Capítulo VI.

Clara Herrera.

Em algum momento, já teve a sensação de que, de uma hora para outra, sua vida deu uma volta de trezentos e sessenta graus, se virando completamente de ponta cabeça? E pior, já se sentiu como se não tivesse, sequer, o menor controle sobre os seus próprios pensamentos e sentimentos? Então, se sim, por favor, agora me conta aqui, como faz para isso passar? O que fazer para que essa sensação que já parece tão forte, não cresça tome proporções ainda maiores? São tantas, mas tantas perguntas, dúvidas que se passam na minha mente nesse momento, que tudo parece um caos, uma grande bagunça. E o pior, é que eu não sei nem dizer quando tudo se virou contra mim dessa maneira, não consigo separar e esclarecer em qual instante meus sentimentos se tornaram meus próprios inimigos, me deixando nessa grande confusão em que eu estou agora. 

Drama? Ok, pode até ser que seja um pouco. Exagero? Não nego que talvez até tenha um certo exagero sim. Mas me diga aqui, quem nesse mundo ficaria tranquila, permaneceria cem por cento na paz, ao perceber que está se sentindo atraída por uma de suas alunas? Isso mesmo! Após passar quase a noite toda acordada, praticamente entrando em colapso com meus próprios pensamentos, fui obrigada à tirar a, nada doce conclusão, de que Milena Bianco anda mexendo comigo e convenhamos, não é de uma maneira nada convencional e foge bastante da relação professora-aluno, que eu sempre tento manter dentro de sala. Não, eu nunca me senti atraída por nenhuma outra mulher em todos meus vinte e sete anos de vida. Nunca!  Mas não há outra explicação válida para isso que isso que eu estou sentindo, é estranha a forma como eu não consigo me desviar daquelas duas esmeraldas quando estamos frente a frente, como o seu sorriso me parece tão encantador, principalmente, quando é lançado à mim. Ou como eu acho adorável vê-la fazendo coisas simples do dia a dia, mesmo que na maioria das vezes, não seja nada de muito diferente do que seus colegas de classe estejam fazendo. Céus! Essa garota parece ter se aproximado tão de mansinho nesses últimos tempos, me fazendo agora, repensar todos os pequenos sinais que ela dá, durante esses dois anos em que nos conhecemos. 

Eu pude começar à compreender um pouco o que está se passando na minha cabeça, quando me peguei encarando Milena no hospital essa tarde. Estranho, não? Sim! E não, porque na verdade, se for parar para pensar, quem é que não se deixaria encantar com aquela criatura loira, dona daquele sorriso cativante e jeito extremamente adorável, vestida com aquela roupa de hospital e olhando daquele jeitinho que parece que só ela consegue? Droga! E ela é tão linda, aqueles olhinhos cintilantes e tão expressivos não saíram da minha mente essa noite e estão pairando em meus pensamentos até agora. 

Eu nunca tive amarras nem nada do tipo, quando o assunto é a minha sexualidade, mas também, nunca havia parado para pensar, nem para reparar, em que lado da moeda eu realmente me identifico. Bom, meus pais criaram à mim e minha irmã de um único modo, dentro dos costumes tradicionais e eu sempre me identifiquei e me entendi, como heterossexual, tanto que, antes dos meus dezoito anos, sem ao menos pensar duas vezes, quando conheci Juan Carlos, engatamos um relacionamento sério e dois anos depois nos casamos. Só daí, juntando namoro e casamento, já se foram dez anos. Então, é isso que estou dizendo, quando falo que, por toda minha vida, não tive muito o que ter pensamentos contrários a um relacionamento hétero, já que foi o único tipo de relação que eu tive até hoje. 

Mas agora, não sei explicar, tudo anda tão estranho, eu não sei definir, mas ao fechar meus olhos, posso sentir meus pensamentos se chocando dentro da minha mente. É só que, eu pareço ter começado à sentir tudo tão de repente. Após mais de dois anos dando aula para ela, será por que só agora, comecei a prestar atenção em Milena? Por que justo agora, eu tenho sentido aqui dentro, como se essa garota tivesse uma espécie de imã, que me atrai assim? O pior é que, eu estou tão confusa, que não consigo nem colocar as dúvidas em ordem e tudo parece ficar girando desordenadamente dentro dessa minha cabeça que agora se encontra tão tumultuada.

Suspiro impaciente após ouvir meu despertador tocar pela terceira vez. Passo o dedo pela tela do celular e o silêncio volta a reinar no quarto, fazendo com que eu feche meus olhos novamente. Poderia ter dispensado essa barulheira toda, já que passei grande parte da noite rolando na cama em uma guerra com meus próprios pensamentos. Me levanto e sigo direto para o banheiro, já me despindo de minhas roupas, pronta para um banho que agora, é a única coisa capaz de tirar esse meu sono que resolveu aparecer na hora errada.

