"Cabelos dourados como o fermentado do mais novo trigo; lábios de suco de romã, e a pele pálida e macia como o leite de castanhas mais fino… assim é o Deus do licor divino, que cura as feridas da alma, alivia a mente e faz companhia a quem está sozinho." — Esse poema... — Ofegou, ao que o demônio já estava com os lábios no seu pescoço de novo. — É... — Uma ode ao Deus da Boa Sorte. — Desceu os beijos da clavícula pro peito exposto da Divindade. — Faz tanto tempo assim que ninguém recita pra você? — Então é isso, nós já nos vimos antes, pra saber de um poema antigo como esse... — A divindade pensou. — Eu deveria saber sobre você… tanto quanto você sabe sobre mim, Kitsune? — Eu não me importo que você tenha esquecido. — O demônio continuou traçando-lhe a pele a beijos. — Se não te fizer se lembrar… vou fazer com que nunca mais se esqueça.
Leer más— Está tudo bem, Tenshi, eu posso ir sozinho.
— Está escuro, Alteza, e o caminho é acidentado.
— Tudo bem, tudo bem. — Shu abanou a mão, num sinal de dispensa enquanto descia da carruagem. — Não quero ocupar mais do seu tempo, sei que você é um oficial muito requisitado.
— Fui eu quem pediu pra vir, Alteza. — Tenshi soltou-lhe a mão direita assim que o Deus chegou no chão em segurança. Aquelas carruagens reais eram altas demais para um Deus com tão baixa estatura. — Eu insisto em acompanhá-Lo até o templo.
— Já disse que não precisa. — Shu sorriu-lhe, aquele Seu belo sorriso de rosto inteiro que em si já era uma benção, mas ainda assim Ele se esticou na ponta dos pés para deixar um ósculo na sua testa. — Muito obrigado por tudo, sim? E não se preocupe, eu vou ficar bem.
Tenshi fez uma profunda reverência enquanto Shu se afastava da carruagem a passos tranquilos. Realmente queria acompanhá-lo por todo o resto do caminho, mas mesmo o Deus do Sake, da Despreocupação e da Boa Sorte era tão teimoso quanto todos os demais da corte celeste, então não tinha o que fazer além de subir de volta na carruagem e deixar que fosse sozinho.
— Está mesmo bem escuro. — Shu murmurou consigo, apertando os olhos enquanto tentava olhar o caminho à frente, agora que a carruagem iluminada que o trouxera já estava certamente bem distante. — E as copas não me favorecem. — Olhou pra cima, vendo as folhas das árvores em torno cobrirem a luz do céu estrelado que poderia iluminar um pouco seu caminho. — Mas está bem. — Sorriu. — Devem fazer uma sombra fresca durante o dia.
Mas Tenshi não acertou só sobre a luz: o caminho realmente era bem irregular e fez o Deus tropeçar e quase cair, não fosse por um braço comprido que se estendeu à frente do seu torso.
— Oh... obrigado, né? — Virou pra sorrir pro seu bem feitor. Estava escuro demais pra ver seu rosto, mas distinguiu uma figura alta no seu vulto, de longos cabelos e membros compridos em vestes justas. Quem quer que fosse o soltou mas ofereceu-lhe a mão, que ele aceitou: uma mão bonita, grande mas fina, de dedos longos e unhas compridas, certamente masculina, bem como sua postura e andar imponente. Shu não falou nada durante o caminho, curioso com a figura que o conduzia no escuro, segurando sua mão com o mesmo respeito que Tenshi o fizera a pouco, no entanto mais firme. "Quem será...?", se perguntou no seu íntimo, tentando ver de canto nem que fosse apenas traços da aparência daquele ser de presença forte, até que a luz da Lua se fez presente de repente numa clareira entre as árvores. — Ah! Aqui está! — Olhou pra frente, vendo a entrada de um templo antigo: seu templo, abandonado, porém de pé. Apressou o passo, subindo os três degraus da escada de pedra enquanto sentia a mão que o conduziu até ali soltar a sua, devagar e gentilmente. — Né, obrigado por... — Mas quando se virou não viu ninguém. — ...me trazer até aqui.
Estranho... esperava encontrar uma besta em torno do templo, segundo o que tinham lhe avisado lá em cima, mas o que encontrou foi só um rapaz gentil que o impediu de tropeçar no caminho. Deu de ombros, cruzou os braços sob as mangas da túnica e fez o caminho do pátio do templo até a porta de correr aberta da casa. Foi deixada daquele jeito, ao que parecia: um breu profundo pairava em seu interior e o cheiro de poeira e madeira apodrecida era perceptível. "Não podia esperar menos de um Deus esquecido", pensou, rindo de si mesmo e tossindo enquanto estendia o manto sobre um canto no chão pra deitar ali. Estava doente, estava cansado, e tinha muito o que fazer ao amanhecer, mas aquela sombra de calor que ainda restara na sua mão esquerda deixou uma ponta de curiosidade solta que o fez dormir sorrindo.
