O dia está congelante, com camadas espessas de neve cobrindo todo o solo de Castile, um dos principais complexos de Cerne, o reino dos humanos.
Sinto fome, e nem me lembro da última vez que consegui comer. O inverno é especialmente severo para aqueles deste lado da muralha. É difícil sair para caçar, não apenas porque a maioria não tem roupas adequadas para o frio, mas também porque estamos cercados por idosos e crianças, que não conseguem ser rápidos o suficiente para voltar antes do toque de recolher. Os poucos que ainda têm forças para sair em busca de comida voltam com as mãos vazias.
Eu deveria estar a caminho dos portões, no entanto, aqui estou tentando acompanhar um casal de raposas brancas. Elas deslizam entre os arbustos, desaparecendo na bruma. Eu me arrasto atrás delas, com cuidado, sem fazer barulho.
Ajeito o arco e flecha nas costas, sentindo o peso familiar. Miro no pescoço de uma delas e atiro, manchando a neve com sangue quente. A outra raposa foge assustada. Vou até a que derrubei; ela ainda respira com dificuldade. Tiro a adaga presa à coxa e, com um golpe rápido, acabo com seu sofrimento. Não me sinto bem matando os animais desse jeito, mas é o único jeito de sobreviver. Meu estômago ronca, pelo menos hoje teremos o que comer.
O frio começa a fazer meus dentes rangerem. Olho para o céu buscando a noção do tempo, se eu não estiver enganada, tenho cerca de trinta minutos antes que os portões se fechem e eu fique do lado de fora. Apresso os passos, quase correndo. As árvores secas, cobertas de pingos de gelo, passam por mim como borrões, e minhas botas, encharcadas, pesam a cada passada.
Há um motivo para todos obedecerem ao toque de recolher. Ninguém quer ser atacado por lobos, vampiros ou até mesmo duendes. Embora, honestamente, eu acredite que, se quisessem, eles poderiam atravessar nossos complexos e nos destruir antes que sequer percebêssemos. No entanto, fingimos que estamos seguros — até agora, pelo menos, nenhum incidente aconteceu.
Vejo os portões de ferro escuro quase se fechando. Meu peito arde com o esforço e o ar gelado que respiro.
— Espere! — grito para um dos guardas ao alcançar o portão.Ele me lança um olhar carregado de ódio.
— Tinha que ser você. Todos os dias a mesma coisa, Mandy. Um dia ainda vai matar todos nós com essa sua irresponsabilidade — rosna, enquanto me puxa para dentro sem qualquer delicadeza, fazendo a raposa cair dos meus ombros.— Na próxima, deixaremos você do lado de fora. Talvez assim aprenda a obedecer às regras — resmunga o guarda, empurrando a pesada tranca do portão.
Aceno com a cabeça, sentindo os olhos lacrimejarem pelo vento frio e pela humilhação. Engulo em seco, me forçando a levantar a raposa caída e seguir em frente. Antes que eu consiga dar dois passos, uma mão firme segura meu braço com força.
Viro o rosto e me deparo com Edmundo, outro dos guardas que preferia que ela estivesse morta ao invés de causar tantos problemas. Não os culpo, ultimamente tenho arriscado a segurança dos demais em busca de alimentos e ervas para as doenças que passou a espalhar rapidamente.
Minha avó Sena, fazia o possível com as poucas coisas que eu conseguia para fazer porções e elixir de cura para aqueles em caso mais graves. Mesmo sabendo que meus atrasos geralmente são para salvar vidas, os guardas não entendiam.
Os dedos de Edmundo apertam ainda mais meu braço, e mordo o interior da bochecha para não reagir. Sei que se eu retrucar, só vou piorar a situação. Ao redor, algumas pessoas começam a se reunir, atraídas pelo pequeno tumulto.
E o odeio, com toda minha alma e coração.
— Solte-a, Edmundo — ouço uma voz firme e seca.
O guarda finalmente me larga, empurrando meu braço com desprezo. Sinto braços fortes me segurando antes que eu caia novamente, humilhada, no chão. Levanto o olhar e encontro-o.
— Não temos tempo para teatros — ele diz.
Seu rosto parecia esculpido em ângulos perfeitos, com maçãs do rosto salientes e uma pele clara que refletia a luz com suavidade. Os lábios, cheios e bem delineados, traziam um tom rosado que suavizava a dureza de seus traços. E aqueles olhos... azuis como o oceano, me encaravam com uma intensidade capaz de atravessar todas as camadas da minha pele.
