minha filha… homem que vive pro trabalho esquece que tem coração. Mas você tá lembrando ele, mesmo que ele não perceba. Antes que eu pudesse responder, ouvi os passos firmes dele descendo a escada. Meu estômago apertou, como sempre acontecia. Era automático. Bruno tinha esse efeito em mim — uma mistura de respeito, nervosismo e… algo mais que eu ainda não sabia nomear. Ele entrou na cozinha do jeito de sempre: sério, calado, com o olhar cansado de quem carrega o mundo nas costas. Mas havia uma ternura escondida ali, nos olhos dele, que só aparecia quando olhava para a filha. Ou, às vezes, para mim. — Bom dia, capitão — disse com um sorriso leve, só pra provocar. Ele franziu o cenho, como sempre fazia. — Já falei que não precisa me chamar assim aqui. — E eu já falei que gosto de ver essa sua cara de bravo — brinquei, entregando Bruna em seus braços. Nossos dedos se tocaram por um segundo. Foi rápido, mas suficiente para aquele calor familiar subir pelo meu peito. Ele segurou a filha com cuidado, e Bruna se aninhou no peito dele como se estivesse em casa. E estava. — Ela acordou bem? — ele perguntou, a voz baixa, quase rouca. — Sim. Teve um pesadelo, mas logo se acalmou. Acho que ela sente sua falta quando você dorme no quartel. Ele assentiu, olhando para a filha com um carinho que raramente deixava transparecer. Fiquei ali, observando os dois, com o coração apertado por esse sentimento que crescia em silêncio entre nós — e que eu fingia não ver. Minha mãe pigarreou, quebrando o momento. — Bom dia, Bruno. Vai sair cedo hoje? — Sim, Dona Rose. Plantão duplo. Só volto amanhã. — Então trate de comer bem. Não quero saber que tá vivendo de café e pão seco. Ele sorriu de canto. E meu coração tropeçou. Era raro vê-lo sorrir. Quando acontecia, era como um raio de sol atravessando uma manhã nublada. Preparei o café, servi o mingau, empurrei a cadeira da minha mãe até a mesa e me sentei com eles. Por um instante, éramos uma família. Uma família torta, improvisada, mas cheia. O som da porta se fechando ainda ecoava na minha cabeça. Bruno tinha saído para mais um plantão e, com ele, levou aquele silêncio denso que só ele sabia deixar. Era como se a casa respirasse diferente quando ele estava — e suspirasse de saudade quando ia embora. Apoiei o quadril na pia e olhei para a xícara de café que ele deixou pela metade. Ele sempre fazia isso. Nunca terminava. Era como se deixasse um pedacinho dele ali, só pra eu lembrar que ele volta. E eu lembrava. Sempre. Bruna resmungou no cercadinho, e fui até ela. Um aninho de vida e já dona de um sorriso que derretia qualquer armadura — até a dele. Peguei-a no colo, e ela se aninhou em mim como se soubesse que eu era o colo mais seguro do mundo. Talvez eu fosse. Talvez ela fosse o meu também. — Ele foi? — ouvi a voz da minha mãe vindo da sala. — Foi, mãe — respondi, ajeitando Bruna no quadril e indo até ela. Dona Rose estava sentada na cadeira de rodas, perto da janela. O sol da manhã batia de leve no rosto dela, iluminando seus olhos atentos. Aos 45 anos, minha mãe era uma mulher cheia de vida, mesmo depois do acidente que a deixou sem os movimentos das pernas. Mas a cadeira de rodas era uma prisão que ela não podia mover sozinha. Eu era as pernas dela agora — e ela, meu alicerce. — Esse homem vive fugindo de si mesmo — disse ela, com aquele tom que misturava sabedoria e provocação. — Ele tem os motivos dele — murmurei, sentando ao lado dela com Bruna no colo. — E você tem os seus pra continuar calada? Suspirei. A pergunta me atravessou como uma flecha. Eu sabia que ela não falava por mal. Só queria me ver feliz. Mas como explicar que, às vezes, o silêncio era o único lugar onde eu me sentia segura? — Aqui eu tenho um lar, mãe. Tenho você, tenho a Bruna… tenho paz. Não quero estragar isso. — E o que você sente por ele? Vai esconder até quando? Apertei Bruna contra o peito. Ela já dormia, os cílios