Mundo ficciónIniciar sesiónO som da porta fechando atrás de Sophia ecoou pela imensidão do saguão, abafando o uivo distante do vento. Um silêncio pesado caiu sobre ela, quebrado apenas pelo gotejar da água que escorria de seu casaco encharcado.
A mansão parecia respirar. As paredes úmidas exalavam o cheiro de pedra fria e cera derretida. No hall de entrada, o mármore negro refletia o brilho trêmulo das velas dispostas em castiçais altos, e as sombras se alongavam como dedos. Sophia apertou o xale contra o peito. O coração ainda batia acelerado. A lembrança daqueles olhos na névoa — escuros, inumanos — ainda queimava em sua mente. Foi então que ouviu passos. Do alto da escadaria, uma mulher surgiu. Alta, magra, envolta em um vestido preto de gola alta e mangas longas. Seu cabelo grisalho estava preso num coque impecável, e seus olhos, de um cinza quase prateado, tinham o mesmo brilho cortante do luar. — Sophia Halloway? — A voz era firme, fria, com um leve sotaque londrino que o tempo não apagara. — Sim, minha senhora. — Ela fez uma reverência trêmula. — A senhora deve ser minha tia… Lady Margaret. A mulher assentiu. — Sim. — Desceu os degraus com passos lentos, calculados. — Faz tantos anos… e ainda assim, o sangue não se engana. Você tem os olhos do seu pai. Sophia forçou um sorriso, mas a menção do pai lhe apertou o peito. — Venha. — Margaret fez um gesto para que a seguisse. — Está encharcada. Ninguém devia viajar à noite por Ravenshore. — Eu… não pretendia, mas o cocheiro disse que estávamos perto, e… — hesitou. — Algo aconteceu na estrada. A tia parou, virando-se lentamente. — Aconteceu? — Um homem — respondeu Sophia, engolindo em seco. — Alto, de sobretudo escuro. Os cavalos se assustaram… ele apareceu do nada. Por um instante, a expressão de Lady Margaret pareceu se alterar. Um lampejo rápido de inquietação atravessou seus olhos — e depois sumiu. — Imaginação, minha querida. — Sua voz soou calma demais. — A noite em Ravenshore engana os sentidos. Sophia quis protestar, mas o tom não deixava espaço. Seguiu-a até o salão principal, onde uma lareira crepitava, lançando luz avermelhada sobre móveis antigos. Os quadros nas paredes mostravam rostos de antepassados — todos com o mesmo olhar austero, sombras eternas nos olhos. — A casa é linda… — murmurou Sophia, mais para si mesma. — E solitária — respondeu Margaret, sentando-se numa poltrona diante do fogo. — Desde que seu pai partiu de Ravenshore, nunca mais houve risos nestas paredes. Sophia sentou-se à frente, tentando aquecer as mãos. — Ele falava muito pouco sobre o passado. — Melhor assim. — A tia tomou um gole de chá que a criada acabara de servir. — Há lembranças que não devem ser desenterradas. A resposta deixou o ar pesado. Sophia desviou o olhar e o pousou sobre um retrato pendurado acima da lareira — o de um homem jovem, de feições fortes e olhar escuro. Algo naquele rosto a fez estremecer. — Quem é ele? — perguntou. Margaret ergueu os olhos. — Um dos antigos donos da casa. Lorde Alaric Vane. O nome soou como um murmúrio, familiar, como se o vento o tivesse sussurrado na estrada horas antes. — Morreu há muito tempo? — — Há mais de um século — respondeu a tia, sem emoção. — E ainda assim, há quem jure ouvi-lo andar pelos corredores nas noites de lua nova. Um sorriso irônico surgiu nos lábios de Margaret, mas Sophia não conseguiu rir. O retrato parecia observá-la. — Suba e descanse. — A voz da tia interrompeu o silêncio. — Amanhã conversaremos com mais calma. Sophia assentiu e seguiu a criada até o andar de cima. O quarto que lhe fora preparado tinha cortinas pesadas, móveis de carvalho e um espelho antigo diante da cama. A criada a ajudou a trocar o vestido molhado e deixou uma vela acesa sobre o criado-mudo. — Boa noite, senhorita. — A mulher parecia ansiosa para sair. — E… mantenha as janelas fechadas. O vento aqui é traiçoeiro. Assim que ficou sozinha, Sophia caminhou até o espelho. Seu reflexo parecia pálido sob a luz amarela. Tocou a barra do vestido seco — e algo caiu de dentro do bolso. A pétala vermelha. Ela a segurou por um instante. Ainda fresca. A vela oscilou. Uma corrente de ar frio atravessou o quarto. Sophia virou-se depressa. Nada. Mas o silêncio… era denso demais. Deitou-se, tentando convencer a si mesma de que o medo era apenas exaustão. O som distante da chuva e o estalar da madeira da casa a embalaram num torpor inquieto. Até que acordou com o sussurro. Um som tão suave que parecia nascer dentro de sua mente. “Sophia…” Ela se ergueu, o coração acelerando. — Quem está aí? A vela tremeluzia, prestes a apagar. Caminhou até a porta e a abriu. O corredor estava escuro, mas lá embaixo, um brilho fraco — vindo da lareira quase apagada — iluminava o saguão. E havia alguém lá. Uma figura alta, imóvel diante do fogo. O sobretudo escuro. Os cabelos molhados. Sophia desceu um degrau, o chão rangendo sob seus pés. — O senhor… — Ele virou-se lentamente. Era o homem da estrada. A chama vacilou quando seus olhos se encontraram. Negros, intensos, e ainda assim… humanos demais para serem apenas escuridão. — Eu devia ter certeza de que chegou em segurança — disse ele. — O que faz aqui? — A voz dela era um sussurro. — Cumpro uma promessa antiga. — O tom era baixo, quase um rosnado contido. — E Ravenshore não é gentil com os que chegam sozinhos. Sophia tentou se afastar, mas o olhar dele a prendia. Não havia ameaça — apenas um magnetismo que a puxava como o fogo puxa a chama. — Como sabe meu nome? — — Porque já o ouvi antes. — Ele deu um passo à frente, e a distância entre eles pareceu sumir. — Há muito tempo. Ela recuou até sentir a parede fria nas costas. Ele estava perto o bastante para que ela sentisse o perfume — o mesmo da estrada, o mesmo cheiro de rosas esmagadas. O ar ficou denso. — O senhor não devia estar aqui — murmurou. Ele inclinou a cabeça, o olhar fixo nos lábios dela. — Não devia, não. — Um sorriso leve, quase triste. — Mas há séculos deixei de fazer o que devia. A vela no andar de cima se apagou. Sophia piscou — e ele não estava mais lá. Apenas o cheiro doce no ar, e o eco de uma presença que o tempo não podia apagar. Quando voltou para o quarto, encontrou a janela entreaberta, as cortinas agitadas pelo vento. E sobre o travesseiro, repousava uma rosa vermelha.