Devo estar olhando para ele feito uma completa idiota. Me forço a recuperar a compostura.— Senhor — Edmundo faz uma reverência. — Só estávamos tentando manter a ordem. Essa garota é um perigo para o complexo.
— Eu disse que não tenho tempo para teatros, Edmundo. — A voz do homem é cortante. — Vocês são tão incompetentes que não conseguem lidar com uma garotinha assustada como essa.
Apesar da aspereza em seu tom, seus olhos demonstravam algo totalmente diferente. Se mais alguém percebeu, ninguém comentou.
— Vá — ele ordena secamente.Seguro a raposa contra o peito e sigo em passos rápidos, o peso dela e dos olhares nas minhas costas me esmagando.
Sena me esperava na cabana com água fervendo em seu caldeirão de barro. De alguma forma ela sempre sabia quando eu voltaria com comida. Jogo a raposa branca na mesa de madeira tão velha que rangeu com o impacto.Não digo nada, apenas pego uma adaga maior para limpar a pele do animal, cortando com cuidado para que possamos utilizá-lo para fazer uma capa para Ana, nossa vizinha de apenas de cinco anos que enfrenta febre alta há pouco mais de uma semana. A carne da raposa não vai durar o tanto que eu gostaria, mas será suficiente para dividir para algumas pessoas próximas de nós. Infelizmente não consigo ajudar a todos, já faço o bastante arriscando minha miserável vida.— Lágrimas são um ótimo tempero para os alimentos, sabia? — minha avó quebra o silêncio.Só então percebo que estou chorando sobre a carne que corto. Passo a mão, suja de sangue, pelo rosto.— Eu sou um desastre — suspiro, caminhando até a bacia próxima para me limpar.— Vai tomar um banho, eu termino aqui — ela diz com
Estamos deitados no chão do celeiro abandonado. O cheiro de feno e poeira no ar não me incomoda, de alguma forma, até me sinto grata por momentos como este. Alex está ao meu lado, e sua proximidade faz o tempo parar, me fazendo esquecer de tudo lá fora.— Queria ficar assim com você para sempre — ele diz, a voz suave, mas cheia de um desejo que eu já conheço bem. Eu sei o que vem a seguir, e sinto o peso daquilo que não posso corresponder. Gosto dele, de maneiras que não saberia explicar, mas não o suficiente para transformar o que temos em algo mais sério.— Ei, não precisa ficar toda tensa. Eu não disse nada demais. — Ele tenta suavizar, mas meu corpo fica mais rigido.— Acho melhor irmos. Já está ficando muito tarde, e algum guarda pode aparecer por aqui. — Digo, tentando esconder o nervosismo, levantando e pegando minhas roupas, jogadas em algum canto do celeiro.Alex suspira ao meu lado, passando a mão em seus cabelos dourados, agora mais longos que o normal. Ele é uma pessoa mui
Uivos soavam como alarmes em toda parte, o cheiro de ferrugem e fumaça inundava meu nariz fazendo arder cada célula do meu corpo.Está muito escuro, não sei onde estou, mas posso ouvir passos pesados atrás de mim. Lobos, muitos deles saem da escuridão, suas pelagens densas brilhavam sobre o luar.Um homem se aproxima arrastando pelos cabelos uma jovem de cabelos dourados tão claros que são quase branco, seu rosto é redondo e sua pele brilha como porcelana. O homem puxa mais seus cabelos até que ela esteja de joelho olhando para ele, consigo enxergar através da névoa que começa se formar sua orelha pontuda. Uma elfa.Já tinha escutado histórias sobre elas, mas nunca cheguei a ver uma de verdade, até pensei que elas tinham sido extintas na última guerra. Os uivos ficam mais estridentes, levo as mãos nos ouvidos para amenizar o som.A nevoa fica mais densa, tenho que me esforçar para conseguir enxergar com clareza. O homem joga a elfa no chão e segura sua cabeça com coturnos pretos, el
As pessoas estavam reunidas na praça central; o lugar não passava de um círculo grande com estacas de madeira espalhadas de forma desorganizada. Elas pareciam felizes com a quantidade de alimentos que estavam recebendo, que era mais do que suficiente para o fim do inverno. Ninguém precisaria arriscar suas vidas atrás dos portões de ferro, graças ao príncipe Kain.Kain andava ao meu lado, chutando de vez em quando algumas pequenas montanhas de neve; não conversávamos desde que saímos da cabana. Ele parecia incomodado; para ser justa, ele parecia furioso. Eu podia estar imaginando coisas, mas tudo indicava que Alex era o motivo. Não sabia se era pertinente questionar um príncipe, mesmo depois de ele exigir que eu o chamasse pelo nome. Então, continuava quieta.— Mandy. Mandy. Mandy — Ana corria em minha direção, suas bochechas estavam vermelhas, e as mãozinhas seguravam uma maçã com tanta força que, mais um pouquinho, ela a cortaria ao meio.— O que você está fazendo fora da cama? — per