Passo pelo quarto de Heitor e vejo que o mesmo ainda dorme tranquilamente. Sigo para a cozinha, onde começo a preparar o café da manhã e logo eu estou andando pela casa com uma caneca fumegante de café preto. Bem forte. Daquele jeito que faz a alma voltar pro corpo facilmente e coloca, nem que seja por hora, os pensamentos no lugar. Novamente no quarto de Heitor, coloco a xícara no móvel ao lado de sua cama e me abaixo, tocando os cabelos do pequeno. 

   — Ei, meu amor! Acorda!  — falo baixinho e o menino apenas se mexe na cama. — Sem preguiça, Heitor, vamos, acorda!

Com o rostinho ainda amassado pelo sono da noite, ele se senta na cama, coçando os olhos, enquanto olha para um canto qualquer do cômodo. A mesma mania que eu tenho quando acabo de acordar. Deixo um beijo em seu seus cabelos e em seguida, quando ele acaba de despertar por completo, o ajudo a se trocar. Com meu filho bem agasalhado e quentinho, pego minha xícara com uma das mãos e com a outra, seguro a mão de Heitor, seguindo com o pequeno rumo à cozinha. Sirvo o garoto que, a esse passo já parece uma máquina cheia de energia e bem falante. Queria eu acordar com essa energia! 

(. . .)

   — Acho que já está na hora de eu voltar para Nova York. — Jéssica fala, tendo seu olhar perdido em um canto qualquer da cozinha, enquanto almoçamos. — Já faz mais de duas semanas que eu estou aqui, numa falha esperança de Vicky me procurar... e nada, ate agora. 

   — Amiga, vocês precisam conversar e se resolver, deixar tudo claro, independente se vão voltar ou não. Durante essas duas semanas que você está aqui, só te vejo com essa carinha triste, deprimida...

   — Eu posso ficar só até o fim do mês, por aqui? — a situação é bem séria, mas a cara de cachorro sem dono da minha amiga chega a ser cômica. — Eu ainda tenho que pensar no que falar com ela, no que fazer caso nossa separação seja séria... quer dizer, eu não quero nem pensar nessa possibilidade, eu amo demais aquela mulher e só de cogitar esse pensamento, eu fico a um fio de enlouquecer.  

— Claro Jess, contando que você me prometa que, depois que resolver essa situação, você nunca mais vai fazer uma merda dessas de novo. — falo séria e ela concorda. — De verdade, eu sou sua amiga, mas passar pano para traição, isso eu não faço. Você errou e feio, eu sei que foi apenas uma vez e você se arrepende, mas se a Vicky não te perdoar, ela está mais que no direito dela. 

   — Eu sei, eu sei... eu mesma não estou conseguindo me perdoar, não posso nem reclamar se a Victória não o fizer. Mas eu juro, prometo, dou a minha palavra que foi um erro que não vou repetir nunca mais. — se levanta, indo até a pia. — Agora, eu vou dar um pulinho na filial da empresa daqui. Preciso resolver algumas coisas.

    — Ok, e eu vou buscar Heitor na casa dos meus pais. Ah, aliás, ontem reclamaram que nesse tempo todo, você foi lá só uma vez, disseram pra você ir lá de novo, tá bom? 

Arrumamos a pequena bagunça do almoço e depois, cada uma segue seu rumo. Jéssica é sócia e gerente de marketing de uma empresa que, com sua sede em Nova York, também abriu uma filial aqui, no Brasil, mais precisamente, em São Paulo. Então, por mais que eu tenha dito e repetido uma dezena de vezes para ela tirar esse tempo e pensar no que fez e no que fará daqui para frente, não adianta, essa criatura, à qual eu chamo de melhor amiga, parece já ter nascido trabalhando.

Após pegar Heitor com minha mãe, eu e meu menino passamos a tarde toda brincando no parque e por fim, passamos em uma lanchonete para comermos algo. Já na volta para casa, demos uma paradinha em um de seus locais preferidos.

   — Vovô! — assim que passamos pela porta da livraria, o pequeno pula no colo do avô, que sorri o abraçando.

   — Oi, meu garoto! — brinca com os cabelos negros de Heitor. — Como está? — o senta sobre sua mesa.

   — Eu tô bem! — sorri. — Você sabia que a tia Mi tá quebrada, vovô? E cheia de machucados e curativos... — conta, tendo a atenção de meu pai toda focada nele. 

 — Soube de seu acidente, mas suponho que agora ela já esteja melhor, não é? Vocês foram vê-la no hospital?

    — Sim! Eu não queria deixar ela lá quebrada e dodói, mas a mamãe não me ouve... — reclama em tom manhoso, cruzando os bracinhos. 

