capítulo 2

Capítulo 2 🔥🧯

Sofia Bragança

Acordei com o som do despertador vibrando no celular. Ainda era cedo; o céu lá fora mal começava a clarear. Estiquei o braço, desliguei o alarme e fiquei alguns segundos deitada, ouvindo o silêncio da casa — aquele silêncio que só existe antes do mundo acordar.

Levantei devagar, tentando não fazer barulho. Minha mãe ainda dormia na cama ao lado, o rosto sereno, os cabelos soltos sobre o travesseiro. Ela parecia tão tranquila que decidi deixá-la descansar mais um pouco. Ela merecia.

Troquei de roupa e fiz meus alongamentos no canto do quarto. Nada demais — só o suficiente pra acordar o corpo e espantar o peso das costas. Depois fui direto para o banheiro, tomei um banho rápido, escovei os dentes e prendi o cabelo num coque alto.

Desci as escadas em silêncio, com os pés descalços, e fui direto para a cozinha. A casa ainda estava mergulhada na penumbra, mas eu já conhecia cada canto de cor. Acendi a luz da bancada e comecei a preparar o café.

Eu sei que isso não é minha função. Tecnicamente, estou aqui para cuidar da Bruna. Mas fazer o café da manhã é o mínimo que posso fazer para ajudar. Eles me acolheram. Me deram um teto, um espaço para minha mãe, uma chance de recomeçar. E, mais do que isso, me deram uma rotina. Um sentido.

Enquanto a água fervia, comecei a separar o pão, o queijo, as frutas. O cheiro do café começou a se espalhar pela cozinha, e eu sorri sozinha. Era engraçado como, em tão pouco tempo, aquele cheiro se tornara parte da minha vida. Parte de mim.

Ouvi um chorinho vindo do andar de cima. Bruna. Meu coração se aqueceu. Ela sempre acordava assim — como se estivesse chamando por mim antes mesmo de abrir os olhos.

Subi as escadas com passos leves, pronta para mais um dia. Um dia como tantos outros. Mas, no fundo, eu sabia: cada dia com eles era diferente. Cada dia era um passo a mais nessa estrada que eu não planejei seguir, mas que me deixava feliz.

Entrei no quarto de Bruna e lá estava ela — em pé dentro do berço, segurando nas grades com as mãozinhas gordinhas, me esperando. Assim que me viu, abriu um sorriso banguela e esticou os bracinhos na minha direção, como fazia todas as manhãs. Era sempre assim. Como se o dia só começasse de verdade quando eu a pegava no colo.

— Bom dia, minha florzinha — sussurrei, pegando-a com cuidado e apoiando seu corpinho acima do meu quadril.

Ela se aconchegou em mim, encostando a cabecinha no meu ombro, ainda meio sonolenta. Desci com ela até a cozinha, sentindo aquele calorzinho bom de bebê que só ela sabia me dar. Era como carregar um pedacinho de paz.

Enquanto preparava o mingau, Bruna ficou sentada no cadeirão, brincando com uma colher de silicone. Batia com ela na bandeja, rindo sozinha, como se fosse a coisa mais divertida do mundo. E talvez fosse mesmo. Crianças têm esse dom de achar alegria nas coisas mais simples.

Olhei para o relógio. Quase às sete da manhã.

O senhor Bruno ainda dormia. Tinha chegado muito tarde — quase duas da madrugada. Ouvi quando ele entrou: os passos pesados, o som da porta se fechando com cuidado. Não levantei. Fingi que dormia. Às vezes, é mais fácil assim. Fingir que não sinto o que sinto. Fingir que não espero por ele.

Mas a verdade é que espero. Sempre.

Enquanto mexia o mingau no fogo, pensei em como ele devia estar cansado. O trabalho no quartel não perdoa. E ele carrega tudo sozinho — o fardo, a culpa, a saudade. Nunca fala sobre isso, mas eu vejo. Vejo nos olhos dele. No jeito como segura a Bruna. No silêncio que deixa no ar.

