Mundo de ficçãoIniciar sessãoA luz cinzenta da manhã filtrava-se pelas cortinas pesadas, um pálido espectro de sol tentando romper a neblina que envolvia Ravenshore.
Sophia despertou com o som distante de passos no corredor e o estalar do fogo já aceso na lareira — alguém havia estado ali antes que ela abrisse os olhos. Por um momento, ficou imóvel, tentando lembrar se havia sonhado. O peso no peito, o frio na nuca, a sensação de ser observada… tudo parecia tão real. Ergueu-se lentamente, sentindo o lençol ainda frio, e notou algo que a fez prender a respiração: pequenas marcas de lama no chão de madeira, perto da porta. Alguém estivera ali. Ela se ajoelhou, tocando o vestígio quase seco. As marcas eram grandes, muito maiores que as de uma mulher — e terminavam abruptamente, como se o dono dos passos tivesse se desfeito no ar. Engoliu em seco. Antes que pudesse pensar mais, alguém bateu à porta. — Senhorita Halloway? — a voz da criada era gentil, mas tensa. — Lady Margaret pediu que descesse para o desjejum. Sophia respirou fundo, afastando os pensamentos. Talvez fosse só o cocheiro… ou alguém da casa. Talvez. Vestiu-se rapidamente: um vestido azul-acinzentado, simples, e prendeu os cabelos ruivos em um coque frouxo. O espelho devolveu-lhe um reflexo pálido — seus olhos verdes pareciam mais vívidos que nunca, mas havia neles algo de inquieto, como se parte da noite ainda vivesse dentro dela. O corredor estava silencioso quando saiu. As paredes eram forradas de tapeçarias antigas — cenas de caçadas, figuras medievais e castelos envoltos por tempestades. Cada quadro parecia observá-la ao passar. Quando desceu as escadas, o ar estava frio e cheirava a incenso e madeira queimada. Lady Margaret esperava à cabeceira da mesa do salão de refeições, impecavelmente vestida em tons de vinho e negro. O cabelo, já grisalho, estava preso num coque severo. À frente, o chá fumegava em uma porcelana fina. — Dormiu bem, minha querida? — perguntou com um sorriso contido. — Acho que sim… — respondeu Sophia, hesitante. — Ou, ao menos, tentei. — A mansão pode ser estranha nas primeiras noites. — A tia levou a xícara aos lábios. — Alguns dizem que Ravenshore sonha junto de quem dorme sob seu teto. Sophia forçou um sorriso. — Sonhos podem parecer bem reais, às vezes. — Sim… especialmente aqui. — O olhar de Margaret pousou sobre ela de um jeito que parecia atravessá-la. — Ouvi que você chamou por alguém durante a madrugada. Um nome masculino. Sophia se sobressaltou. — Eu… não me lembro de ter dito nada. — Deve ter sido o vento, então — disse a tia calmamente, voltando-se para o prato. — Ele costuma sussurrar nomes que não pertencem a este tempo. O silêncio que se seguiu foi denso. Sophia abaixou os olhos, mexendo o chá sem vontade. Sentia que Lady Margaret sabia de algo — algo que não dizia, talvez por piedade, talvez por medo. Depois do café, Sophia decidiu explorar a casa. A mansão era imensa, quase labiríntica, feita de corredores estreitos, portas trancadas e janelas altas cobertas por cortinas pesadas. O ar ali parecia preso, como se o tempo tivesse parado há séculos. Em alguns cômodos, a poeira se acumulava sobre móveis cobertos por lençóis; em outros, o brilho das velas parecia recente demais para uma casa tão antiga. Quando passou por uma galeria de retratos, parou diante de um em particular. O homem retratado tinha feições marcantes, olhos escuros e profundos, e um meio sorriso que a fez estremecer. A placa dourada abaixo dizia apenas: “Alaric Ravenshore, 1782.” O sangue