Não faço ideia para onde estou indo.Não entendo o motivo de continuar seguindo um completo desconhecido entre a floresta.Quebrei umas três regras que aprendemos quando criança para nossa segurança, não falar com estranhos, não aceitar nada deles e nunca deixá-los entrar em casa. Bom, essa última quem quebrou foi minha avó. Mesmo assim continuo seguindo um completo estranho sem questionar, minha cabeça está explodindo de tantas dúvidas. Para piorar, sinto que o conheço de algum lugar.— Pergunta. — Kain puxa a rédea de seu cavalo branco, aproximando-se de mim.— O quê? — respondo, confusa.— Eu não estava brincando quando disse que você deveria aprender a esconder o que pensa. — ele diz, e eu engulo em seco.— Nem sei por onde começar... — Admito.— Quer saber como conheço sua avó? Por que Edmundo está com o olho roxo? Ou prefere que eu te conte para onde estamos indo? — Ele ri. — Pode perguntar, Mandy. Eu não mordo.— Bom... gostaria de saber a resposta de todas.—— Sua
Coloco a mão no rosto para amenizar a luz do sol em minhas vistas. Estou em um espaço aberto, com grama rasteira. O céu está azul e límpido; nuvens brancas, tão cheias que parecem algodão, se espalham.Em meio às colinas, uma casa inteiramente moldada em cedro polido exalava um calor acolhedor que contrastava suavemente com o frescor da floresta ao redor. As janelas amplas, de vidro translúcido, deixavam o sol entrar em faixas douradas.Uma criança corre atrás de uma borboleta de asas amarelas, sorrindo com dois dentes da frente faltando. Usava um vestido amarelo de babado e um laço combinado em seus cabelos escuros, semipresos.Ela tropeça em um galho no caminho, ralando seus joelhos roliços. Faz cara de choro, mas as lágrimas não derramam de seus olhos.Me aproximo para ajudá-la.Antes que eu consiga me aproximar, uma mulher alta e esbelta vai ao encontro da criança, que permitiu que as lágrimas caíssem quando ela a abraçou.— Selene?— Mamãe, está doendo. — Selene faz um beicinho,
— O que aconteceu? — Acho que você ficou tão emocionada por estar ao meu lado que acabou caindo do cavalo. — Ele brinca, mas seu semblante é sério.Olhando para ele agora, vejo o quanto parece cansado. Seus cabelos negros estão bagunçados e desgrenhados, manchas escuras envolvem seus olhos. Sua camisa tem os três primeiros botões abertos, revelando parte do peito musculoso, e uma mancha de sangue seco estraga o branco do tecido.Kain enche um copo de água para mim. Precisei beber uns quatro copos para saciar a sede. Pego sua mão e aperto suavemente.— Achei que... — ele desvia o olhar, engolindo as palavras. — Achei que você não voltaria.— Em três dias você passou a se importar tanto assim com a minha existência?— Bom... no caso, seis dias e meio. Você passou três dias dormindo.— O quê? — pergunto, quase engasgando com o último gole d'água.Ele dá um sorriso torto, mas não há humor em seus olhos.— Depois que caiu, te trouxe para Cerne. Você me deixou apavorado. Pedi para um guard
A noite estava envolta em um silêncio estranho, quase inquietante. Nem mesmo o canto dos grilos se atrevia a romper a atmosfera densa que pairava sobre a floresta. A lua cheia, escondida por entre as nuvens escuras, mal iluminava a pequena cabana no coração do território da alcateia. Dentro, Selene gargalhava enquanto brincava com seu pai, saltando entre suas pernas enquanto ele a levantava no ar. Aqueles eram momentos preciosos, uma rotina que a fazia sentir-se segura e amada.Um som cortante ecoou pelo ar, um ruivo longo e penetrante, o sinal de alerta de perigo, algo terrível estava prestes a acontecer. As brincadeiras cessaram no mesmo instante. Selene parou e olhou para o pai com uma expressão assustada. — Papai, você ouviu isso? — perguntou, com a voz trêmula Antes que ele pudesse responder, a porta da frente foi escancarada. A mãe de Selene entrou correndo, os olhos arregalados e o rosto pálido. Sua respiração estava ofegante, e seus lábios tremiam ao tentar falar.— Precis