Primeiros passos de um tango
Primeiros passos de um tango
Por: Lucia Maria Chataignier de Arruda
Primeira sessão após duas entrevistas

Pode te parecer estranho, mas dê uma olhada nestas fotos e leia o que escrevi. Faz parte de uma coluna que escrevo sobre o Rio de Janeiro. Eu já fazia esta coluna antes, mas precisei interromper quando me envolvi com a minha editora e passei um tempo fora do país. Mas agora estou retomando.

Rio Antigo

Olhar o Rio Antigo é como espiar uma parte do nosso passado.  Não um passado pessoal, real, tópico, mas um passado remoto, no qual habita o nosso imaginário, repleto de personagens representativos dos fetiches do presente, das lendas e mitos que transitaram naquelas ruas e sobrevivem, ainda hoje, nas letras dos sambas e nos casarões tombados da velha Lapa.

Alargamento da Rua da Carioca - 31 de janeiro de 1906

Início do século XX.  Carroças, lama, lixo.  A rua prepara-se para o progresso.  Na revolução das reformas e na intenção futurista de seus projetistas, um sonho repleto de novos horizontes, modernidades, luxo. Hoje, no século XXI,  a rua asfaltada, entupida de gente e de tráfego.  As pessoas transitam sem nenhuma elegância. Chapéus, há muito aposentados, dispensam cumprimentos e cortesias. Os que se vestem de terno são raros. Alguns prédios antigos permanecem. No ar, empestado como uma carcaça aderente à história do povo, o odor inconfundível de lixo, suor e mijo.

Inauguração da Rua 1de Março. O prefeito Pereira Passos – o mais alto, de cartola – no meio do povo.  Uma pose para a história. Chapéus em formatos variados estão sobre as cabeças dos homens e dos meninos.  Não há mulheres na foto. Fechadas em seus lares, bordando, cuidando, muitas só frequentavam o Centro, acompanhadas de seus esposos, para consultas médicas, visitas agendadas a escritórios de bacharéis ou motivadas por novas modas lançadas nas elegantes lojas que copiavam e, até mesmo, importavam os modelos franceses.  Mesmo assim, não eram idas independentes, e sim monitoradas por suas mães, irmãs, cunhadas.  Um mundo recatado, no qual o feminino e o masculino representavam e incorporavam instâncias próprias.  Não invadiam, nem eram invadidos.  Havia um limite regrado pela conveniência, uma linha imaginária, tal qual uma Tordesilhas não questionada, entre o que era das mulheres e o que era dos homens. O que ninguém sequer supunha é que, nas fantasias ocultas pela opressão católica, que ditava as regras, e pela censura social, as mulheres já olhavam de soslaio para os malandros da Lapa com a curiosidade e o desejo abafados em leves suspiros sobre suas camas ornadas com lençóis de linho e travesseiros de pena de ganso.  E, após o ato consumado, seus maridos recolocavam suas femininas camisolas listradas, acreditando terem cumprido seus deveres e satisfeito os desejos de suas puras e castas esposas. E estas retomavam seus bordados e seus sonhos esperando uma nova ida aos centros nervosos da cidade, nos quais viam e eram vistas e apreciadas pelos olhares cobiçosos dos machos atrevidos, extraídos dos sonhos não revelados e das fantasias consentidas, embora caladas, em seus leitos conjugais. 

Igrejas e capelas

Igrejas são como mulheres altas, nobres, esbeltas. A finura de seus traços e de suas linhas, plenas de detalhes góticos, denuncia um porte de realeza, quase que sublime. Ambiente de reis e rainhas. 

Capelas são como gordas camponesas aconchegantes em seus abraços e em suas risadas abertas, seus cheiros-de-leite recém tirados, suas tetas volumosas – elas também –, fartas em alimento para seus rechonchudos e rosados bebês.  

Pelas suas janelas místicas ou campestres, exala um cheiro ameno de feno, um toque de açucena e lavanda misturado ao odor das roupas recém passadas e secadas sob os raios ternos do sol-sempre-presente. Numa, entoam os Cânticos dos Cânticos, passeiam almas clássicas, expiam-se culpas, engolem-se hóstias consagradas e iluminam o ambiente com longas velas como lírios recém colhidos. Noutra, uma voz impúbere de menino apressado entoa um canto rápido enquanto badala um sino emprestado do bezerro recém-nascido. Os panos que cobrem o altar, engomados, são prendas oferecidas pela vizinhança talentosa.

Espaços diferentes, cada qual com sua magia.

*

Eu trouxe essas fotos porque gostaria que você acompanhasse a linha do meu pensamento e seguisse meu ponto de vista.  Sei que a coisa não funciona desse jeito, mas estou cansada de me adaptar aos contratos, às regras, aos modelos...

Se eu quero transgredir? Talvez... Mas o que não é permitido entre quatro paredes?

O seu silêncio soa como uma aprovação. Não sou leiga, na verdade. Já fiz análise antes. Foi numa época bem diferente da minha vida. Minhas questões eram outras...  Agora, estou cheia de dúvidas. Antes, eu estava cheia de certezas. A pergunta que tem me intrigado e – por que não? – instigado é: como se constrói uma mulher? Ou, como dizia Serge Leclaire, “O que quer uma mulher?”.

Seria por demais simplista responder a essa pergunta, eu sei.  É como “cercar” ou aprisionar com uma receita aviada o desejo alado daquilo que não tem limites.  A mulher sabe que não tem limites.  É como uma barriga eternamente fértil, enigmaticamente prenha, incansavelmente grávida de poções, ideias, fantasias e soluções!