gelou em suas veias. Aquele nome. Aquele olhar. Era o mesmo homem da estrada — ela tinha certeza. — Belo retrato, não acha? — disse uma voz atrás dela. Sophia se virou bruscamente. Era Lady Margaret. — Ele… é da família? — Foi. — A tia pousou uma mão leve sobre o quadro. — O último herdeiro legítimo de Ravenshore. Morreu há muito tempo… ou assim dizem. — Ou assim dizem? — repetiu Sophia, baixinho. Margaret sorriu com uma ironia quase triste. — Em Ravenshore, minha cara, poucas coisas morrem de verdade. E antes que Sophia pudesse perguntar mais, a mulher se afastou pelo corredor, deixando para trás apenas o som de seus passos lentos e o eco de algo que parecia uma advertência. --- À tarde, o nevoeiro cresceu. O jardim, visto da janela, parecia um mar de brumas, onde estátuas cobertas de musgo emergiam como fantasmas. Sophia tentou ler, mas as palavras não faziam sentido. A cada sombra que se movia, seu coração acelerava. Por fim, decidiu sair até o salão principal. A lareira estava acesa, e o fogo lançava reflexos dourados sobre o piso negro. Foi então que o sentiu — o mesmo arrepio da noite anterior. O ar pareceu se alterar, tornando-se mais denso, mais vivo. Ela se virou devagar. No limiar entre as chamas e as sombras, ele estava lá. O homem do retrato. O homem da estrada. Alaric. Vestia um sobretudo escuro, como antes, mas agora sem o capuz. A pele era pálida demais para o dia, e os olhos — profundos, insondáveis — pareciam observar não apenas o corpo dela, mas algo além, como se a enxergasse por dentro. — Eu… pensei que fosse um sonho — murmurou Sophia. — Talvez seja. — A voz dele soou quase um sussurro, rouco e suave, como veludo rasgado. — Ou talvez você ainda não tenha acordado. Ela deu um passo para trás, mas ele avançou, calmo, seguro, o olhar preso ao dela. — O que é você? — perguntou, tentando manter a voz firme. Um leve sorriso cruzou os lábios dele. — Algo que sua tia preferiu esquecer. Sophia sentiu o corpo estremecer. — Está… me seguindo? — Eu apenas estava aqui. — Ele inclinou levemente a cabeça. — Você é quem me viu. O silêncio se alongou. O fogo crepitava entre eles, e por um instante, a luz desenhou os contornos do rosto dele — belo, cruel e quase etéreo. Ela percebeu que não respirava. Ele se aproximou mais um passo. — Deveria ter ficado longe de Ravenshore — disse Alaric, a voz agora mais baixa. — Este lugar consome o que ama. — E por que está me dizendo isso? — sussurrou Sophia. Os olhos dele escureceram ainda mais, quase líquidos. — Porque ainda há tempo de fugir. E porque… — ele hesitou, como se lutasse contra a própria vontade — …eu não sei o que farei se você ficar. A confissão pairou no ar como um feitiço. Sophia sentiu o coração bater com força. Por um instante, ela esqueceu o medo — e o mundo pareceu girar em torno daquele olhar. Mas quando piscou, ele já não estava mais lá. Apenas o fogo tremulava, e o perfume leve de rosas queimadas preenchia o ar. Ela se sentou, trêmula, as mãos frias, sem saber se aquilo fora real. Mas ao baixar o olhar, viu sobre a mesa uma única pétala vermelha, fresca, intacta. E lá fora, na névoa que cercava Ravenshore, algo se movia com a graça do vento e o poder do pecado. --- Naquela noite, Lady Margaret escreveu uma carta com caligrafia firme: > “Ele voltou.” Dobrou o papel, lacrou com cera negra e o entregou ao criado. Enquanto isso, no andar de cima, Sophia adormecia lentamente, sonhando com olhos escuros e um toque que ainda não havia sentido — mas que parecia inevitável, como o destino.






