Um mês depois.
— Ansiosa? — pergunta Manu e olho para ela.
— Ansiosa é pouco. Estou surtando! — rio e paro de arrumar as prateleiras.
Falta quase um mês para o vestibular. Só de pensar sinto minhas mãos suando e o coração disparado.
— Estou estudando feito louca para isso. Sinto que minha vida depende disso agora — digo.
— Preciso passar também amiga, acredito que se eu passar minha vida mudará, entende? — assinto com a cabeça.
Quero fazer faculdade de Veterinária, Manuela quer fazer Nutrição. Então não estou mentindo quando digo que preciso e quero passar nisso. Esse será o maior passo dado em toda minha vida.
— Pare de sonhar um pouco e volte a trabalhar — diz ela batendo em meu braço.
— Volte você, ainda não sei porquê está aqui e não no caixa — volto a arrumar as caixas de leite na prateleira.
— A voz da Mônica tá me irritando. Que mulher chata, viu... — apenas rio — Amiga, ficou sabendo?
— Não, o quê? — sinto meu estômago queimar e a ânsia voltar.
Ultimamente estava me sentindo mais enjoada que nunca. Além disso me sentia cansada e com dores de cabeça constantes, tanto que que tive de faltar ao emprego algumas vezes para fazer exames, pois a empresa me obrigou. Falei que talvez fosse começo de gripe, mas não deram ouvido. Enfim, perda de tempo.
— Mônica é corna. — Manuela solta a bomba e coloca o sorriso orgulho nos lábios.
— O quê? — arregalo os olhos, realmente chocada.
— Pois é, amiga! A empresa toda está sabendo. O vagabundo do Breno traiu ela com a promotora do outro mercado.
— Com aquela morena que estava vindo direto aqui?
— Ela mesmo. Fiquei chocada! Mas falta de aviso não foi né, amiga? Todo mundo avisou que Breno não prestava e não é surpresa Mônica ser corna. — Me assusto ao levantar a cabeça e ver Mônica parada atrás de Manuela com as mãos na cintura ouvindo tudo.
Manuela continua maldizendo sem parar, faço sinal com os olhos e até tento emitir algum som com a garganta para que ela se dê conta.
— Que foi menina, tá passando mal? — pergunta irritada e bato a mão em minha testa.
— Espero que a fofoca com meu nome tenha trazido muito entretenimento para ambas — diz Mônica e não sei onde meter a cara. Manuela agora encara a mulher — Agora espero que às duas voltem ao trabalho — ela fixa o olhar em Manu.
— Com prazer — diz minha amiga saindo e me deixando sozinha. Mônica me olha de cima a baixo.
— Quando quiser falar mal de alguém, vá a um lugar reservado da próxima vez, ok? — apenas concordo, ainda sem chão.
Ela sai e logo sinto meu celular vibrando.
Manuela:
Essa mulher é uma vaca!
Eu:
Você também, sua piranha safada.
Fala as merdas e me deixa sozinha!
Manuela:
Você sabe que te amo! Esqueci de perguntar, tá melhor?
Eu:
Estou. Ainda enjoada, mas a virose já está passando.
Manuela:
Que bom! Temos outro baile pra ir!
Eu:
Não sei se estou afim, Manu...
Manuela:
Não está afim ou não quer encontrar um
certo homem alto, musculoso e tatuado?
Eu:
Não estou realmente afim.
Bloqueio o celular e olho em direção aos caixas, e lá estava Manuela me olhando e sorrindo, se divertindo com a situação. Confesso que depois daquela noite pensei em Daniel apenas no dia seguinte, depois eu literalmente apaguei o que aconteceu conosco. Nós apenas transamos, foi legal para ambos, mas somos de mundos diferentes e não tinha a menor chance de eu virar marmita de traficante, nem que me pagassem para isso.
Terminei de arrumar a prateleira e fui até o estoque para fazer as anotações necessárias.
Pai:
Janta hoje?
Sorrio com a mensagem.
Eu:
Seria ótimo aquela macarronada que
o senhor sempre faz.
Pai:
Macarronada junto com nosso programa favorito.
Eu:
Perfeito!
