capítulo 5

— A Mentira Que Me Salvou (Narrado por Caio)

O telefone tocou pela segunda vez naquela manhã.

E ali, antes mesmo de atender, eu já sabia que minha vida nunca mais seria a mesma.

A primeira ligação tinha vindo da companhia aérea. Um desastre. Um pouso forçado. Feridos. Pessoas desaparecidas. O nome de Gustavo em silêncio. A voz da atendente tão neutra quanto uma sentença de morte. Vi Bianca desabar diante de mim, sem ar, sem chão. E eu segurei. Abracei. Fingi uma calma que não existia.

Mas quando o telefone tocou de novo...

Foi como se o tempo tivesse parado.

Peguei o aparelho com a mão gelada. Bianca me olhava com olhos vermelhos, cheios de lágrimas e desespero. Enzo no colo dela, sem entender o caos. E eu... Eu com a alma num furacão.

— “Alô?” — minha voz saiu falha.

Do outro lado, uma mulher respondeu com gentileza profissional:

— “Senhor Caio? Aqui é do Hospital Metropolitano. Temos informações sobre o senhor Gustavo Andrade.”

Senti meu coração bater com tanta força que por um segundo pensei que ia cair.

— “Ele... ele está vivo?” — perguntei, já me antecipando à dor ou à culpa — nem eu sabia mais.

A pausa foi curta. Dois segundos no máximo. Mas dentro de mim, durou uma eternidade.

— “Sim. Está vivo. Foi encontrado desacordado, a quilômetros do local do impacto. Ele foi arremessado da aeronave durante o pouso de emergência, mas resistiu. Foi localizado por uma equipe de resgate já de madrugada. Está em coma. O estado é grave. Mas... está vivo.”

Fechei os olhos.

Tudo parou por um momento. A sala. O som da televisão ainda ligada no noticiário. O choro de Enzo. Até a respiração de Bianca. Tudo ficou distante. Como se eu tivesse mergulhado numa água escura e fria.

Ele estava vivo.

Gustavo.

Meu melhor amigo. O homem que eu tinha acabado de enterrar com uma mentira.

— “Ele... tem chance?” — perguntei, num fio de voz.

— “Está em coma profundo. O quadro é estável, mas ainda crítico. Os médicos acreditam que há possibilidade de recuperação. Mas não sabemos quando — ou se — ele irá acordar.”

Olhei para Bianca.

Ela me observava, aflita, esperando um veredito. Como se eu fosse Deus e tivesse nas mãos o destino do amor da vida dela.

Naquele momento, eu tomei a decisão que me assombra até hoje.

— “Entendo.” — respondi ao telefone. — “Obrigado por avisar.”

E desliguei.

Me virei devagar. Senti o peso inteiro da escolha desabar sobre os meus ombros. O ar ficou denso. Bianca se levantou, ainda com Enzo nos braços.

— “Caio...?” — ela sussurrou, com os olhos arregalados. — “Era o hospital?”

Assenti com a cabeça. Respirei fundo.

— “Bianca…” — minha voz falhou, então continuei. — “Eu sinto muito. O Gustavo… não resistiu.”

O mundo dela desabou diante de mim.

Ela cambaleou pra trás. Apertou Enzo contra o peito como se ele fosse a última coisa que a mantinha viva. O choro veio — não como grito, mas como uma desistência. Um silêncio cruel que tomava conta de tudo.

E eu fui até ela.

A segurei.

A abracei.

E ela não me afastou.

Afundou no meu colo como alguém que perdeu o próprio chão.

— “Eu tô aqui. Eu vou cuidar de vocês dois. Sempre.” — murmurei, mesmo sem saber se falava com ela... ou tentando convencer a mim mesmo.

Mas no fundo, a verdade queimava como ácido.

Gustavo ainda vivia.

E eu havia mentido.

---

Desde aquele dia, acordo toda manhã com a mentira respirando ao meu lado.

O silêncio da casa. Os brinquedos espalhados no tapete. O cheiro de café. O som de Enzo tentando falar “papai” enquanto me olha com aqueles olhos que deveriam ter o reflexo de outro homem.

Bianca me agradece. Me sorri. Às vezes me abraça do nada. E tudo isso me destrói.

Porque ela confia em mim.

Confia nas minhas mãos, no meu colo, no meu cuidado com o filho dela. Ela se sente segura quando estou por perto. Mas não sabe que sou eu quem colocou a dor mais profunda que ela já sentiu dentro do peito dela.

É uma ironia cruel.

E mesmo assim... eu continuo aqui.

Amo Bianca desde sempre. Antes mesmo de ela notar minha existência. Antes de ela se apaixonar por Gustavo. Eu estava ali. Quando ele pediu ela em namoro. Quando eles se casaram. Quando ela descobriu a gravidez. Quando Gustavo dormiu no plantão e eu fui quem levou sorvete às três da manhã porque ela estava com desejo.

Eu estive em cada linha dessa história.

Menos na que eu sonhava.

E quando a chance apareceu, por mais errada que fosse, por mais suja, torta, cruel... eu agarrei.

Não pra roubar.

Mas pra construir.

Ou me enganei acreditando nisso.

Eu achava que podia dar a ela e ao Enzo uma vida nova. Pensava que talvez, um dia, ela fosse me olhar com amor — não apenas com gratidão. Me ver, não como o que restou, mas como alguém que também ficou. Que também lutou.

Mas agora...

As coisas mudaram de novo.

Ontem à noite, o telefone tocou.

Era o hospital.

— “Senhor Caio? Gustavo apresentou reflexos neurológicos. Está reagindo a estímulos. Movimento nos dedos, resposta ocular. A equipe está otimista.”

