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“Erva venenosa
É pior do que cobra-cascavel
Seu veneno é cruel”
Erva venenosa - Rita Lee
A primeira prova do ano letivo seria na próxima semana, e seria de matemática.
"Graças a Deus, eu vou bem nessa matéria. Nem tenho com o que me preocupar."
A professora decidiu reservar os últimos 30 minutos da aula para revisão, voltada aos alunos com dificuldade ou interesse em aprender a matéria. Os demais foram liberados, para não atrapalharem quem precisava de ajuda.
Aquela aula era especialmente importante para minha amiga Milena, que tinha bastante dificuldade em matemática. Então, David optou por ficar com ela na sala, pronto para oferecer auxílio e, de quebra, garantir que poderiam ir juntos pegar o ônibus quando a aula terminasse.
Quanto a mim, resolvi pegar minhas coisas e dar uma olhada nos materiais e nas pendências de trabalhos, sentada em um banco no pátio da escola. Me perdi ali, concentrada, e nem percebi o tempo passar.
Gosto muito da minha própria companhia. Frequentemente, me encanto com os sons das árvores, com o barulho do vento calmo do verão. Estava ali, curtindo o silêncio e me dedicando à minha arte: comecei a pincelar algumas flores numa folha de ofício que havia trazido.
"Esse ano, se tudo der certo, começo meu curso de pintura em tela. Já faz tempo que quero, mas nunca consigo. Está nos meus planos tirar isso do papel."
Então, um barulho de risadas, uma bagunça dentro de uma das salas vazias, me despertou do momento de reflexão. Guardei minhas coisas e caminhei até lá, passos arrastados, mais por curiosidade do que por vontade.
Ao chegar, deparei-me com alguns colegas da turma que haviam saído da aula de revisão e outros alunos brincando de verdade ou consequência. O som da caixinha bluetooth ligada ao celular do Charles preenchia o espaço.
Minha vontade foi revirar os olhos. Charles, que deveria estar assistindo à aula de revisão — já que não sabe nada de matemática — estava ali, quase como líder daquela turminha.
Estava bem vestida naquela noite. Gosto de me arrumar. Usava uma blusa de voil preta com rendas, que deixava parte das minhas costas à mostra, e uma calça jeans preta. Junto aos sapatos, transmitia um ar de mistério. Combinado aos cabelos vermelhos, curtos e bagunçados, exalava uma rebeldia ousada.
Resolvi deixar meu material ao lado e encarei Charles com empáfia:
— Então, é a noite do jogo, Charles? — perguntei maliciosamente. — Também quero participar. Posso?
— É verdade ou consequência... Vai querer sair casada da roda essa noite, Luci? — Ele me olhou com aquele jeito pegador.
— Não sendo com você! — respondi, rindo da cara dele. — Por falar nisso, não era pra tu estar na turma assistindo aula com a Milena, não?
— Deixa minha diva fora dessa. Eu não tava nas pilhas de ficar em recuperação e, além disso, só ia atrapalhar a gata se ficasse por lá. — respondeu. E, pasmem, até tinha alguma coerência.
— Perfeito, então. Tô dentro! Mas já aviso: eu só falo verdades e tô fora da área de cobertura quando o assunto é pegação gratuita. Pode me incluir fora dessa.
— Ô, Jéssica! — Charles chamou.
Do outro lado da sala, estava a “quenga-chefe”. Revirei os olhos. Ela, cercada de colegas, recebendo toques e fazendo carinho, parecia dominar o espaço sem esforço. Como David e Milena suportavam aquela asinha, eu não sabia.
— Fala, meu herói! — respondeu ela, miando.
— Traz os caras pra jogar com a gente! — Charles falou de forma imperativa, e Jéssica adorou.
Ela chegou com roupa colada ao corpo: cropped, decote, piercing no umbigo, legging que moldava cada músculo da academia. Não havia como negar: era bonita. Mas, sinceramente, não valia um ovo podre.
— E tu veio pra ralé, raposinha? — provocou ela, lançando-me um olhar desafiador.
— Pois é. Ao que tudo indica, me rendi. — respondi, seca.
— Sempre com esse humor digno de raposa raivosa. Seja bem-vinda, amor! — disse, enquanto um dos caras a abraçava por trás e beijava seu ombro quase nu. — Acho que, quando tu arrumar alguém que te pegue de jeito, isso melhora.
— Que seja. Hoje não tô na pista pra negócio. — cortei, firme.
Charles interferiu:
— Tudo certo, ninguém precisa se pegar se não quiser.
— Bom, eu quero! — riu Jéssica. — Tô louca pra pegar alguém hoje.
— Eu também tô na pista. — acrescentou Charles.
Não demorou para a garrafa me escolher.
— E aí, foi real aquela surra no primeiro dia de aula? — perguntou Tiago, um dos rapazes, com curiosidade maliciosa.
— Foi real e constrangedor. Não consigo entender como aquilo aconteceu. — respondi, ainda incomodada com a lembrança.
Algumas rodadas depois, Jéssica se empolgou e começou a fazer uma dancinha sensual, quase um pole dance improvisado. “Credo! Como ninguém vomita vendo isso?” pensei, revirando os olhos.
Quando menos percebi, uma loirinha estava no colo do Charles, rindo e se deixando levar pelo momento. Então a garrafa girou novamente, parando exatamente em mim.
O destino cruel me escolheu.
— Raposinha, David ou Douglas? Quem tu pega? — perguntou Jéssica, com aquele sorriso maroto que só ela sabia usar.
Fiquei congelada. Nunca me senti tão acuada. O ar parecia faltar, e todos os olhares estavam sobre mim, esperando a minha escolha.