***
As horas graças a Deus passaram rápidas, faltava menos de uma hora para eu ir para casa, tomar um banho e me jogar no sofá, me entregando inteiramente a preguiça.
— Ana, o chefe quer ver você, — diz o gerente, parando ao meu lado.
— Sabe do que se trata, Ricardo? — pergunto.
— Exame. Suponho ser isso
— Ótimo.
Meu chefe é Luiz, ele é amigo do meu pai desde da faculdade e foi graças a isso que consegui esse emprego. Vou em direção a sala do homem e bato antes de entrar.
— Me chamou? — vejo que ele está sentado e assim que me vê fica em pé rapidamente.
— Sim, entre — diz, então me dirijo até a cadeira e me sento.
Luiz fica me olhando sem dizer uma palavra.
— É sobre o exame? — pergunto, ele pigarreia e passa a mão na boca.
— Sim, é sobre o exame... — por algum motivo meu coração acelera.
— Tenho algo? Estou doente?
— Não, não é isso — diz apressado — Desculpe a pergunta Analu, mas você tem namorado? — ergo a sobrancelha.
— Não, mas o que isso tem a ver? — ele respira fundo.
— Bem que ele me disse... — o homem sussurra, mas eu ouço.
— Ele quem? — me olha com pena — Diga de uma vez, chefe. Estou ficando nervosa! — ele se levanta e pega um envelope branco.
— Não sei como dizer... Veja você mesma.
Olho para se rosto, sua pele que normalmente é escura, estava levemente pálida. Sinto meu coração fervendo de medo e ansiedade. Volto a atenção para o papel e quando abro quase infarto ali mesmo.
— O que isso significa? — pergunto ainda tentando entender.
Paciente: Ana Luiza da Silva Faria
Idade: 19 anos
Convênio: Particular 2017
Medico: —.
Data da coleta: 18/01/2018
Resultado: REAGENTE
Não reagente — Não grávida
Reagente — Grávida
***
— Você está grávida — olho para ele, incrédula.
— Impossível — nego balançando a cabeça freneticamente.
— Esse é o resultado. É quase certeza, mas você pode refazer o teste em sete dias.
— Eu, Ana Luiza, grávida? — rio, de nervoso — Isso é impossível!
— Você está gravida de um mês e alguns dias, minha jovem — sinto a raiva tomando conta de mim.
— CALA BOCA, CALA BOCA... Não fala isso, não quero ouvir! — sinto as lagrimas caírem.
— Vá para casa e converse com seu pai. Ele está esperando você — olho para Luiz, surpresa.
— Você contou para ele antes de contar para mim?
— Sabe que somos amigos, pensei que ele deveria saber — outro grito subiu, mas eu segurei. Encarei o homem a minha frente, sem me importar com as lágrimas que começavam a cair.
— Você não pensou que eu é que deveria contar? — falei como todo o desgosto que conseguir demostrar.
— Sinto muito! Sei que você é forte e que vencerá isso com seu pai e o pai da criança — o gosto amargo subiu na garganta e lembrei de Daniel.
Estou fodida. Completamente fodida!
Saio da sala e bato a porta. Naquele momento não me importei com ninguém e com mais nada, apenas passei no vestiário, peguei minhas coisas e cai fora do lugar.
Quero sumir.
***
O céu já escureceu e as luzes de casa estão acesas quando chego. Depois que sai do mercado, andei lentamente pelas ruas ainda sem acreditar e sem saber o que dizer ao meu pai, apesar de ter a certeza de que ela já estava ciente da novidade: eu estava grávida. Com apenas 19 anos e o vestibular se aproximando. Minha vida estava apenas começando, ser mãe não estava nos planos.
Sinto-me decepcionada comigo mesma. Quero me bater, mas a única coisa que sei fazer é chorar. Toda vez que penso não haver mais lágrimas para descer, elas brotam de algum lugar dentro de mim. Não sei o que é pior, estar grávida aos 19 anos ou o pai da criança ser um traficante.
Abro a porta de casa e me deparo com três grandes malas. Minhas malas de viagem. Minha mão trava na maçaneta e sinto minhas pernas fracas. A sombra do meu pai aparece vindo da cozinha e olho diretamente para ele.