Terminei o mingau, coloquei na tigelinha rosa com o nome dela escrito na lateral e comecei a soprar devagar, testando a temperatura. Bruna batia palminhas, impaciente, como se dissesse: “Anda logo, tia Sofia.”

Sorri.

Depois de alimentar Bruna e deixá-la brincando no tapete da sala, com seus brinquedos e ouvindo músicas infantis na TV, subi novamente as escadas. Era hora de cuidar da minha mãe.

Abri a porta do quarto com cuidado. Ela já estava acordada, olhando para o teto, os olhos perdidos em algum pensamento que eu não conseguia alcançar.

— Bom dia, mãe — falei baixinho, me aproximando da cama.

Ela virou o rosto e sorriu, mas era um sorriso cansado.

— Bom dia, minha flor. Já está tudo em movimento aí embaixo?

— Já. Bruna acordou animada hoje. E o café está quase pronto. Vamos tomar um banho?

Ela assentiu com um leve movimento de cabeça. Me abaixei para ajudá-la a se sentar na cama, com cuidado, como fazia todos os dias. Já conhecia cada gesto, cada apoio, cada pausa que ela precisava. Peguei a cadeira de rodas encostada no canto e a trouxe até a beira da cama. Com um pouco de esforço e muito carinho, ajudei-a a se transferir.

No banheiro, tirei sua camisola com delicadeza e liguei o chuveiro. A água morna começou a cair, e o vapor logo preencheu o ambiente. Lavei seus cabelos com calma, massageando o couro cabeludo como ela gostava. Ela fechou os olhos, em silêncio, até murmurar:

— Você acha que eu ainda posso voltar a andar?

Parei por um segundo, o coração apertando no peito. Enxaguei o sabão com cuidado antes de responder.

— Mãe...

— É sério, Sofia. Será que, se eu fizesse fisioterapia de verdade, com frequência... será que eu teria alguma chance?

— A senhora já faz o que pode. E tem melhorado muito. Mas... por que essa pergunta agora?

Ela ficou em silêncio por um instante, depois abriu os olhos e me encarou.

— Porque eu me sinto um estorvo. Um peso. Você já tem tanto nas costas, Sofia. Cuidar da Bruna, da casa, de mim... e ainda tem que lidar com esse homem que não sabe o que quer da vida.

— Mãe, não fala assim — interrompi, sentindo a garganta fechar. — A senhora não é um estorvo. Nunca foi. Se eu estou aqui, é porque quero. Porque amo vocês. Porque isso aqui é a minha vida agora.

Ela desviou o olhar, os olhos marejados.

— Eu só queria poder te ajudar mais. Ser menos dependente. Te ver livre para viver a sua vida.

Abracei-a ali mesmo, com a água ainda escorrendo, o cheiro do sabonete se misturando ao cheiro da saudade. Porque era isso que ela sentia: saudade de si mesma. Da mulher que andava, que trabalhava, que cuidava de mim. E agora, era eu quem cuidava dela.

— A gente pode procurar uma clínica, sim. Ver o que é possível. Mas, por favor, nunca mais diga que é um peso. A senhora é minha base. Meu chão. Se eu estou de pé, é porque a senhora me ensinou a não cair.

Ela chorou baixinho no meu ombro. E eu deixei. Porque, às vezes, o banho não é só para limpar o corpo. É para lavar a alma também.

Com minha mãe já pronta e cheirosa, empurrei sua cadeira até a porta lateral do quarto. Era por ali que conseguimos descer sem encarar a escada — uma adaptação improvisada, mas que funcionava. Levei-a com cuidado até a sala, onde o cheiro do café já se espalhava pela casa.

Assim que entramos, vi Bruno sentado à mesa, com um jornal aberto nas mãos. A luz da manhã batia de lado no rosto dele, destacando as olheiras fundas e a barba por fazer. Mesmo assim, havia algo de sereno naquela imagem. Quase familiar.