O amor... acho que o amor entre uma mulher e um homem, só se dá uma vez na vida. Há uma entrega tão grande que exaure o corpo e a alma. Quando a mulher percebe que já não é amada como antes, experimenta um abatimento que mina as bases de tudo aquilo que ela espera, acredita, investe e vive.

Quando percebi que o Márcio não me amava mais, pelo menos não do mesmo jeito que antes, divertido e atencioso, extraí dos recônditos de minhas entranhas aquela poção mágica, que é um tipo de poço de segredos e esperanças. Essa é uma coisa ou um recurso que nunca ou quase nunca eu uso, pois desgastaria, e, se desgasta, perde o sentido do uso. Eu o conduzi a um mundo proibido, um mundo conhecido apenas pelas mulheres, um mundo de sedução e mistério, no qual o duplo se instala e os sons nunca ouvidos e suspiros jamais permitidos se sucedem. Eu sabia que quebrava um tabu. Sabia que esse recurso beirava o interdito, abraçava o maldito, pactuava com demônios, alugava almas e me colocava exposta aos riscos que poucas mulheres ousam apostar ou se expor. Era apenas um toque sutil, uma virada, mas continha, em si, uma força avassaladora, renovadora. Eu senti, então, que, dentro de mim, conviviam várias mulheres: de Lilith à Sherezade. Percebi que, ao penetrar no mais profundo, na essência dessas mulheres, eu poderia desvendar e manipular sonhos, planos, fantasias, receitas, poções. Foi então que, num clima de mistério e sedução, eu teci a minha teia. Sabia que ele estaria irremediavelmente preso. Só me restava sugar sua alma. Sabe? Quando percebo que tenho esse poder, entro em pânico. Gente! Como isso tudo foi construído na minha cabeça? Eu estranho-me e me admiro. Vou contar como tudo isso começou.

*

Se estou usando de sedução para te prender a atenção? (ri) Do que não é capaz uma aranha no cio?

(Silêncio).

Preciso de um tempo para entrar no clima.

            A espreita da aranha?  Não, não é isso.  Não vou te caçar.  Você é apenas uma orelha. Uma orelha que me escuta. Estou ácida, me desculpe...  é, ou pode ser o veneno da aranha...  mas não me sinto uma aranha!  Deixa que eu conduzo.

(Silêncio).

A possibilidade da força dos homens é uma certeza física. Está ali, medida. Com a mulher, não. A gente sabe que tem recursos, mas prefere, na maioria das vezes, resguardá-los, como se houvesse sempre outra estratégia, mais cordial, mais artimanhosa, mais apropriada ao que a sociedade espera da gente. Os grandes tabus só são quebrados quando percebemos que perdemos terreno.  Afetivo, é lógico.  Emprego, não é o que desestrutura uma mulher. Amor, sim.

            Se foi isso que aconteceu? Eu senti que perdia terreno com o Márcio? Claro! Afinal, eu não estava perdendo terreno?... Mas me deixa continuar meu raciocínio: a música é a mais universal das formas de comunicação.  Ela não tem forma, nem se traduz em uma linguagem. Os seus signos são compreendidos em qualquer parte do mundo. Têm uma semiótica própria. As partituras são democráticas e desprovidas de preconceitos. Repare só: uma bela melodia pode ser ouvida repetitivamente e, a cada vez que ela é executada, pode remeter-nos a uma fantasia e a uma associação diferente. Ou à mesma, se quisermos. Não há a imposição das palavras, a definição de um limite pictográfico. Vários instrumentos podem executar a mesma música.

Pensei, então, em um maestro.  Ele pode destacar um instrumento, acelerar um movimento, enfatizar, prolongar ou abafar o som de uma clarineta em favor de uma viola.  Mas não estará, ele, dando a interpretação pessoal de uma partitura?  Não deveriam, os instrumentistas, exercer suas notas, declinarem seus acordes segundo seus próprios sentimentos, seguir a intuição ou empreender a luta pelo realce, pelo reconhecimento como o fazem na vida comum? Um ordenhador de notas, o maestro.  Ele é colocado num púlpito frente ao rebanho musical e se dá o direito de extrair o sumo da música, direcionar os jatos sonoros...

*

Se sou indomável? Com certeza!  Meu discurso e minha criação seguem indômitos.  Deve ser por isso que outro psicanalista, há uns anos, me disse que eu deveria procurar outro profissional, porque ele não me acompanhava...  É, sou como o solo rebelde de uma flauta que insurge contra o poder da batuta e explode em notas...

(Silêncio).

Estava pensando: quando escrevo, eu esgoto meus personagens. Eu extraio deles a alma, o espírito, o pâncreas.

*

Não, não ajo como maestro. É cruel você dizer isso. Personagens são personagens. Facetas da minha vida. Como uma saia plissada ou, até, uma sanfona. Objetos. Eu abro ou fecho. Mas são objetos. Músicos são pessoas com sentimentos e expectativas. Eu sei que, no fundo, você me entende. Bem, o fato é que, quando acabo de escrever, fica uma espécie de resíduo do personagem. Uma reuma pegajosa que não se desprega facilmente... eu preciso, então, de um tempo para voltar a me sintonizar, me equalizar...

É, talvez você esteja certo... tenho um lado maestro muito forte... o “deixa que eu conduzo”, não é? Eu não havia percebido isso.

Mesmo quando não é literatura. Quando eu começo a me aprofundar na biografia de algum autor ou escrever sobre um tema.  Há uma penetração e, por um tempo, eu sou eles... Há uma harmonia... uma simbiose, uma cumplicidade...

            Márcio sabia disso. Sabia!? Eu me pergunto! Sabia sim e ainda sabe, só que parece que... 

Ele não segue mais o maestro? Pode ser... Mas eu fazia isso tão bem!

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