— Devo te avisar sobre o que te espera quando chegar, Shu. — Kami o segurou na conversa por mais um tempo, fechando o pergaminho antes aberto sobre a mesa. — Tem uma besta em torno do seu último templo.
— Um fantasma? — Perguntou, pegando o pergaminho fechado que lhe foi dado.
— Uhm. — Kami negou com a cabeça. — Já deixou de ser fantasma há muito tempo.
— Ele não deve ser perigoso assim, se ninguém ainda o tirou de lá.
— Ele é: todos que enviamos para enfrentá-lo perderam miseravelmente até que desistimos.
— Eh? — Shu sentiu a própria bochecha se contorcer num espasmo. — Espera, espera, eu não estou em condições de lidar com isso, vocês estão me mandando pra lá pra morrer, é isso...?
— É sua última chance de retomar suas forças, Shu. — Kami suspirou. — Uma vez que seu último templo desapareça, você também definhará: não queremos que isso aconteça sem que você possa fazer nada, a besta que existe lá é um risco, mas que você tem o direito de correr.
De fato, o Deus esquecido corria riscos de uma forma ou de outra, por isso decidiu descer e ver por si mesmo aquela besta, o que quer que ela fosse.
— Bom... — Murmurou, coçando uma têmpora com a ponta do dedo. — Eu realmente não esperava por isso.
Era uma raposa branca, linda, com uma pelagem grossa em torno do pescoço: quando acordou ela estava postada sob o portal do templo, com dois coelhos mortos ao seu lado e a mandíbula manchada de sangue deixando claro que os havia cassado a pouco.
— Você trouxe pra mim? — Chegou perto, se agachando e pousando uma mão entre as orelhas felpudas. — É muita consideração da sua parte.
O animal aceitou o carinho, fechando os olhinhos e baixando um pouco a cabeça, em sinal de completo servilismo. Era algum tipo de espírito bem poderoso, sim, conseguia sentir sua presença sob aquela forma reprimida, mas não havia hostilidade nenhuma ali, muito pelo contrário.
— Que tal eu preparar isso pra nós dois? — Pegou os coelhos e se levantou, subindo a escada de pedra. — Venha, não seja tímido. — O viu parado ali à frente dos degraus, estatístico. — Sei que você também está com fome.
A raposa soltou o ar sonoramente pelo focinho marrom, virando o rosto pro outro lado. Shu franziu o cenho. "Ele não atravessa o portal por quê? Está velho demais pra repelir fantasmas, que dirá um demônio."
— Está tudo bem, pode vir. — Voltou um degrau, estendendo a mão. — Não se preocupe, eu não poderia te exorcizar nem se quisesse, além do mais... — Sorriu. — Eu não gosto de ficar sozinho.
Aquele último argumento pareceu convincente o suficiente, já que a raposa pôs uma das patas no primeiro degrau de pedra, e então saltou pra cima.
— Isso, isso, bom garoto... — Shu o recompensou com mais uma carícia no topo da cabeça antes de voltar a andar pelo pátio sujo do templo com a raposa no seu encalço.
"Resolvi um problema", foi o que pensou, planejando reportar isso mais tarde, mas Tenshi bateu no seu templo por volta do meio dia, e seu julgamento foi absoluto:
— Isso é inaceitável. — Bateu com o copo de chá na pobre mesa de madeira. — Vossa Alteza, Seja razoável: não pode simplesmente tratar uma entidade maligna de tal hierarquia como um animal doméstico.
— Mas ele é uma gracinha, não? — Coçou a têmpora, sorrindo sem jeito. — Além do mais ele é dócil, veja. — Acariciou a cabeça da raposa, sentada sobre as patas traseiras do seu lado, rosnando baixinho pro oficial celeste. — Aqui, dê a pata. — Pediu, estendendo a mão, ao que o animal pôs a pata sobre sua palma prontamente. — Viu?
— Isso não prova nada. — Tenshi cruzou os braços sobre o peito, severo. — Ele pode estar fingindo ser gentil agora, Alteza, mas ele é astuto, não podemos saber o que pode fazer depois, e eu prezo pela Sua segurança.
— O que ele poderia querer de um Deus esquecido como eu? — Apontou pra si mesmo, com um sorriso triste.
— Alteza, ele é quem tem afastado as pessoas do templo, por isso não há fiéis.
— Não teria fiéis com ele espantando as pessoas ou não. — Se levantou, uma vez que a carne cozida na panela parecia pronta. — Mas com ele por perto não construíram nada em cima até hoje, e por isso meu último templo ainda existe.