Heitor conta cada detalhe da nossa visita à Milena, já eu, me limito a apenas concordar, vez ou outra, quando o garoto me chama na conversa. Meus pensamentos voam longe, viajam em questão de poucos segundos. Céus, o que Milena Bianco tem de tão especial que consegue cativar à todos assim, tão rapidamente? Meu pai, meu filho, seus amigos que parecem gostar tanto dela e agora, de certa forma, eu, que tenho sentido tantas coisas diferentes ao estar próxima àquele ser extremamente carismático e ao olhar para aquele sorriso tão... amável. 

   — No mundo da Lua, minha filha? — meu pai me olha sorrindo e eu sinto meu rosto corar. 

   — Estava pensando em algumas coisas que tenho que fazer mais tarde. — disfarço a cara de boba com a qual fui pega. 

    — Ah, entendi... — me olha de soslaio, se virando. — Daqui a pouco vou fechar a livraria, me dá uma carona até em casa?

    — Claro, papai. 

Ficamos de conversa até dar o horário de fechar a livraria e depois, com pouco mais de dez minutos, dirijo até a casa de meus pais, onde preciso criar inúmeros argumentos para não entrar. Eu preciso colocar meus pensamentos em ordem e necessito também de um tempo sozinha. Tenho consciência de que posso estar fazendo um certo drama em cima desse assunto, mas perceber a chegada desses novos sentimentos, numa circunstância tão diferente da qual eu vivi até hoje, tem me deixado um pouco abalada e meio desnorteado. É isso, preciso pensar com calma e tentar entender o que eu, realmente, estou sentindo agora. Chegamos pouco antes de anoitecer, dou um banho em Heitor e deixo o mesmo com seus brinquedos na sala. Começo a adiantar o jantar, no momento em que Jéssica chega. 

   — Vejo Heitor brincando e me dá um saudade do meu Jheremy... meu Deus, eu não estou aguentando de saudades dos meus dois amores! — a loira suspira de maneira profunda, se sentando em uma das banquetas próximas ao balcão.

   — De coração, eu espero que dê tudo certo, torço muito pra vocês e sei que você não fará mais algo como essa besteira de cometeu. Você só precisa tomar juízo nessa sua cabecinha de vento... — digo e ela ri, concordando. — Kelly me disse que você vai no pub com ela hoje... mais juízo ainda, ok?

   — Eu só vou para distrair a mente. — se levanta, esticando seu corpo de forma preguiçosa. — Beber umas e curtir socialmente, prometo. Afinal de contas, até segunda ordem da minha mulher e do juiz, eu sou casada!

   — Isso mesmo, que bom que agora pensa assim. — a fito de olhos semicerrados. — Já eu, vou dormir bem agarradinha com meu pacotinho e ver se consigo descansar, noite passada eu não preguei o olho  — dou uma espiada em Heitor que, continua entretido com seus brinquedos. — Não esqueça a chave que eu te entreguei.

   — O que foi? Aconteceu alguma coisa? 

   — Não aconteceu nada, só algumas preocupações do dia a dia mesmo. — digo e minha amiga me lança um olhar desconfiado. — É sério, está tudo bem, eu só preciso de uma noite completa de descanso. — sorrio. 

— Eu estou de olho em você, senhorita Clara Herrera! — aponta para seus olhos e em seguida, para mim. — Vou me arrumar, beijinhos de luz e, mais uma vez, eu estou de olho em você! 

Minha amiga sai da cozinha e novamente eu me vejo sozinha com meus devaneios. Puta merda! Eu sou muito ruim em disfarçar qualquer coisa, ainda mais quando se trata de alguém que me conhece tão bem. Aliás, não comentei nada com Tinker ainda, porque, por agora, preciso me colocar em ordem comigo mesma, mas claro, quando eu conseguir descobrir e entender o que estou sentindo, ela terá que honrar seu local de melhor amiga e ouvir todas as minhas reclamações. 

Não demora para que eu termine de preparar o jantar e, antes que Jéssica saia, peço para que ela fique de olho em Heitor, enquanto eu tomo o meu banho. E depois, por fim, acabamos ficando apenas eu e meu pequeno que, pouco antes das nove, acaba pegando no sono ainda no sofá, enquanto assistíamos TV. O pego no colo, levando para o quarto.

    — Você está um pacotinho bem pesado, Heitor... — falo quando ele se aconchega, me abraçando pelo pescoço.

Deito Heitor em sua cama e por alguns segundos, como em todas as noites, fico admirando a cena do garoto dormindo. Sem dúvidas, essa criaturinha de cabelos negros e bochechas coradas é o ser que eu mais amo nesse mundo inteiro. Muitos amigos e conhecidos me dizem que mesmo ainda pequeno, Heitor tem muito da minha personalidade. E isso é inegável. Mas se tem uma coisa que o pequeno Heitor Herrera me ensina desde seu nascimento, é que tudo pode ser mais simples, mais leve, que podemos imaginar. Seu olhar inocente perante o mundo e seus acontecimentos, me mostra que nem tudo deve ser levado tão a sério e que o peso das coisas, nem sempre é como parece.