— O que isso significa, pai? — ele cruza os braços.
— Suas coisas — diz ele com uma frieza que gela todo o meu corpo.
— Pai... O senhor está me mandando ir embora? — minha garganta queima.
— Sempre te avisei, Ana Luiza... sempre deixei bem claro para que não usasse drogas e nem engravidasse, porquê caso alguma dessas coisas acontecesse, você iria direto para rua! Eu te avisei!
— Pai, me perdoa! Eu não tenho onde ficar, pai! Por favor, me perdoa! — dou um passo para dentro de casa — Por favor, não faça isso!
— Você pensa que sustentarei você e essa criança? Você fez, você procurou com quem fazer e agora assuma sua responsabilidade, garota irresponsável! — as lágrimas caem sem parar, lavando meu rosto.
Não consigo falar, não consigo respirar e sinto como se meu coração estivesse sendo esmagado. Minhas pernas falham quando dou outro passo.
— Eu não tenho para aonde ir — falo baixo, sentindo o peso da humilhação.
— Tem, você tem sim. — Responde ele, dando um passo em minha direção — Procure o vagabundo que trepou com você!
— Me desculpa!
— Chega, Ana. Chega! Cansei das suas desculpas, cansei da sua cara! Saia! — Tremo mais ao ouvir suas palavras, e também ouço o barulho da chuva que começa a cair lá fora. Logo o cheiro de terra molhada invade meu nariz.
— A mamãe, ela... — sinto o tapa no meu rosto. Levo a mão à bochecha e olho para o homem.
— Você está proibida de tocar no nome dela! — ele grita enquanto aponta o dedo para mim — Se você não tivesse feito a porra da birra no carro, ela ainda estaria com o cinto! Ela não teria ido falar com você, ela estaria... — seria melhor levar uma facada no peito do que ouvir tudo aquilo — ... estaria viva, estaria aqui.
Minha cabeça doi, tudo doi, mas não chega perto da dor de ouvir aquelas palavras saindo da boca de meu pai.
— Então você me culpa? — seus olhos estão vermelhos, lacrimejando.
— Você não? — fico em silêncio — Pois deveria!
O estado de choque diante das acusações não me permite falar uma palavra sequer, até mesmo as lágrimas cessam.
— Vá embora! — Finaliza o homem, que já desconheço.
— Primeiro me culpa por algo que sabe que não é minha responsabilidade, e por fim vai me colocar para fora mesmo sabendo que não tenho para aonde ir, no estado em que estou, com a tempestade caindo lá fora...
— Eu não me importo! — ele se afasta e olha para minha mão — Deixe as chaves antes de ir.
Encaro o molho em minha mão, com o chaveiro que ele me deu com a foto de nossa família, eu sorrindo no meio dos dois. Retiro o objeto, encarando-o em seguida firmemente.
— Se eu sair por essa porta, nunca mais chamarei você de pai — começo — Você morrerá pra mim! — o homem me olha e então toca a corrente que dei para ele de aniversário no ano passado. Sua mão se fecha ao redor do acessório, e ele a puxa, arrebentando-a de vez.
— Você é que já morreu para mim! — Ele se vira e some pelo corredor.
As lágrimas voltam a cair com força, é impossível segurar. Caio no chão ainda segurando o chaveiro, e choro. Acabou, meu mundo acabou!
***
Estou sentada em frente à uma praça perto de casa. São 2h da manhã e estou sozinha com três malas pesadas. Já chorei demais, não tem mais lágrimas para sair. Me encolho e meu queixo b**e cada vez mais forte por conta do frio. A chuva aumenta e o vento também não ajuda, se eu continuar molhada com certeza ficarei gripada.
Respiro fundo, juntando força para ligar para Manuela.
— O que tu queres uma hora dessa, vagabunda? — ouço sua voz de sono.
— Manu, preciso de você... — minha voz está trêmula, pelo frio, mas principalmente por conta do nervosismo.
— Você está bem? Por que o barulho da chuva está assim tão forte? Onde você tá?
— Meu pai me expulsou de casa...
— O quê? — tenho certeza de que ela acordou seus pais com o grito que deu — Como assim? Por que?
