Dois anos e meio haviam se passado desde aquela madrugada de gritos, sangue e promessas quebradas. E há anos que a vida de Estelle tinha virado do avesso — desde que ela enfrentou o horror, o engano e a dor de uma escolha que nunca deveria ter sido imposta. Mas o tempo, com sua teimosia silenciosa, seguia seu curso. E Estelle também.A nova casa onde morava com os filhos ficava a poucos minutos de caminhada da residência de Marta. Era menor, discreta, envolta por um jardim com roseiras e lavandas que insistiam em florescer mesmo sob o clima cinzento de Londres. Estelle começava, enfim, a chamá-la de lar. As meninas já respondiam em inglês quando brincavam entre si. Marina falava como uma nativa, e Betriza — embora ainda se fechasse em saudades — aos poucos aceitava a ideia de que sua vida agora acontecia ali, longe das praias brasileiras.Estelle, porém, seguia em trânsito. A mente ainda cruzava pontes invisíveis entre passado e presente. O coração oscilava entre a paz que buscava e as
Dois anos e meio antes — Hospital Penitenciário de Florianópolis. A luz do hospital era branca demais. Fria demais. Quase agressiva. Murilo abriu os olhos com dificuldade, como se a pálpebra tivesse o peso do mundo. A dor vinha antes da memória — uma fisgada no peito, depois uma ardência no ombro, e então o silêncio espesso da sala estéril. Ele não sabia se estava vivo ou apenas sonhando em estar.Só depois, entre respirações curtas e tosses doloridas, lembrou-se do som do disparo. Do chão frio. Da confusão. E da certeza que teve de que morreria. Mas não morreu.Murilo sobreviveu.Foi preso antes mesmo de sair do hospital. Algemado à maca, sentiu pela primeira vez o peso não da bala, mas de tudo que carregava por dentro. A culpa, o amor, o arrependimento, os silêncios que permitiu, os erros que cometeu.Ele não era um homem violento. Nunca fora. Mas havia sequestrado Estelle. E isso bastava para defini-lo, ainda que no fundo soubesse: fez tudo por desespero, por amor —
Alguns dias antes da festa de aniversário de Marta e Antônio, ele chegou em casa com o peso do mundo sobre os ombros. O dia na faculdade havia sido denso, as aulas pareciam não ter fim, e tudo que ele queria era silêncio. Ao entrar, largou os livros sobre a mesa da sala com um suspiro longo e cansado. O som do couro batendo na madeira chamou a atenção de Marta, que conversava tranquilamente com a sogra sobre detalhes do bolo e das lembrancinhas.Ela olhou para o marido e algo em seu semblante a alarmou. Levantou-se discretamente e foi até ele, silenciosa. O olhar que trocaram dizia mais que palavras: algo estava errado. Esperou que ficassem a sós na cozinha.— O que aconteceu? — perguntou, com a voz baixa, mas firme.Antônio hesitou. Passou as mãos pelo rosto como quem tenta apagar um pesadelo. Seus olhos, quando se encontraram com os dela, já não tinham a mesma paz de antes.— A casa da Estelle foi vendida, Marta... — começou, mas a frase seguinte foi como uma lâmina — ... e quem comp
Após a partida dos convidados, Estelle permaneceu para ajudar Marta. Enquanto lavavam os últimos copos, Marta percebeu o olhar vago da irmã, perdido em algum lugar muito além daquela cozinha. Havia uma palidez súbita em seu rosto, como se a cor tivesse drenado toda de uma vez, deixando apenas o corpo — presente, mas ausente.Em um breve instante de distração, Estelle deixou o refrigerante escorrer pela pia com mãos trêmulas, como se tivesse esquecido o que fazia. Pequenos sinais. Quase imperceptíveis. Mas, para quem conhecia Estelle, eram como rachaduras em uma represa prestes a ceder.Quando teve a chance, Marta se aproximou. Segurou levemente o braço de Estelle, com aquele cuidado que só quem ama em silêncio consegue oferecer.— Estelle… você está bem?A pergunta, simples, atravessou a muralha que Estelle havia erguido ao redor de si. Ela hesitou. Mordeu o lábio com força, os olhos fugindo para os cantos da cozinha como se procurassem abrigo.Então, em voz baixa, quas