Suspiro e me pego sorrindo boba, sigo para meu quarto e vou direto para a cama. Logo estou, mais uma vez, perdida entre meus pensamentos. 

Quem me conhece, sabe que eu sempre gosto de estar no controle de tudo, principalmente, dos acontecimentos da minha própria vida. Mas agora, nessa avalanche de sentimentos novos, onde eu me sinto incapaz de controlar até meus pensamentos, o que fazer? Não foi da noite para o dia que eu percebi estar sentindo algo por Milena, eu demorei, mais ou menos, uma semana para conseguir clarear um pouco minha mente e perceber que, há algo por trás daquelas olhos que tem me balançado.

Por fim, quando passa um pouco das onze horas, como resultado da noite anterior mal dormida, eu acabo me entregando ao sono. Torcendo para que no outro dia, como num toque de mágica, tudo acorde mais claro e menos bagunçado aqui dentro de mim. 

(. . .) 

Mais três semanas se passam, mas a minha cabeça ainda continua tão confusa quanto antes. Ou posso dizer que agora, até pior. Milena voltou para o colégio essa semana, não tivemos muito contato ainda, apenas a vi em sala de aula, porém, preciso assumir que, mesmo de longe, há momentos em que eu me pego olhando seu sorriso, me perdendo ao reparar seu jeitinho, às vezes brincalhão, às vezes sério, concentrado. Essa garota parece ter tantos contrastes admiráveis. E mesmo ainda, sem entender, completamente, o que eu estou sentindo, apesar da confusão, do medo, a sensação que me preenche é de algo tão bom, tão leve.

Chegou a tão esperada semana do aniversário de Heitor. Hoje é quarta-feira e sinto que, à qualquer momento, eu vou pirar, surtar, dar uma pane ou algo do tipo. Está tudo tão corrido, apesar de minha mãe, Kelly e Jéssica estarem me ajudando bastante na organização de tudo o que eu preciso, ainda estão faltando algumas coisas da decoração para acertar o resto e entregar mais alguns convites. Aliás, eu deixei para entregar hoje o convite de Milena. Claro, de forma alguma, poderia sequer pensar em deixar de chamá-la para a festa. Ela e Heitor tem se dado tão bem. E assumo, estou sentindo um certo medinho de me aproximar, agora que as coisas mudaram um pouco, mas mesmo assim, vou fazê-lo ainda hoje, após o fim das aulas. 

Será que, além de Milena, devo convidar também os seus amigos? Sei que eles são muito unidos e estão sempre juntos. Quero também, que ela se sinta à vontade, apesar de já ter reparado que ela é bem extrovertida e consegue se sair bem nas conversas, mesmo estando com desconhecidos. Além do mais, a última coisa que eu quero é levantar especulações sobre Milena. Quer dizer, por um acaso por que eu estaria pensando isso? E bom, são alunos excelentes e sempre me trataram de maneira muito gentil dentro e fora do colégio. É, acho que vai ser uma boa. Está mais que decidido, vou conversar com ela mais tarde, antes que Heitor me cobre mais uma vez, e digo para que ela passe o recado ao restante do grupo.

Ainda faltam duas aulas para o intervalo e uma dessas duas aulas é na classe de Milena. Assim que entro na sala, vejo a loirinha saindo da cadeira de Henrique e voltando para o seu lugar. Após percorrer meu olhar por toda a sala, cumprimento os alunos e depois de algumas brincadeiras e descontrações, dou início à minha aula. Após terminar algumas explicações que ficaram pendentes da aula anterior e tirar as dúvidas, passo alguns exercícios e me sento em minha mesa.

A sensação de estar sendo observada faz com que eu levante meu olhar do texto que estou lendo em meu notebook. Olho ao redor e, segundos depois, paro em Milena. Claro, eu deveria imaginar que é ela quem estaria me encarando dessa maneira. Depois que parei para pensar no que está acontecendo, acabei por perceber que, não é de hoje que Milena me olha dessa maneira, como se quisesse me dizer algo. Ok, pode ser que eu já houvesse percebido um pouco, mas agora, mais que nunca, fico me perguntando o porquê. De certa forma, sei que já deveria ter me acostumado com a intensidade do olhar dessa garota, as suas orbes tão verdes e cintilantes parecem ter uma facilidade em prender meus olhos. Isso chega à me parecer assustador. E por mais que, eu sinta sensações inexplicavelmente estranhas quando essa situação acontece, sustento o olhar da maneira mais firme que consigo. Não porque eu quero, quer dizer, por isso também, pelo menos um pouco, mas principalmente porque eu não consigo desviar. É como se ali, naquelas duas exista algo que me deixa presa.