— Depois explico — deito a cabeça no joelho — Posso ficar na sua casa por hoje? Por favor — ouço minha amiga levantando-se.
— Que pergunta idiota, é claro que pode... Onde você está?
— Na única praça perto de casa, lembra o caminho?
— Sim, lembro! Estou saindo agora, me espera aí.
— Ok
Desligo o aparelho e me encolho um pouco mais. Meu peito dói a cada segundo que minha mente lembra da fisionomia e palavras do meu pai, de sua voz de desdém ao falar que não se preocupa mais comigo, de seus olhos sobre mim com decepção, desgosto... o sentimento de quem não me conhecia mais.
E é isso, nem eu me conheço mais.
É estranho como, de uma hora para outra, seu mundo vira, mas o meu não apenas girou, ele capotou. E para bem longe, parece não parar de girar...
Manu não demora a chegar. Luan está no carro com ela e corre até mim, me abraçando e me fazendo chorar mais uma vez. Minha amiga também me abraça, tal qual uma mãe que aninha seu bebê em seus braços após uma queda, e me entrego.
***
Faz um tempinho que estou na cama de Manu, já troquei as roupas e me sinto um pouco melhor debaixo das cobertas. Ainda não falei nada sobre a gravidez e nem sei como contar isso. Quando cheguei, seus pais estavam realmente acordados e me deram o tempo que precisasse para se acalmar.
— Analu, podemos entrar? — Manu pergunta e do lado dela está sua mãe, que me mostra um sorriso penoso e compreensivo.
— Claro... — digo sentando-me. Tia Cida puxa uma cadeira e senta-se perto de mim, já Manu se posiciona logo à minha frente.
Olho rápido para o celular e noto que já passa das 5h horas da manhã.
— Olha, sei que talvez você não esteja pronta para falar sobre isso, mas estamos aqui para ouvir você — diz a mulher.
— Me desculpe por chegar assim do nada, eu não tinha para quem ligar — ela segura minhas mãos entre as suas.
— Está tudo bem, minha querida. Você fez bem em ligar para Manu.
— Porque o tio colocou você para fora de casa em plena madrugada e ainda no meio da chuva? Vocês nunca brigaram assim — Tia Cida solta minha mão e engulo o choro.
Respiro fundo e fecho os olhos.
— Ele descobriu que estou grávida — Manu arregala os olhos.
— Você o quê?
— Descobri hoje também. O exame que a empresa me pediu para fazer... era por isso que eu estava passando mal. — ela olha para a mãe e depois para mim — Eu não sei o que fazer! — Lágrimas e mais lágrimas caem.
— Calma... — diz Manu se aproximando — Daremos um jeito, ok? Estou aqui!
— Sim, estaremos aqui, menina — a mulher fala — Você ficará conosco o tempo que precisar. — Ela se levanta.
— Não, tia. Não precisa. Alugarei um lugar para mim, vou me virar — ela me olha com seriedade.
— Pelo amor de Deus, Ana Luiza! Você é jovem, não entende nada de gravidez e quer morar sozinha? De forma alguma! — diz — Você fica conosco, e ainda hoje falarei com João, tenho certeza de que ele aceitará também.
— Obrigada, tia! Nem sei como agradecer — sorrio com tristeza, e ela me abraça e beija minha cabeça.
— Agora você precisa falar com o pai da criança — diz tia Cida, e Manu me olha. — O quê? Você não fez isso sozinha, querida — finaliza.
— Não estou preparada... — desvio o olhar
— Tudo bem! No seu tempo... por agora, tente dormir — concordo e ela beija minha testa mais uma vez antes de sair.
— Não tente fugir do assunto, mocinha. Não comigo! — Manu me encara.
— Agora não, Manu. Não estou bem e a última coisa que quero pensar é em falar com aquele homem. — respiro fundo, frustrada — Perdi tudo! — ela se aproxima de mim, deitando-se ao meu lado.
— Tudo bem, venha descansar — descanso a cabeça em seu ombro e fecho os olhos — Vamos resolver tudo isso, amiga.
Sinto vontade de chorar novamente, mas estou cansada demais para me entregar as lágrimas. Só queria voltar no tempo...