Eu não disse nada por alguns segundos. O silêncio que me engoliu foi cheio de pânico. De medo.

Ele está voltando.

E com ele, vem a verdade.

Bianca vai descobrir. Vai me odiar. Vai me apagar da vida dela como se eu fosse só mais uma decepção.

E o pior? Ela vai estar certa.

Eu menti.

Olhei pra ela hoje, sentada no chão, penteando o cabelo de Enzo com os dedos. Os dois rindo. Um momento simples. Um momento de paz. E pensei:

Será que eu teria coragem de contar?

Ou pior…

Será que eu teria coragem de impedir que ela descobrisse?

Talvez eu não seja o mocinho dessa história. Talvez nem o vilão. Mas estou no meio. Preso num campo minado de escolhas erradas, sentimentos reais, e um silêncio que mata devagar.

E o pior de tudo?

Uma parte de mim… ainda torce pra que ele não acorde.

Porque quando ele abrir os olhos, tudo vai acabar.

E eu vou perder tudo que nunca foi meu.

Já era noite quando fui ao hospital.

Não avisei ninguém. Disse a Bianca que ia resolver umas pendências no trabalho, algo rápido. Ela apenas assentiu, com Enzo dormindo nos braços, o rosto ainda inchado do choro dos últimos dias. A dor dela me matava — mas ao mesmo tempo… me mantinha perto.

Pedi um táxi, fui em silêncio. Cada quilômetro até o Hospital Metropolitano parecia um julgamento. Meu próprio coração me acusava a cada batida.

Quando cheguei, falei meu nome. A atendente me olhou de cima a baixo, desconfiada. Mas logo encontrou Gustavo na ficha.

— “Leito 406, UTI. Terceiro andar. Só pode entrar por cinco minutos.”

Assenti. Caminhei em silêncio pelo corredor gelado. O som dos aparelhos médicos, o cheiro de álcool, a luz branca. Era como entrar no ventre da culpa.

Abri a porta devagar.

E lá estava ele.

Gustavo.

O homem que, mesmo desacordado, ainda me ameaçava com sua simples presença.

Havia tubos entrando por sua boca. Monitores marcando batimentos. A cabeça enfaixada. O corpo imóvel, pálido, quase irreconhecível. Mas era ele.

O coração apertou. O estômago virou. Parte de mim queria chorar.

A outra…

…só sentia raiva.

Não dele. De mim.

Do que eu tinha feito. Do que eu estava me tornando.

Dei um passo mais perto. Observei o peito dele subindo e descendo devagar. O som do bip constante preenchia a sala como uma sentença de morte que ainda não havia sido cumprida.

A porta se abriu novamente. Um médico jovem, de expressão cansada, entrou com uma prancheta.

— “Você é parente?”

— “Melhor amigo. Quase um irmão.”

Ele assentiu.

O médico passou os olhos pela prancheta e suspirou antes de continuar:

— “Ele apresentou algumas reações esta semana. Reflexos involuntários. Pequenos estímulos nos membros. Mas…”

Ele hesitou.

— “Mas?”

— “Mas o quadro ainda é extremamente incerto. Não há previsão de recuperação. Poderia levar semanas... meses... até anos. Há casos assim. Pacientes que ficam em coma por uma década. Presos entre o que é e o que foi.”

Por dentro, meu coração afundou.

Anos.

Anos com aquela dúvida pairando sobre nós. Com Bianca presa em um luto que eu mesmo criei. Com Enzo crescendo e chamando outro homem de pai... até o verdadeiro voltar.

Engoli em seco.

E então, sem pensar, ou talvez pensando demais... eu falei.

— “Então o melhor seria ele... não acordar.”

O médico ergueu os olhos da prancheta. Ficou me olhando por alguns segundos.

Longos demais.

— “Como disse?”

Minha voz saiu mais baixa, mais contida, mas com uma frieza que até me assustou:

— “Digo... viver assim? Preso. Sem consciência. Deitado numa cama por anos. Isso não é vida. Talvez... o mais humano fosse deixar a natureza seguir seu curso.”

O médico franziu a testa, desconfiado.

— “Senhor Caio, o hospital não trabalha com esse tipo de abordagem. Ele tem suporte vital. Está lutando. O corpo ainda está ativo. E se há qualquer chance, mesmo mínima, nós seguimos tentando. Essa é a ética da medicina.”

— “Mesmo que isso signifique prolongar o sofrimento de todos ao redor dele?”

— “Mesmo assim.”

Ficamos em silêncio. Ele anotou algo e saiu, olhando por cima do ombro uma última vez antes de fechar a porta.

Fiquei ali, sozinho com Gustavo.

Sozinho com o homem que me impedia de ter a vida que eu queria — mesmo desacordado.

Me aproximei do leito.

Me inclinei devagar até o ouvido dele.

— “Você devia ter morrido naquele avião.”

Meu sussurro foi tão baixo que nem o bip das máquinas reagiu.

— “Ela tá sofrendo. O Enzo tá crescendo sem saber quem você é. E eu... tô aqui. Cuidando deles. Vivendo a sua vida. Você tá perdendo tudo. E eu... tô pegando cada pedaço.”

Parei. Respirei fundo.

— “Se você acordar, eu perco tudo. Então... se puder me ouvir, Gustavo... fica aí. Fecha os olhos. Morre desgraçado.”

E então me afastei.

Olhei mais uma vez para aquele corpo imóvel e saí do quarto sem olhar pra trás.

Mas as palavras ficaram comigo. E pela primeira vez desde o acidente, eu me ouvi como outra pessoa ouviria.

E percebi…

Eu não sou mais só um homem apaixonado.

Sou um homem disposto a tudo.

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