1

O dia está congelante, com camadas espessas de neve cobrindo todo o solo de Castile, um dos principais complexos de Cerne, o reino dos humanos. 

Sinto fome, e nem me lembro da última vez que consegui comer. O inverno é especialmente severo para aqueles deste lado da muralha. É difícil sair para caçar, não apenas porque a maioria não tem roupas adequadas para o frio, mas também porque estamos cercados por idosos e crianças, que não conseguem ser rápidos o suficiente para voltar antes do toque de recolher. Os poucos que ainda têm forças para sair em busca de comida voltam com as mãos vazias.

Eu deveria estar a caminho dos portões, no entanto, aqui estou tentando acompanhar um casal de raposas brancas. Elas deslizam entre os arbustos, desaparecendo na bruma. Eu me arrasto atrás delas, com cuidado, sem fazer barulho. 

Ajeito o arco e flecha nas costas, sentindo o peso familiar. Miro no pescoço de uma delas e atiro, manchando a neve com sangue quente. A outra raposa foge assustada. Vou até a que derrubei; ela ainda respira com dificuldade. Tiro a adaga presa à coxa e, com um golpe rápido, acabo com seu sofrimento. Não me sinto bem matando os animais desse jeito, mas é o único jeito de sobreviver. Meu estômago ronca, pelo menos hoje teremos o que comer.

O frio começa a fazer meus dentes rangerem. Olho para o céu buscando a noção do tempo, se eu não estiver enganada, tenho cerca de trinta minutos antes que os portões se fechem e eu fique do lado de fora. Apresso os passos, quase correndo. As árvores secas, cobertas de pingos de gelo, passam por mim como borrões, e minhas botas, encharcadas, pesam a cada passada.

Há um motivo para todos obedecerem ao toque de recolher. Ninguém quer ser atacado por lobos, vampiros ou até mesmo duendes. Embora, honestamente, eu acredite que, se quisessem, eles poderiam atravessar nossos complexos e nos destruir antes que sequer percebêssemos. No entanto, fingimos que estamos seguros — até agora, pelo menos, nenhum incidente aconteceu.

Vejo os portões de ferro escuro quase se fechando. Meu peito arde com o esforço e o ar gelado que respiro.

— Espere! — grito para um dos guardas ao alcançar o portão.

Ele me lança um olhar carregado de ódio.

— Tinha que ser você. Todos os dias a mesma coisa, Mandy. Um dia ainda vai matar todos nós com essa sua irresponsabilidade — rosna, enquanto me puxa para dentro sem qualquer delicadeza, fazendo a raposa cair dos meus ombros.

— Na próxima, deixaremos você do lado de fora. Talvez assim aprenda a obedecer às regras — resmunga o guarda, empurrando a pesada tranca do portão.

Aceno com a cabeça, sentindo os olhos lacrimejarem pelo vento frio e pela humilhação. Engulo em seco, me forçando a levantar a raposa caída e seguir em frente. Antes que eu consiga dar dois passos, uma mão firme segura meu braço com força.

Viro o rosto e me deparo com Edmundo, outro dos guardas que preferia que ela estivesse morta ao invés de causar tantos problemas. Não os culpo, ultimamente tenho arriscado a segurança dos demais em busca de alimentos e ervas para as doenças que passou a espalhar rapidamente. 

Minha avó Sena, fazia o possível com as poucas coisas que eu conseguia para fazer porções e elixir de cura para aqueles em caso mais graves. Mesmo sabendo que meus atrasos geralmente são para salvar vidas, os guardas não entendiam.

Os dedos de Edmundo apertam ainda mais meu braço, e mordo o interior da bochecha para não reagir. Sei que se eu retrucar, só vou piorar a situação. Ao redor, algumas pessoas começam a se reunir, atraídas pelo pequeno tumulto.

E o odeio, com toda minha alma e coração.

— Solte-a, Edmundo — ouço uma voz firme e seca.

O guarda finalmente me larga, empurrando meu braço com desprezo. Sinto braços fortes me segurando antes que eu caia novamente, humilhada, no chão. Levanto o olhar e encontro-o.

— Não temos tempo para teatros — ele diz.

Seu rosto parecia esculpido em ângulos perfeitos, com maçãs do rosto salientes e uma pele clara que refletia a luz com suavidade. Os lábios, cheios e bem delineados, traziam um tom rosado que suavizava a dureza de seus traços. E aqueles olhos... azuis como o oceano, me encaravam com uma intensidade capaz de atravessar todas as camadas da minha pele.

Devo estar olhando para ele feito uma completa idiota. Me forço a recuperar a compostura.

— Senhor — Edmundo faz uma reverência. — Só estávamos tentando manter a ordem. Essa garota é um perigo para o complexo.

— Eu disse que não tenho tempo para teatros, Edmundo. — A voz do homem é cortante. — Vocês são tão incompetentes que não conseguem lidar com uma garotinha assustada como essa.

Apesar da aspereza em seu tom, seus olhos demonstravam algo totalmente diferente. Se mais alguém percebeu, ninguém comentou.

— Vá — ele ordena secamente.

Seguro a raposa contra o peito e sigo em passos rápidos, o peso dela e dos olhares nas minhas costas me esmagando.

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