O final da tarde tingia Londres com tons dourados e frios. As luzes da cidade começavam a piscar entre as janelas, refletindo sobre as poças d’água deixadas pela chuva da manhã. Estelle observava esse reflexo da janela de casa, uma xícara de chá entre as mãos e um cansaço profundo dentro do peito. Era difícil descrever o que sentia. A confirmação da paternidade de Pablo ainda martelava em sua alma como um sino rachado: ecoava, mas não trazia paz.Murilo era o pai. Pablo tinha o sangue dele. Mas… e agora?O barulho da campainha soou alto demais para seus ouvidos atentos. Tirou-a dos pensamentos. Com passos rápidos, percorreu o corredor. Não queria acordar os filhos, que descansavam após um dia cheio. Quando olhou pelo olho mágico, viu Marta do outro lado da porta.Com um sorriso leve, abriu e a deixou entrar. As duas se abraçaram, mas Estelle sentiu o corpo da irmã rígido, quase defensivo. Marta entrou e seguiu direto para a sala. Sentou-se com uma postura tensa,
Era um fim de tarde dourado, iluminado por luzes pendentes e flores espalhadas por todo o jardim da casa dos Albuquerque. Balões em tons de rosa claro e dourado flutuavam graciosamente ao vento, enquanto o aroma doce de tortas, frutas frescas e flores recém-colhidas pairava no ar. Betriza completava quinze anos, e aquele não era apenas mais um aniversário — era, silenciosamente, um recomeço para toda a família.Estelle observava a filha do outro lado do jardim, com os olhos marejados de uma alegria serena. Beatriz sorria, radiante, com os cabelos soltos dançando ao vento, rodeada de amigas, rindo de algo que Pablo havia dito. O menino, como sempre, encantava a todos com seu jeito leve, espirituoso e suas piadas inocentes. Era impossível não sorrir com ele por perto. E, de certa forma, ele também parecia mais leve nos últimos dias — desde que fora apresentado, formalmente, a Murilo.Estelle se pegou pensando em como tudo mudara em tão pouco tempo. O reaparecimento de Muril
A manhã chegou encontrando Estelle acordada. O sonho que tivera com Paulo havia tirado seu sono. No sonho, ele não dizia uma palavra. Apenas a olhava com olhos reprovativos, como se a acusasse silenciosamente por suas atitudes. Tentou voltar a dormir, mas toda vez que fechava os olhos, a imagem dele surgia, vívida e incômoda.— Não vou deixar você comandar minha vida, Paulo. Você está morto — murmurou para si mesma, jogando as cobertas para o lado.Levantou-se e desceu para tomar uma xícara de café. Depois foi até a lavanderia. A vizinhança ainda estava envolta no silêncio preguiçoso de um domingo. As janelas do cômodo deixavam entrar uma luz pálida e difusa, que tornava o ambiente quase etéreo, como se o tempo estivesse suspenso.Estelle terminava de dobrar algumas roupas quando ouviu o som de passos suaves no corredor. Era Pablo.— Mãe? — A voz ainda guardava traços de infância, mas os olhos... os olhos já começavam a fazer perguntas que o coração dela não sabia respo
O mar se estendia em um azul profundo, calmo e infinito, como se convidasse cada pensamento, cada desejo a se perder ali, entre a espuma das ondas e o horizonte distante. As ondas quebravam na areia com suavidade, como se sussurrassem segredos antigos aos pés daquela família, como se o oceano, com toda a sua vastidão, tivesse algo a dizer sobre recomeços e sobre a coragem de continuar. Era um lugar novo, ainda sem histórias próprias, mas cheio de possibilidades. E talvez fosse isso o que Estelle buscava: um começo que não tivesse memórias do que doeu, apenas espaço para o que ainda poderia florescer. Ela respirava fundo, sentindo o sal no ar, o vento tocando-lhe a pele, como se tudo ali fosse um convite à renovação.Betriza e Marina corriam, rindo com a liberdade de quem ainda acredita que a felicidade mora nas coisas mais simples. Seus cabelos soltos voavam ao vento, leves como a manhã clara que se derramava sobre a praia, como se as duas garotas fossem parte do próprio vento, do próp