Capítulo 1

Parecia fácil concluir a tarefa, quase como uma brincadeira de criança. E, na verdade, quantas vezes Daisy praticara aquela cena? Inúmeras. Às vezes, sozinha; outras, na presença das amigas, irmãs ou bonecas como parceiras.

Bastava dar um passo por vez, manter os pés firmes, as mãos ao lado do corpo acompanhando o ritmo do caminhar determinado. Deixar ombros eretos, quadris encaixados, semblante neutro, olhar enigmático e respiração controlada. Um conjunto de detalhes que utilizava quando se imaginava desfilando numa passarela longa, sob os holofotes e os flashs das máquinas fotográficas criando pontos brilhantes como estrelas. Dessa forma, ou melhor, usufruindo da sua experiência infantil como modelo, bastava somente seguir o protocolo e dominar os palcos.

O seu objetivo se encontrava no final daquele corredor, cercado por vozes afoitas, olhares assombrados e uma pressa imoderada. Tudo culpa da data que o calendário exibia. Entretanto, Daisy possuía, naquele momento, outra preocupação, uma bem mais exigente e dominadora: escapar da tragédia que havia “visto” menos de dez minutos antes.

Ver talvez não fosse o termo correto, mas, infelizmente, ela não conseguia pensar ou denominar de outra maneira o que costumava acontecer com a moça bonita de olhos cor de mel.

— Tem algo legal ali na frente? — Giovani, seu colega de trabalho e o único que conhecia o tal “ver”, ou, melhor dizendo, acreditava naquela loucura, parou ao lado dela, seguindo o seu olhar.

— Minha dignidade. — Um suspiro de pura desolação combinava com seus ombros curvados.

— Hum. Pelo jeito não será agradável. — Ele se colocou em frente à amiga. Bem mais alto do que a moça de cabelo negros e lisos, exibiu um sorriso de pura compaixão.

— Nem um pouco.

— E se você tentar mudar o final? — Colocou as mãos sobre os ombros da amiga, dando um aperto firme.

— Não adianta. Posso burlar o “sistema” — enfatizou a palavra com um gesto de seus dedos —, mas, de um jeito ou de outro, minha dignidade ficará bem diante daquela porta.

— Estarei por perto?

— Parcialmente — respondeu quase em um sussurro.

— Como assim?

— Sua voz...

Giovani não compreendia muito bem o que implicava o “ver” na vida de Daisy e tão pouco entendia o processo. Na verdade, se não tivesse presenciado aquele tipo de acontecimento em outras ocasiões, poderia fazer parte do time que teimava em desacreditar das palavras e ações dela.

— Mas não custa tentar, certo? O problema está na porta? — Ela concordou com a cabeça. — Então irei até lá para te esperar. O que preciso saber?

Daisy pensou por um momento. Ela já havia criado diversas estratégias para mudar um pouco o final dos acontecimentos, planos e mais planos detalhados ou simplórios, com o único intuito: afastar-se das cenas degradantes. Compreendia que, em algumas situações, fazia-se necessário acompanhar o jogo, principalmente quando o resultado a privilegiava. Contudo, quando vergonha alheia estava acoplada à equação, a ânsia em mudar algo que até então nunca conseguira lhe picava a pele, igualmente aos pernilongos que teimavam em castigá-la num dia de muita chuva e calor.

— Tudo bem. Não perderei nada tentando mais uma vez. Me espere em frente àquela porta — apontou o local em questão — e não deixe ninguém entrar. Entendeu? Custe o que custar, não permita que ninguém entre até eu chegar.

— Certo. Então... — Giovani arregaçou as mangas num gesto resoluto, mesmo que estivesse usando uma camisa polo — estou pronto.

A pianista nas horas vagas acompanhou o amigo seguindo pelo percurso que ela mesma faria em questão de segundos, desejando um final feliz pelo menos daquela vez. Seu corpo dava os primeiros sinais da suposta tragédia, tudo culpa de um problema de saúde em tratamento.

Com os olhos fixos nas costas largas de Giovani e na maneira como ele ignorava as supostas distrações, Daisy deu o primeiro passo. O peso da necessidade lhe causava calafrios pelo corpo franzino.

Colocou as duas mãos sobre o ventre num pedido de socorro. Seus passos seguiam a sequência como havia visto. Vozes a tentavam como uma velha amiga sincera, porém, determinada como uma guerreira em busca da medalha de bravura, ela se desviou das intempéries. Um misto de satisfação e esperança a dominava conforme Giovani abria aquele mar de vergonha.

Um pouco adiante dela, a porta mais importante do dia foi aberta, liberando o espaço. E Daisy deu um suspiro em agonia. Dores percorriam seu baixo-ventre. Mais uma vez a esperança cresceu, até que ela enxergou o exato momento em que a tentativa iniciava o processo de falha e desespero.

Uma funcionária prestativa em excesso atravessou o caminho de Giovani, dando-lhe um esbarrão poderoso. Esse ato por si só não seria capaz de prejudicar seu plano, mas um copo de café quente derramado entre os participantes daquele encontro trouxe outro tipo de agonia: gritos, desculpas e guardanapos solidários.

Daisy suspirou mais uma vez. A falta de dignidade a esperava. Não havia como fugir.

Uma pequena multidão de quatro outros funcionários se revezava em ajudar Giovani e a estabanada funcionária. Daisy seguiu o percurso. Mais alguns passos, e tudo aconteceria como previsto.

Entre pedidos de desculpas e “você se queimou?”, enxergou o amigo encarando-a num total desespero enquanto era carregado justamente para o lugar onde ninguém poderia adentrar a não ser ela. Pensou em correr, mas as dores unidas ao sentimento de completa incapacidade a impediram.

Quando, enfim, chegou em frente à porta tão esperada, seu corpo exibia um suor visível, e a necessidade pulsava no lugar específico.

Ela bateu com os nós dos dedos na folha de madeira escura. Ouviu um “já vai” seguido um segundo depois de “o trinco quebrou!”

Assim como previsto, Daisy tentou a maçaneta com ímpeto de um pugilista, implorou por ajuda. Outras pessoas se uniram ao acontecimento, quando sua lamúria se juntou às advindas das duas pessoas atrás da porta: Giovani e a funcionária do café.

O restante da cena se desenrolou em câmera lenta para Daisy, mas num ritmo correto para os demais. As dores no baixo-ventre se avolumaram, e nem mesmo a junção das pernas impediu o desastre.

Olhou ao redor numa completa aflição, mas, infelizmente, o resultado foi inevitável. O banheiro mais próximo encontrava-se em outro andar.

E foi assim que tudo aconteceu naquele dia. Uma premissa “vista” sem qualquer chance de ser alterada, questionada ou ludibriada.

A vida de Daisy funcionava daquela forma, e, pensando mais uma vez em como aquele “dom” parecia uma maldição e uma benção, ela sentiu os olhares questionadores em sua direção, quando sua bexiga ditou as regras.

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