Segunda sessão

Voltei a desmaiar. Não sei se já te falei sobre isso... não?  Então falo agora:  algumas vezes, experimento uma intensa angústia, fico tonta e perco os sentidos temporariamente. Já me aconteceu algumas vezes.  Uma delas foi ontem...  Nós fomos ao lançamento da nova campanha da AG&S. Márcio trabalha em propaganda.  Não sei se já te disse isso.  Eu vi quando ele e a tal de Clara ficaram de mãos dadas no meio do grupinho do trabalho dele.

(Acende um cigarro, nervosamente).

            Claro que fiquei com ciúmes!  Mas não fiz nada. O que eu poderia fazer?

            A falta de controle da situação?  Sim, de fato. Como uma revolta da orquestra e dos personagens.  Ninguém respeita o maestro...

Está tudo muito confuso na minha cabeça. Reconheço quando você diz que o meu desmaio seria um recurso para não participar de uma cena insustentável, incontrolável.  Pode ser, mas isso tudo começou muito antes de eu conhecer o Márcio! Eu tentei explicar isso para o outro terapeuta. Um psicossomaticista. Esta figura, imagine você, vai e me diz que eu experimentava uma tensão determinada, e, ai, ela atuava diretamente sobre o meu comportamento à maneira de uma necessidade, como um apito de panela de pressão.  Eu perguntei a ele qual seria o processo que detonaria o sintoma quando a crise ou a tensão não fosse consciente. E ele, com a pérola da contracultura, veio me dizer que era um efeito reativo, somático de fundo emocional, mas que não passava pelo inconsciente. Como se isso fosse possível! Eu até escrevi uma matéria sobre isso: “Corpos em Movimento”.  Não sei se você chegou a ler. Saiu na minha coluna do jornal e gerou a maior polêmica no meio psi.

Eu gostaria de esclarecer uma coisa pra você: quando eu falei da mistura de mulheres em mim, lembra? De Lilith à Sherezade e coisa e tal?  Pois bem: eu não quis dizer que interpretava essas mulheres. As coisas comigo são criadas de uma forma, não digo nem paralelas, porque paralelas não se infiltram.  Elas entram de viés, furtivamente, numa superposição que não precisa ser simétrica, proporcional, adequada. O que eu quero dizer é que um personagem, sob certos aspectos, pode sobressair sobre o outro, ser agente. Há um acordo de cavalheiros entre a fantasia, a realidade e o desejo.  No sexo, sobretudo, pairam, sobre ele, fantasmas provenientes de arquétipos profanos, resíduos do imaginário e das fantasias femininas não abertamente confessadas. O personagem desempenha o papel do intercessor, daquele que abre portas, que possibilita, que fornece a senha e autoriza o interdito.  Visto por esse ângulo, o interdito se distancia do maldito e passa a poder transitar do incesto ao macabro, do sádico ao sagrado, numa continuidade associativa, natural, fluente.  E é nesse ponto, com esse envolvimento, que a poção certa do veneno é colocada. Não para matar, mas para entorpecer as defesas da conveniência e a censura dos tabus.

(Apaga o cigarro).

           Sempre achei fascinante e intrigante a história de Sherezade.  Ela percebeu que tipo de sedução deveria usar para captar a curiosidade do sultão ou califa, sei lá.  Sua sagacidade foi mais rápida.  A mulher, quando antecipa os desejos do homem, quero dizer, quando ela dá forma a esses desejos e fantasias, que muitas vezes nem eles sabem que os têm, torna-se uma espécie de feiticeira, possuidora de uma magia enigmática, inalcançável!

Sim, concordo que é como uma caixa de Pandora, o ventre da mãe etc.  Mas que pessoa e, ouso dizer, que homem – especialmente os homens – não tem curiosidade em desvendar esse mistério?  É um pouco – isso eu pensei agora – como o sujeito que abre a galinha dos ovos de ouro para saber da fonte, decifrar o código!  Mas aí ele se fode.  É certo. Sábio é o que permite o desenrolar dos fios do fantástico e não interfere!

(Ri).

Essa sua cara divertida não precisa nem de interpretação. Eu já entendi: você é meu sultão e a ti contarei minhas histórias...  Cuidado, hein? Pode ser que eu tenha que fazer mil e uma sessões! 

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