Desconhecidos

Tanto Tenshi quanto a raposa arregalaram os olhos: o oficial celeste impressionado pela possibilidade nunca ter lhe cruzado a cabeça, e o animal com os olhinhos negros brilhando, refletindo perfeitamente o Deus que voltava pra mesa, pondo duas tigelas do ensopado sobre ela e um prato raso no chão, só com a carne. 

— Né, Tenshi... — Ele se sentou. — ...o meu tempo já passou... as pessoas não bebem mais por alegria e nem acreditam na boa sorte, além do mais, despreocupação não é uma palavra que combine com esse mundo. — Olhou pela janela sem persianas ali ao lado: o céu estava limpo, e o sol brilhava intensamente. — Eu fico pensando... se eu deveria agradecer à raposa por ter alongado meus dias protegendo o templo, ou se eu devo lhe pedir desculpas. 

— Alteza... — Tenshi suspirou longamente, olhando pra raposa curvada sobre o prato no chão, comendo como se nenhum assunto naquela mesa fosse com ela. Em todo aquele tempo aquela besta estivera protegendo o templo? Aquilo era no mínimo curioso. — Eu entendo Seu ponto, mas não posso permitir isso.

— Deixe que eu pague minha dívida, Tenshi... — O Deus lhe sorriu, sincero. — ...não é por nada que essa raposa está aqui, seria um absurdo mandá-la embora, de qualquer forma.

— Vossa Alteza é um Deus, não deve nada a uma criatura do submundo. — Franziu o cenho, tentando não se deixar levar pelo belo sorriso nos lábios bonitos do Deus do Sake: uma tarefa um tanto difícil, diga-se de passagem. — A propósito, esse caldo está horrível.

— Ah ha... — Coçou os cabelos da nuca. — ...eu perdi o jeito pra cozinhar, né...

— Pretende fazê-lo Seu familiar? — Perguntou, sério. — Se não for o caso, nada feito.

— E-eu não tenho poderes suficientes pra isso...

— Então arranje, Alteza. — Se levantou. — Eu vou voltar em sete dias: se não houver um laço entre Vossa Alteza e a raposa, eu vou levá-la a julgamento. 

— E-espera, Tenshi! — Chamou, ouvindo um rosnado medonho e gutural ao seu lado. — Kami me disse que ninguém conseguiu levá-lo antes... 

— É verdade. — Ele afastou a cortina que fechava a entrada do cômodo, olhando pra trás sobre um dos ombros. — Nunca me enviaram antes, também, talvez seja essa a razão. 

— Huh. — Riu, se deixando cair deitado pra trás. — Sempre tão convencido. — Fechou os olhos por um momento, sentindo o focinho gelado da raposa roçando na sua orelha. — Né... — Se virou de lado. — Eu acho que não consigo fazer nada se te levarem... uhu!... — Tossiu. — Eu estou sem poderes pra interceder por você, e mesmo que eu pudesse não quero te prender nesse tipo de relação... — Embrenhou os dedos na pelagem branca no peito do canino. — ..."familiar"...hu... a gente nem se conhece...

Por algum motivo a raposa pareceu não querer mais conversa de repente, indo se postar sob o portal do cômodo por onde Tenshi havia acabado de passar. Shu se ergueu pra olhar, mas logo caiu deitado de novo; seu ensopado de coelho realmente estava horrível, e ele estava mais cansado do que quando chegou. "Só catar gravetos para acender o fogo e preparar um coelho me deixou nesse estado?...", pensou, sentindo os olhos pesarem. "Eu estou mesmo morrendo, né...", suspirou; "Talvez, se eu fechar os olhos..."

Shu viu aquele rapaz de novo, o rapaz que o conduzia no caminho pro templo: ele estava parado sob uma cerejeira em flor, com a bela mão fina estendida na intenção de recolher uma pétala rosa que caia; estava de costas, seus belos e longos cabelos esvoaçando com as flores no vento. Queria ver seu rosto, então andou até ele, mas não chegou a tempo, porque acordou. 