Aproximei minha mãe da mesa e fui direto para a cozinha, correndo para terminar de colocar tudo no lugar: pão, frutas, queijo, o café já passado, o mingau de Bruna ainda morno.

— Bom dia, senhor Bruno — disse, enquanto ajeitava os talheres.

Ele ergueu os olhos por cima do jornal, me lançando aquele olhar de canto que sempre me deixava sem saber onde pôr as mãos.

— Já falei que não precisa me chamar de “senhor”... Bom dia — respondeu, com aquela seriedade habitual.

— Bom dia, Bruno. Dormiu bem, filho? — perguntou minha mãe, com a voz suave.

Ele se virou para ela e assentiu, educado.

— Dormi muito bem, senhora Rose. Obrigado por perguntar.

— Aqui está o seu café da manhã reforçado, senhor Bruno — falei, colocando o prato à sua frente com um sorriso contido.

Ele murmurou um agradecimento, mas antes que pudesse tocar no garfo, um choro agudo cortou o ar.

Bruna.

Corri até a sala e a encontrei em pé no sofá, os bracinhos estendidos, o rostinho vermelho de choro. Ela queria colo. Queria mim.

— Ei, meu amor... já estou aqui — falei, pegando-a no colo e sentindo seu corpinho quente se aconchegar no meu.

Ela se acalmou quase instantaneamente, com a cabecinha encostada no meu ombro. Voltei com ela até a mesa e a acomodei no meu colo, ajeitando a cadeira para conseguir tomar café com ela ali, juntinhas.

Bruno Tavares🧯🔥

Acordei por volta das sete. O corpo ainda pesado do plantão da madrugada, mas a cabeça já estava em movimento. Hoje decidi tomar um café da manhã decente, reforçado, como há tempos não fazia.

Desci devagar e, assim que cheguei à sala, ouvi os sons suaves de Bruna brincando no cercadinho. Ela estava na outra sala, cercada pelos brinquedos coloridos que Sofia sempre organizava com tanto cuidado. A bebê ria sozinha, batendo um cubo de pelúcia contra o chão, como se o mundo fosse simples e leve.

O cheiro do café já preenchia a casa. Sofia tinha preparado tudo, como sempre. Deduzi que ela estava no andar de cima, provavelmente dando banho na mãe. Dona Rose não se locomove sozinha, e Sofia cuida dela com uma dedicação que me desconcerta. Ela faz tudo sem reclamar. Sem esperar nada em troca.

Sofia é tão esforçada. E é isso que admiro nela. Não só pela força, mas pela forma como transforma o cotidiano em cuidado. Como ela faz da rotina um gesto de afeto.

Sentei-me à mesa e fiquei ali, observando Bruna de longe, ouvindo o som da chaleira na cozinha, sentindo o peso das lembranças que, às vezes, insistem em voltar.

Camila.

A mãe da minha filha. A mulher que eu achei que seria minha parceira de vida. Foi embora nove meses atrás, depois que a peguei na cama com um cara que ela dizia ser “só amigo”. Ela não chorou. Não pediu desculpas. Só disse que eu era doente por trabalho. Que nunca dava a ela prazer suficiente. Que procurou fora porque precisava se sentir viva.

Eu não discuti. Só pedi que fosse embora. E ela foi.

Desde então, tudo mudou. A casa, a rotina, a forma como eu olho para mim mesmo. Mas o que mais mudou... foi o que Sofia trouxe.

Ela chegou sem prometer nada. Sem invadir. Sem exigir. E, aos poucos, foi ocupando espaços que eu nem sabia que estavam vazios. Com ela, a casa tem cheiro de lar. Bruna sorri mais. Dona Rose é mais animada. E eu comecei a sentir coisas que não sei nomear.

Sofia mudou algo dentro de mim. Só não sei o que fazer com isso.

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