Ambos eram lindos! Eu me preparei para pegar o primeiro que chegasse em mim — mas, de repente, senti um vento soprar no meu pescoço e meu coração praticamente parou. Um frio percorreu minha espinha; era como se o chão tivesse se aberto sob meus pés. Para mim, tudo indicava que aquilo havia sido armado pela vaca da Jéssica, e eu havia caído como um patinho.
Nem tinha percebido ninguém novo entrar na sala. Talvez estivesse absorta nas rodadas, nas ações de cada participante, no caos divertido do jogo. Mas, quando olhei para trás e o vi: Douglas. Meu mundo inteiro desmoronou.
Minhas pernas se transformaram em Maria-moles. Cada lembrança do primeiro dia de aula veio à tona, revisitando meu cérebro com força total. Fiquei em choque, quase sem conseguir respirar.
— Então… — Douglas se aproximou em câmera lenta — ...a gatinha me deixaria lisonjeado se aceitasse meu convite para levá-la pra casa hoje. Afinal, cheguei primeiro.
Quase senti nossos lábios se tocarem, mas ele deixou um espaço, e eu fiquei paralisada, sem conseguir pensar em mais nada. Precisava, porém, agir.
— Isso foi só uma brincadeira hipotética, Douglas! E você tem namorada, se contenha! — falei fria, tentando recobrar o controle, e então voltei meu olhar para Jéssica, que, a essa altura, já não estava mais ali. Ela se encontrava numa das salas, grudada no tal Tiago, que a beijava com volúpia.
— Pelo visto, seus amigos estão aproveitando a noite… — observei, vendo todos se enroscarem com pares aleatórios nos cantos da sala — então vai querer, pelo menos, a minha companhia para não ir embora sozinha? É perigoso!
— Perigosa é aquela tua namorada! Não quero problemas pra mim, meu queridão. Dá licença. — Falei bufando e saí pisando fundo, na esperança de que David e Milena ainda estivessem na aula. Para minha frustração, a sala estava vazia, escura e trancada. Extrapolamos o horário da noite.
— São quase 23 horas. Deixa eu te levar, gatinha. Melhor assim. Além do mais, não terminamos o lance de quando nos conhecemos e eu não gosto de assuntos pendentes. — Ele me encarou, fogo nos olhos.
Caminhei ao lado de Douglas, mas meu coração batia descompassado. Algo muito errado estava para acontecer, e eu não sabia se a melhor alternativa era fugir ou aceitar a companhia dele. De qualquer forma, não estava em paz.
— Ok, vamos deixar uma coisa clara: NÃO TEM NADA PENDENTE ENTRE NÓS, ENTENDEU?! — cuspi cada palavra entre dentes. — Você tem uma namorada e eu não sabia, agora sei. Respeita a tua guria e me deixa em paz.
Foi exatamente nesse instante que senti o gelo de uma parede contra minhas costas e, ao mesmo tempo, o corpo quente do Douglas me pressionando contra a superfície fria. A boca dele se aproximou da minha orelha e ele sussurrou:
— Raposinha, ninguém jamais fala comigo nesse tom. Já te disse: eu não tenho nada com a Priscila. Ela que não larga do meu pé e não aceita o fim do nosso relacionamento. Eu não a quero mais faz tempo. Ela chega fazendo barraco com as minas que eu tô afim. Ela me conhece... conhece o meu gosto. E esse teu jeito de raposinha com pimenta me deixa louco.
Ele se afastou, caminhando como se nada tivesse acontecido, mas meu corpo parecia ter esquecido disso. Os joelhos fraquejaram, e cada osso parecia virar geleia. Que loucura! Suas palavras ainda queimavam na minha pele, mesmo à distância.
Eu tremia. Vergonha, medo... e um desejo que me envergonhava ainda mais. “Eu quis que ele me beijasse. Só posso estar doente!”
Mas, ao mesmo tempo, a imagem de David invadiu minha mente. “Ele nunca forçaria nada. Ele sempre me olha como quem quer me proteger, não como quem quer me possuir. É diferente... com ele eu me sinto em paz, não em guerra comigo mesma.”
Esse contraste me deixava ainda mais confusa. Como podia, numa mesma noite, sentir repulsa, desejo e saudade por alguém que nem sabia o que eu estava passando?
Olhei para minhas mãos e para os materiais que carregavam, envergonhada por ter desejado aquele homem lindo, comprometido, que estava à minha frente, cheio de autoridade e pegada.
— Ai! — tropecei nos próprios pés. — Não podia ser menos degradante.
— Calma, linda! Eu estou aqui! Viu como minha companhia não é tão ruim assim? — disse ele, com um sorriso maroto, passando as mãos sobre meus ombros e me puxando para um abraço que me envolveu de maneira inesperada.
Senti o calor do corpo dele e, por um instante, meu coração disparou. Queria recuar, mas ao mesmo tempo havia algo reconfortante naquela proteção. Um conflito se instalou dentro de mim: medo, curiosidade, vergonha e um desejo que eu não podia admitir.
— É, tá... você tem razão. — Sorri por educação e continuamos caminhando.
Ele cumpriu o combinado e me levou para casa. Foi, de certa forma, um alívio sentir-me acompanhada tão tarde da noite. Ainda não consigo entender como me permiti perder tempo com aqueles dois patetas na sala. Mas aconteceu. E, por alguma ironia do destino, foi Douglas quem me trouxe para casa depois daquela confusão.
O tempo que passamos juntos acabou sendo até agradável. Ele me fez rir bastante, conversou comigo com naturalidade e, sem dúvida, me teria deixado em segurança... se não tivéssemos sido seguidos.