Antes que mais alguém na sala perceba algo, desvio meu olhar, mas antes, posso perceber um leve sorriso de canto se formar nos finos lábios de Milena. E ok, confesso, talvez nesse momento eu também tenha deixado escapar um sorriso. Aliás, acho que acabei sorrindo mais que deveria, já que, no mesmo segundo, vejo Alexia dar alguns tapinhas, nada disfarçados, no ombro bom da amiga. Meu Deus! O que você tem na cabeça, Clara Herrera?

Quando o professor da próxima aula aparece na porta, eu dou graças a Deus, me levanto e após me despedir da turma, pego minhas coisas e saio. Ainda próxima à porta, já fora do lado de fora da sala, respiro fundo por umas quatro vezes e me pergunto o porquê de eu estar sentindo o meu coração a ponto de sair pela boca.

Mais quatro aulas e o último sinal, finalmente, bate. Assim que termino de juntar meus materiais, deixo algumas coisas em meu armário, na sala dos professores e sigo para o estacionamento. Como na maioria das vezes, em dias anteriores, Milena está lá, próxima as árvores que ficam ao lado do portão de saída, se despedindo de seus amigos. Vou até o carro e procuro pelo convite que havia guardado no porta luvas quando saí hoje pela manhã. Ao encontrar e sair do carro, olho novamente para o local, e vejo que agora está apenas ela e Alexia, ambas já se encaminhando para o lado de fora do colégio.

   — Ei, Milena! — digo um pouco mais alto e a garota se vira imediatamente.

As duas param e Milena volta em minha direção e eu não sei se é apenas impressão minha, mas me parece que, todas as vezes que nos aproximamos, ela está ou fica bem nervosa. Tento não focar meu pensamento nisso, e espero que ela se aproxime.

   — Olá, professora Herrera. — sorri, acenando de forma gentil. 

   — Olá! — retribuo o sorriso, apertando meus próprios dedos, enquanto à o olho. — E então, como você está?

   — Ah, estou bem... — dá de ombros. — só ainda não me acostumei com isso aqui.  — aponta para o gesso, fazendo uma pequena careta. — E você? E Heitor? Estou com saudades dele... dos dois, na verdade.

   — Estão bem. Falam em você todos os dias, principalmente o pequeno... — conto. — bom, eu queria te entregar isso. — estendo a mão com o convite cheio de desenhos de super heróis. — Ele queria muito te entregar pessoalmente, mas como você ainda não voltou para a livraria, me encarregou dessa tarefa... aliás, uma agradável tarefa. — digo por fim, quase num sussurro. 

   — É... eu... — droga, Clara! Você e sua boca grande conseguiram deixar a garota visivelmente desconcertada! — Que legal, professora Herrera! — fala, agora, olhando para o papel. — Muito obrigada!

   — Espero que te ver lá. — suspiro, colocando as mãos no bolso do casaco, tentando não desviar meu olhar o seu e, principalmente, não dizer mais alguma besteira. — E estendo esse convite aos seus amigos; Alexia, Henrique, Anna, Valentina e Cecília. 

   — Sério? — reveza o olhar entre o papel e eu. 

   — Sim, esperamos todos vocês. 

   — Pode deixar, nós iremos. — será que é demais falar que o sorriso dessa garota é maravilhoso, ainda mais assim de pertinho? — Novamente, muito obrigada pelo convite.

Não digo nada, apenas sorrio e aceno. Quando estou prestes a me despedir, antes que me mexa, é Milena quem, dessa vez, me surpreende com um beijo na bochecha. Logo após o fazer, ela sorri e se vira. Eu me encosto no carro e fico olhando a mais nova se distanciar, agora já na companhia da amiga. 

E a certeza de que estou sentindo uma grande atração por Milena, se faz mais presente quando eu imagino, ao invés de meu rosto, os lábios de Milena Bianco tocando os meus.

Socorro! Socorro! Socorro!

(. . .)

   — Então Clara, não vai me falar o que está te deixando desse jeito? — Kelly me pergunta pela décima vez desde que chegou na minha casa. — E, principalmente, por que me chamou aqui com tanta urgência e agora está agindo dessa maneira?

   — De que maneira? — me faço de desentendida, recebendo um olhar fuzilante de minha irmã. — Tá bom, eu vou falar, Kelly. Só estou esperando a Jéss chegar, ok?

   — Ok. — suspira. — Vou colocar a mesa e morrer de curiosidade enquanto isso. 