longos descansando sobre as bochechas rosadas. Tão pequena, tão inocente. E ainda assim, tão parte de mim. — Às vezes acho que ele sente o mesmo. Outras vezes… parece que sou só mais uma funcionária. — Funcionária ele não deixaria morar aqui com a mãe cadeirante. Funcionária ele não olharia como olha você. Fechei os olhos, lembrando da noite passada. Ele chegou tarde, exausto. Eu estava no sofá, lendo. Ele se sentou ao meu lado, em silêncio. Ficamos ali, lado a lado, até que ele encostou a cabeça no encosto e fechou os olhos. Por um segundo, pensei em tocar sua mão. Mas não tive coragem. — Talvez um dia — sussurrei. — Talvez — minha mãe respondeu, com aquele sorriso de quem já viveu o suficiente pra saber que o amor, quando é de verdade, sempre encontra um jeito. Olhei para Bruna. Para minha mãe. Para a casa que, mesmo emprestada, já parecia minha. E pensei que talvez o amor estivesse mesmo nos detalhes. No café deixado na mesa. No silêncio compartilhado. No cuidado com quem a gente ama, mesmo sem prometer nada. Mas será que isso bastava? Há nove meses… A porta se abriu antes mesmo que eu pudesse bater pela segunda vez. Ele estava lá — alto, sério, com o rosto fechado e os olhos fundos, como se não dormisse há dias. E talvez não tivesse mesmo. — Sofia Bragança? — perguntou, sem sorrir. — Sim, senhor. Pode me chamar só de Sofia. Ele assentiu, sem dizer mais nada, e me deu passagem. A casa estava silenciosa, mas não era um silêncio tranquilo. Era o tipo de silêncio que pesa. Que grita. Que conta histórias sem precisar de palavras. — A bebê tá dormindo. O nome dela é Bruna. Tem três meses. A mãe… foi embora ontem. Ele disse aquilo como quem entrega um relatório. Frio. Rápido. Mas eu vi. Vi o tremor nos dedos quando ele passou a mão pelos cabelos. Vi o cansaço nos ombros. Vi a dor que tentava esconder atrás da postura rígida. — Sinto muito — murmurei, sem saber se era o certo a dizer. Ele me levou até o quarto da bebê. Era um espaço bonito, mas bagunçado. Fraldas fora do lugar, mamadeiras pela metade, uma manta caída no chão. Tudo dizia: “eu não sei o que estou fazendo”. — Sou capitão do Corpo de Bombeiros. Trabalho em regime de plantão. Preciso de alguém que fique com ela quando eu estiver fora. E… — ele hesitou — se precisar trazer alguém com você, pode trazer. — Minha mãe — falei, antes que ele perguntasse. — Ela é cadeirante. Não posso deixá-la sozinha. Ele assentiu de novo. Sem perguntas. Sem julgamentos. — Pode começar amanhã? — Posso começar agora. Foi assim. Sem aperto de mãos. Sem contrato assinado. Só dois estranhos tentando juntar os cacos de suas vidas. Ele, com o coração em ruínas. Eu, com a alma cansada. E uma bebê no meio, que precisava de colo, leite e amor. Naquela noite, quando ele saiu para o plantão, Bruna chorou por horas. Eu a embalei no colo, cantei baixinho e senti meu peito doer por ela. Por ele. Por mim. Eu não sabia, naquela hora, que aquele momento mudaria tudo. Que aquele homem fechado, ferido, se tornaria meu silêncio favorito. Que aquela bebê se tornaria minha luz. Que aquela casa, tão fria e vazia, um dia pareceria um lar. Mas ali, naquela noite, eu só sabia de uma coisa: eu não ia embora. Bruno Tavares 🔥🧯 O som da sirene ainda ecoava nos meus ouvidos quando entrei no vestiário. O cheiro de fumaça grudado na pele, o suor escorrendo pelas têmporas e a cabeça… a cabeça, essa não parava. Apaguei o incêndio, salvei uma vida, dei ordens, mantive a equipe segura. Fiz o que tinha que ser feito. Mas, mesmo assim, tudo parecia pouco. Como se eu estivesse sempre correndo atrás de algo que não sei se um dia vou alcançar. Sentei no banco de madeira, tirei as botas com um suspiro e encarei o armário aberto à minha frente. A foto da Bruna estava ali, presa com um ímã. Ela tinha uns seis meses quando tiramos aquela. Sofia a segurava no colo, e as duas sorriam como se o mundo fosse um lugar bom. Como se eu