— Um sonho...? — Murmurou, levantando o torso. — Como os humanos conseguem viver ignorando isso?...

— Está acordado? 

— Uh? — Teve um leve sobressalto, virando o rosto na direção do dono daquela voz grave: era um rapaz, alto, de cabelos prateados, mas jovem.

— O senhor dormiu bastante. — Ele virou o rosto também, encontrando os olhos escuros com os seus. — Shu-sama. 

— Uah... — Estava um tanto impressionado com a beleza daqueles traços, perfeitos, deveria dizer. — Ah! — Perfeitos, mas um tanto familiares. — Então essa é sua forma humana, né? 

— É mais fácil de preparar alguma coisa assim. — Virou o rosto de volta, voltando a bater a faca contra a tábua de madeira perto do fogo. — Seu estômago estava roncando. 

— Ah ha... é que eu não comi nada desde que cheguei.

— Compreensível. — Ele serviu uma vasilha com o que estava fumegando na panela, jogando as cebolinhas que estivera cortando sobre ela. — Aquilo que o senhor fez estava horrível. 

— Desculpa. — deitou a cabeça na mesa, derrotado. — Eu não sei fazer nada além de fermentar bebidas. 

— Eu discordo. — Pôs a vasilha na mesa, junto a uma colher limpa. — O senhor sabe fazer muitas coisas. — Shu ergueu o torso, olhando bem para o rapaz sentado à sua frente. Seus cabelos eram curtos, à altura da nuca, suas vestes tradicionais, como as que estava usando, mas sua postura era perfeita, e suas mãos grandes, finas e de dedos longos, descansando sobre o colo. — Algum problema? — Maneou a cabeça pro lado, no mesmo movimento que um cachorro faria se olhassem direto nos seus olhos por muito tempo. 

— Hu. — Shu sorriu. — Você é muito bonito, sabia? 

— O senhor acha? — Pra surpresa do Deus ele não ficou nem um pouco envergonhado, muito pelo contrário. — Pensei que me achava mais fofo do outro jeito. — Pôs um cotovelo na mesa, descansando o rosto na mão. — "Uma gracinha", não é? 

— Ah... você é uma raposa bem simpática. — Baixou os olhos pro ensopado na sua frente. Estranho...seu coração perdeu o compasso por um instante. — E um rapaz muito bonito pra ser essa besta da qual me falaram. — Experimentou um pouco do caldo que recolheu com a colher. — Uah... está bom!...

— Está? — Perguntou, sorrindo. — Fico feliz que esteja a seu gosto.

— Você quer me pegar pelo estômago? — Ele brincou, o que só fez o rapaz alargar o sorriso, virando parte do rosto na mão.

— Talvez sim... — Ele murmurou: uma mecha prateada caindo sobre um dos olhos. — Quem sabe. 

— Ehem. — Limpou a garganta, de repente seca mesmo com o caldo quente descendo por ali. — Me diga... eu não sei o quanto você sabe sobre mim, mas eu não sei nem seu nome. 

— Kitsune. — Ele disse, sem a menor hesitação. — E sobre você eu sei tudo, Shu-sama. 

— Nã-não precisa me chamar assim. — Cobriu o rosto com as costas das mãos, suas bochechas ardendo levemente. — T- tão formalmente...

— Então... — Kitsune se levantou de repente, dando a volta na mesa e se sentando ao seu lado. — ...como devo te chamar? — Apoiou uma mão atrás de si, chegando o rosto bem perto do seu. — Alteza?

— Só... — Respirou fundo, como se o ar estivesse escasso por alguma razão. — Só "Shu"... só "Shu" está bem...

— Certo. — Ele concordou, se afastando um pouco. — Shu. 

Shu voltou a comer, sorrindo. Ah... aquilo era ruim... realmente queria aquela raposa ali consigo, mesmo que seus dias estivessem no fim. 

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