Volto para a sala, onde Heitor assiste desenho na TV. Acabei de dar seu jantar e agora, eu e Kelly estamos à espera de Jéssica com o nosso cardápio da noite: comida japonesa. Bom, eu precisei organizar rapidamente e de improviso essa nossa noite de meninas, simplesmente porque preciso de ajuda, no fato de que não estou sabendo lidar com esse meu provável interesse em Milena. E sinto que, se eu não falar isso pra alguém agora mesmo, no caso minha irmã e minha melhor amiga, eu vou surtar, explodir ou fazer uma merda bem grande à qualquer momento.

   — Garotas e garoto, cheguei!  — ouço a voz de Jéssica na sala. — Heitor, amorzinho, ajuda a titia com isso aqui, por favor...

Minha vontade é rir quando Heitor aparece na cozinha, carregando algumas sacolas, enquanto faz uma sucessão de caretas. 

   — Explorando seu afilhado, Jéssica! Acha isso bonito? — falo e o pequeno ri, correndo para o colo da madrinha.

   — Eu quis mostrar que sou forte, mamãe. — recebe um carinho da loira, no momento em que abraça seu pescoço. — Oba! Chocolate! — se vira para mim, mostrando o doce que acabara de ganhar. — Posso comer agora, mamãe? 

— Pode sim. — sorrio. — Não está esquecendo de nada não?

— Ah, obrigada, tia Jéss! — deixa um beijo estralado na bochecha da mulher. 

Ela o coloca no chão e o garotinho corre para a sala novamente. Ajudo Jéssica a retirar as coisas da sacola e colocar sobre a mesa.

   — Bom, agora a Jéssica chegou... podemos saber logo o que está acontecendo, Clara? — Kelly pergunta, abrindo uma garrafa de cerveja.

   — Kelly, fica calma que eu já vou contar, ok? — pego a garrafa de sua mão, me encaminhando até a pia. 

Enquanto jantamos, ficamos conversando sobre os mais diversos assuntos. Heitor novamente teima em experimentar comida japonesa, mas o resultado não é muito diferente da primeira vez que ele o fez: uma série de caretas estranhamente fofas e engraçadas. Já se passa um pouco das nove quando terminamos de jantar e ao fim, mesmo com nossas conversas e risadas altas, o garotinho já se encontra aninhado no colo de Kelly que mexe, ora em seus cabelos, ora em suas orelhas, o fazendo lutar para manter os olhinhos abertos. Acaba dormindo em questão de poucos minutos.

Após pegar Heitor e levá-lo  para o seu quarto, volto e ajudo as duas à tirarem a mesa e juntas arrumamos a pequena bagunça que fizemos na cozinha. Tudo pronto, cada uma de nós pega duas cervejas e seguimos para a sala.

   — Tá, você não é de beber mais que duas cervejas em dia de semana... — Jéssica começa. — e essa já é a quinta. — conclui. — Pode começar a contar logo, disse que precisa de nossa ajuda e tá enrolando agora. O que foi?

   — Bom... — tomo mais um gole do líquido da garrafa. — eu estou... é... eu... — suspiro, me ajeitando no sofá. — Ai caramba, será que dá para as duas pararem de ficar me olhando desse jeito?

   — Fala logo, Clara! — as duas dizem, impacientes, ao mesmo tempo.

   — Ok, calma... — digo, levantando as mãos, em sinal de rejeição. — Eu vou falar, tá bom? — puxo o ar bem fundo, fechando os olhos por alguns segundos. — Só é meio complicado para mim.

   — Vai, á não ser que você tenha matado alguém e agora precise de ajuda para esconder o corpo, acho que não é tão difícil falar, não é? — Kelly se senta ao meu lado. — Aconteceu alguma coisa? É com Heitor? Papai? Mamãe? Seu trabalho?

   — Tem mais ou menos a ver com o meu trabalho... — suspiro mais uma vez.  — Quer dizer, tem totalmente à ver. — encaro as duas que me encaram de forma curiosa. — Eu... ai meu Deus... eu acho que estou me sentindo atraída por uma de minhas alunas.

O silêncio absoluto na sala é de, mais ou menos, uns dez segundos. Fico revezando o olhar entre Kelly e Jéssica, que me olham sem demonstrarem qualquer reação.

   — Caramba, gente! Falem alguma coisa, pelo amor de Deus! — me levanto, mas Kelly me puxa, fazendo com que eu me sente de novo.

   — Só isso? — Jéssica pergunta, parece não ter se surpreendido nenhum pouco com o que eu disse.

   — Como assim "só isso"? Eu estou me sentindo atraída por uma de minhas alunas, entendeu? — explico, gesticulando e novamente, minha amiga apenas me encara. — Jéssica, é uma garota! Está compreendendo? Quer dizer, quanto à isso até que não há problema, mas é uma garota nove anos mais nova que eu. Nove anos, gente! Uma garota bem mais nova... e pior, minha aluna. Céus, vocês vão ficar só me olhando mesmo?