fizesse parte disso. Passei os dedos pela borda da foto, tentando ignorar o nó na garganta. Sofia. Ela chegou quando tudo estava desmoronando. Quando eu mal sabia como segurar minha filha sem sentir que ia quebrá-la. Quando a casa era só um amontoado de paredes frias e vazias. E, de repente, ela estava lá. Com aquele jeito calmo, aquela força silenciosa, aquele sorriso que ela tentava esconder quando eu entrava na cozinha. Ela nunca me cobrou nada. Nunca me perguntou sobre a mãe da Bruna. Nunca me olhou com pena. E talvez por isso eu tenha deixado ela ficar. Talvez por isso eu tenha deixado ela entrar. Mas agora… agora ela está em tudo. No cheiro do café que faz toda manhã. No jeito como canta pra Bruna dormir. No som da risada dela com a Dona Rose na varanda. No silêncio confortável que ela traz pra dentro de mim. E eu não sei o que fazer com isso. Porque eu sou um homem de regras. De controle. De limites. E amar alguém como a Sofia… é cruzar todos eles. Mas toda vez que saio de casa e deixo ela ali, com Bruna no colo e sua mãe sorrindo ao fundo, sinto que tô deixando mais do que minha filha. Tô deixando um pedaço de mim. E o pior de tudo é saber que, se eu não fizer nada, posso perder as duas. E eu não sei se sobreviveria a mais um abandono. A chave girou na fechadura com um clique seco. Era madrugada, e a casa estava mergulhada num silêncio que eu conhecia bem — aquele que só existe quando tudo está em paz. Ou quando tudo está prestes a desmoronar. Entrei devagar, tirando as botas no hall. O cheiro de lavanda me atingiu primeiro. Era o cheiro dela. Do sabonete que ela usava. Da presença que deixava em cada canto da casa. Sofia. Passei pela sala em silêncio, os olhos já acostumados à penumbra. Dona Rose dormia no sofá, coberta até o pescoço com a manta que a própria filha dobrava com tanto cuidado. A cadeira de rodas estava ao lado, travada. Ela não podia se mover sozinha. E, mesmo assim, nunca a ouvi reclamar. Subi as escadas devagar, desviando dos brinquedos de Bruna no corredor. Quando abri a porta do quarto, meu coração deu aquele salto idiota de sempre. Sofia estava ali, deitada de lado na poltrona de amamentação, com Bruna dormindo no colo. As duas respiravam no mesmo ritmo, como se fossem uma só. A cabeça de Sofia pendia levemente, os cabelos soltos caindo sobre o rosto. Ela devia ter adormecido tentando fazer a bebê dormir. Ou talvez tenha sido o contrário. Fiquei parado na porta por um tempo, só olhando. Era isso que me quebrava. Essa paz. Essa imagem. Essa mulher que entrou na minha vida quando tudo estava em ruínas e, sem pedir nada, começou a reconstruir o que eu nem sabia que ainda existia. Me aproximei devagar, tirei Bruna do colo dela com cuidado. A bebê resmungou, mas logo se aninhou no meu peito, reconhecendo meu cheiro. Sofia abriu os olhos, sonolenta, e me encarou por um segundo. — Você chegou… — murmurou, a voz rouca de sono. — Cheguei. Ela se espreguiçou devagar, tentando se levantar. — Pode deixar, eu coloco ela no berço — falei baixinho. Ela assentiu, mas ficou ali, observando. Quando voltei, ela ainda estava sentada, os olhos fixos em mim. — Como foi o plantão? — Pesado. Mas deu tudo certo. Silêncio. Ela se levantou, passou por mim e ajeitou a coberta de Bruna no berço. Depois, virou-se e sorriu. Aquele sorriso pequeno, contido, que ela sempre me dava quando queria dizer algo, mas não sabia como. — Fiz lasanha. Tá na geladeira. É só esquentar. — Obrigado. Ela assentiu e saiu do quarto, empurrando devagar a cadeira da mãe até o quarto delas. Fiquei ali, parado, olhando para a porta fechada, com a sensação de que tinha deixado passar mais uma chance. Mais uma noite em que eu poderia ter dito: “Fica. Senta aqui comigo. Me conta do seu dia. Me deixa cuidar de você também.” Mas eu não disse. Porque amar alguém como a Sofia exige coragem. E eu ainda estou aprendendo a ser corajoso fora do fogo.