Shu teve um ano pra aproveitar seu templo reformado e novinho em folha, todo mobiliado ao bom gosto além da compreensão do Deus da Beleza, antes de começar a programar viagem para o reino demoníaco, aonde foi sua cerimônia de casamento. Claro, esta também foi preparada e pensada nos mínimos detalhes por Kirê a pedido de Kitsune, que ajoelhou aos pés dele implorando pra que fizesse do seu casamento com o amor da sua vida e morte o mais memorável possível. Nenhum Deus resiste a uma oração de joelhos, muito menos a divindade da beleza resistiria a um pedido para decorar um casamento: sua mão nem precisou coçar para que desse conta ele mesmo de todos os mínimos detalhes, desde cada prato e docinho que seria servido aos convidados até os os bordados em dourado das elegantes vestes em vermelho vivo dos noivos. E falando em convidados, sim, ho
Shu ficou descansando no palácio submerso por mais uns dias, até se recuperar completamente. Kitsune dificilmente saía do seu lado, se comportando como um cãozinho de colo, abanando as nove caudas aos seus pés o tempo todo, por isso foi um pouco difícil arrumar um tempo a sós com Yurei e Otohime, para lhes perguntar sobre como o rei demônio conseguiu sua atual reputação. Como um velho amigo bem entendido dos seus sinais, o Deus Dragão logo entendeu e chamou Kitsune para uma caçada no mar. A princípio ele não queria aceitar, mas assim que ficou estabelecida a regra, quem pegasse o maior peixe ganhava, então o rei raposa aceitou: ele tinha um espírito competitivo, tanto que não teve vergonha de se colocar em sua forma bestial de uma gigantesca raposa branca de nove caudas colossais, mergulhando pra fora da bolha do palácio junto c
— KITSUNE!Todos ouviram o grito desesperado que veio do pequeno cômodo de memórias da familiar do Deus Dragão: ela foi a primeira a correr pra lá, depois seguida pelo rei demônio.— Majestade. — Ela chamou, tentando pegar suas mãos, que ele abanava no ar, desnorteado.— Kitsune! Kitsune. Kitsune... — Ele esbarrou no incensário, espalhando o pó queimado pelo tatame. — Kitsune!...— Eu estou aqui. — Kitsune se pôs na sua forma pura prontamente, se abaixando sobre um joelho e o envolvendo nos braços. — Eu estou aqui... — Os olhos castanho claros viravam pra todas as direções, mas ele não parecia ver nada. &mda
— Nós já chegamos aqui faz dias e Shu ainda não saiu daquele quarto. — Kirê reclamou, vendo Otohime lhes servir a cerveja que trouxeram do templo, receita da divindade do sake. — O que houve com ele?— Recobrar as memórias não é um processo simples: é normal que fique adormecido por dias. — A princesa tartaruga respondeu, enchendo a última taça em forma de concha, passando para Yurei. — O melhor que fazemos é esperar.— Humpf. — Ele bufou, preocupado. — E você? — Olhou pra raposa branca no colo do fantasma com um olhar de repreensão. — Vai ficar com essa cara de cachorro que caiu do caminhão por quanto tempo? O que te deu?— Ara, ara, não
— Não, não, não! — Shu não aguentou mais. — Céus, Yako Kitsune! Já com esses disparates! Quanta bobagem! Como não me satisfaz? Você me satisfaz e muito! Ter envelhecido não mudou nada, na verdade... — "Na verdade só piorou o apego que eu tenho por você."— Não precisa mentir. — Mas Kitsune o interrompeu, evitando sua mão de chegar no seu rosto mais uma vez.— Aish!... — Reclamou, sem saber o que fazer. — Por que você é tão irracional às vezes?!? Sério, agora eu estou realmente chateado! — Se levantou, saindo do quarto batendo o pé.— Espera, Shu...— Não
Shu passou vários meses meditando numa solução: tanto tempo e com tanto afinco que o título de Deus Despreocupado parecia mais uma anedota. Recomendar Kitsune para ascensão: fora de questão, já que ele tinha antecedentes criminais. Ele mesmo abdicar do trono de divindade: também não; era uma boa solução, simplesmente voltar a ser homem e morrer com Kitsune, mas cada oração que ouvia dos seus fiéis o desencorajava; como deus ele ainda tinha obrigações, acima de tudo a obrigação de não cair na tentação de fazer Kitsune seu familiar e pronto. Não, não, não, Kitsune se tornou um homem virtuoso e justo, certamente faria a passagem em pouco tempo após a morte, e ele a merecia, mais que tudo, não ia tirar isso dele, não mesmo. "O que eu faço?", pensava, andando em círculos dentro do quarto. "O que eu faço? Me separo dele? Viajo para outro dos meus templos e o deixo aqui? Talvez ele se esqueça de mim em alg
Último capítulo