   — Qual o alarme nisso, Clara? — Kelly segura a minha mão. — Calma, irmã... o mundo não está perdido não, respira. 

   — Deixa Kelly, deixa ela ter o gay panic dela. — minha amiga senta do meu lado também e eu deixo meu corpo afundar entre as duas no sofá. 

   — Certo... — respiro fundo, passando à encarar o nada. — eu não sei bem como aconteceu. A única coisa que eu sei é que foi aos poucos, entendem? E ao mesmo tempo, foi tão de repente, parece ter sido tão rápido... quando eu dei por mim, já estava sentindo coisas estranhas quando a Milena se aproximava, à olhava de um jeito diferente, sem ao menos perceber...

   — Espera! — minha irmã me interrompe, gesticulando com as mãos. — Essa Milena é a mesma que o Heitor vive falando? A que trabalha na livraria do papai?

   — Sim. — abaixo a cabeça, voltando meu olhar ao chão. — Muito nova, eu sei. Mas olha, ela já tem dezoito anos, ok? Eu juro que...

   — Não, não é isso. — se levanta. — Já à vi algumas vezes na livraria e bom, ela é uma graça, além de muito linda né, Clara?! 

   — Clarinha, eu nunca vi essa garota pessoalmente, mas está claro que ela está te deixando perdida, no mundo da Lua. — Jéssica começa. — E pela forma vejo que você e o Heitor falarem dela, ela parece ser mesmo uma ótima pessoa. Mas sabemos que, o que, realmente, te deixa um pouquinho ferrada, é o fato dela ser sua aluna.

   — É, eu sei disso... — um aperto no peito, me faz ficar chateada por um momento. — eu sei também que tem a tal da ética e que isso é errado, mas não tenho a mínima idéia do que fazer, entende? Faz um tempo que eu venho sentindo essas coisas, mas tudo se encaixou hoje, quando fui convidá-la para o aniversário do Heitor. Gente, eu acho que nunca senti tanta vontade de beijar alguém, como eu senti naquela hora... como eu tenho sentido nesses últimos dias, quando eu à vejo. — acho que acabo sorrindo, sem ao menos perceber. — Eu tenho percebido que, por mais que tudo ainda esteja meio confuso, eu não vou aguentar me segurar por muito tempo. Vocês me conhecem e sabem como sou, digamos, bem impulsiva, às vezes.

   — Bom, eu sei que a atração quando chega, vem como uma avalanche... é algo que não temos muito como controlar. — Kelly segura minhas mãos sobre suas pernas. — E na boa, irmã, eu acho que, se você acha ela uma pessoa legal, tem sentido todas essas coisas e está interessada nela, o que não pode, é ficar guardando, né? Pode ser que nem aconteça nada demais entre vocês, mas se ela já é maior, sabe dos próprios atos, se acontecer também, não é tão errado.

   — E além do mais, ninguém precisa saber. — Jéssica dá uma piscadinha, me fazendo rir. — Não custa nada tentar... tudo se resolve conversando e eu tenho certeza que, se você disser o que está sentindo, ela não vai sair espalhando por aí, já que sabe muito bem de todas as questões que envolvem. 

  — E eu tenho certeza que, se mexeu com você, é porque tem algo nela que valha a pena. — Kelly sorri. — E como a Jéss disse, você só vai saber se tentar, não é?

   — É, pode até ser. — sorrio para as duas, me afundando novamente no sofá. — Mas como eu vou tentar algo? Simplesmente chego nela e digo o que está acontecendo? Eu não tenho o mínimo jeito para isso e além do mais, só de olhar para ela, eu sinto meu rosto queimar e fico toda... toda estranha. 

   — Certo, você sabe algo sobre ela? Já andou sondando o espaço? — Kelly pergunta e eu apenas dou de ombros, pensando por alguns segundos. 

   — Eu sei que ela é lésbica, me lembro de um breve namoro que ela teve com uma garota, ex-aluna do colégio, e bom... pelo que parece, ela me olha de um jeito meio diferente, sabe? Como se tivesse um certo interesse em mim... — digo essa última parte em voz baixa.

   — Hum, Clara Herrera balançando corações no colégio e não contou pra gente?!? — Jéssica me dá alguns tapinhas, sorrindo de forma maliciosa. 

   — Na verdade eu não sei se é só impressão minha ou não... é só que, com um certo tempo dentro de sala, você já consegue sacar e diferenciar os olhares dos alunos, entende? E nesses dois anos e pouco que eu conheço Milena, algumas vezes eu já peguei ela me olhando de uma maneira meio, sei lá, estranha, por ser apenas minha aluna... pode ser só paranoia da minha cabeça? Sim, pode, mas... 

Adentramos a madrugada, procurando formas de resolver esse meu impasse e no fim, quase às duas da manhã, acabei chegando à conclusão de que eu vou deixar as coisas fluírem e não vou atropelar nada. Vai rolar, o que tiver de rolar. Porém, é preciso cuidado, eu não posso simplesmente arriscar meu emprego e minha carreira, assim, logo de cara, sem saber o que realmente eu quero. Ok, está visível pra mim que estou atraída por Milena. Mas será que, depois, se acaso essa atração der em algo a mais, eu terei forças e cabeça pra arcar com as consequências que isso pode me trazer?

(. . .)

   — Eu não deveria ter bebido aquela quantidade de cerveja ontem... — reclamo assim que o despertador toca. — que dor de cabeça dos infernos. Eu quero vomitar! 

Olho para o lado e vejo Kelly dormindo toda torta, em um sono bem pesado. Me sento na beira da cama e estico o corpo de forma preguiçosa, fechando os olhos, ao sentir a gostosa e relaxante sensação dos meus ossos estralando. Suspiro pesadamente ao me lembrar de um certo sonho que tive no meio da noite, pouco depois que consegui pegar no sono. Sonhei que beijava Milena e ok, talvez isso seja resultado do quanto eu pensei nesse assunto antes de dormir. E por mais que eu ainda ache um pouco absurda a idéia de estar interessada, não em uma garota, mas sim em uma aluna, devo admitir que depois desse sonho, muitos sentidos meus parecem ter acordado, conseguindo me deixar ainda mais confusa. 

Me levanto e começo a me arrumar para, daqui alguns minutos, iniciar mais um dia em minha rotina de trabalho. Depois de estar pronta, acordo Heitor e o arrumo também, logo tendo meu pequeno espoleta, correndo e falando pela casa. Na cozinha, encontro Jéssica preparando o café da manhã.

   — Bom dia! — cumprimento minha amiga com um beijo no rosto. — Acordou cedo e pelo visto, está melhor que eu. 

   — Não se engane, por trás desse sorrisinho aqui... — aponta para o próprio rosto, sorrindo de fraco. — há uma ressaca horrível, que está acabando com o meu humor todinho. — suspira, bebendo um bom gole de café. — Vou dar um pulo lá na empresa e depois vou comprar aquelas coisas que você me pediu. — olha para Heitor que está concentrado em seu copo de vitamina.

   — Ai, hoje vou ver os últimos detalhes com a decoradora também, apesar de que, com ela, já está quase tudo cem por cento fechado.  — digo, me sentando. — Meu Deus! Ainda bem que aniversário é só uma vez por ano. — rimos.

Tomamos café da manhã juntas e logo nos despedimos, eu e Heitor seguimos no percurso de sempre até sua escolinha e após me despedir do meu pequeno, sigo para o trabalho. Assim que chego no colégio, cumprimento alguns colegas e fico à espera do sinal bater.

Hoje, graças a Deus, tenho apenas três aulas e as três são no primeiro período da manhã, o que me permite sair do colégio, pouco antes dar dez. Agradeço por, assim, ter mais tempo de resolver algumas coisas que ainda faltam. E então, após duas aulas em um segundo ano e uma aula em um terceiro, o último sinal da manhã, enfim, bate.

Passo no supermercado e depois sigo para o estúdio da decoradora que está responsável pela decoração do aniversário de Heitor. Há muito tempo meu filho se encontra fascinado com o mundo dos super-heróis, então, já está tudo bem encaminhado e hoje, já quase chegando o esperado dia dos cinco aninhos do meu pequeno, só faltam alguns detalhes à acertar. 

Já em casa, guardo tudo que comprei e, alguns minutos depois, após me trocar, começo a preparar o almoço. Hoje Kelly irá buscar Heitor na escolinha e ele passará a tarde na casa de meus pais. O menino sabe sobre a festa, tanto que está pura euforia e só fala nisso nos últimos dias, mas eu quero que ele tenha o máximo de surpresa. Agradar meu garoto é o que eu mais quero e pelo o que eu mais me esforço todos os dias. 

Hoje não vi Milena, mas sei que ela voltará à trabalhar na livraria essa tarde mesmo. E Jéssica colocou na cabeça que quer conhecê-la, nem que seja de longe, como ela mesma disse. Agora eu pergunto, pra quê? Com certeza, para não perder a chance de pegar no meu pé depois. Mas mesmo assim, como tenho que resolver algumas coisas com meu pai durante a tarde, aceitei que minha amiga me acompanhe até a livraria. E ok, talvez, de antemão, eu já esteja um pouco nervosa. É uma sensação estranha, mas ao mesmo tempo, assumo, muito boa. 

Emanuelle Oliveira

Capítulo quentinho para vocês! Espero que gostem! <3

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