O Preço da Mancha
Stella Ferreira A silhueta que preencheu o batente era alta e imponente. Dante Moretti parou, o terno escuro e perfeitamente cortado sob medida contrastando com o branco e o dourado caótico da saleta. Ele não se desculpou pela interrupção, não piscou ao absorver o drama. Seus olhos, de um tom cinzento e frio como aço, varreram a sala, demorando-se apenas o tempo suficiente para registrar a noiva traída, a noiva grávida e o noivo patético. Ele estava ali. Dante era o noivo que Bianca rejeitar publicamente há meses, o homem com o qual a caçula Ferreira deveria ter se casado por um arranjo de negócios. Para a mídia, a cerimônia dele com Bianca estava sendo aguardada. Dante fixou o olhar em meu pai, a voz grave e fria cortando a histeria familiar. — O cerimonialista informou que há uma complicação familiar. Os repórteres estão do lado de fora. Ele olhou para Bianca, e então, seu olhar de aço pousou sobre mim. Era um olhar que não continha pena, nem desejo. Apenas fria avaliação. Ele já sabia. Dante Moretti sempre sabia de tudo. — A noiva, pelo que entendi, foi trocada. — Ele fez uma pausa, e cada palavra pesou como chumbo. — Qual das senhoritas eu devo me dirigir como minha futura esposa agora? Naquele instante, sob o olhar avaliador do homem mais perigoso da sala, soube que a palavra "rejeitada" tinha um novo e terrível significado. Meu futuro havia acabado de se tornar dele. O ar congelou com a pergunta de Dante Moretti. Qual das "senhoritas" ele deveria se dirigir como sua futura esposa? A frieza da sua voz, a maneira como ele avaliava o nosso caos como se fosse um mau investimento, era mais aterradora do que o choro histérico de minha mãe ou a fúria do Sr. Carvalho. Meu pai, o magnata que sempre soube controlar qualquer crise corporativa, gaguejou pela primeira vez na vida. — Dante, meu jovem... a situação é delicada. Bianca e Gabriel... o meu neto... – Nunca tinha visto o meu pai daquele jeito. Dante o interrompeu com um movimento de mão, e a autoridade silenciosa dele calou meu pai instantaneamente. — Entendi o problema do ‘neto’ e da ‘honra’ de sua família, Sr. Ferreira. O que me diz respeito é o contrato. Minha união com a família Ferreira foi firmada por um acordo de alianças que se estende para além de quem é o pai de quem. Fora que eu tenho que me casar com algumas das suas filhas, eu preciso saber qual. Ele me olhou. Seu olhar era um peso. Naquele momento, soube que era inútil lutar. Eu era o dano colateral. Minha mãe tomou a frente, com a voz dura e final. — Stella se casará com você, Dante. É a única solução. É o preço para que Bianca se case com Gabriel e o nome da nossa família não seja arrastado para a lama. Eu senti as lágrimas, há muito tempo presas, finalmente queimarem em meus olhos, mas me recusei a chorar. Aquele era o meu destino: ser trocada por minha própria irmã e, como consolo, ser entregue ao homem que a família usava como último recurso. Dante recuou um passo, a mão no queixo, como se estivesse fechando um negócio. Ele era o CEO em ação, e eu, a mercadoria. — Entendido. — Sua voz era um veredito. Ele avaliou o meu vestido de noiva, as orquídeas que eu segurava, o meu corpo que escondia a minha própria verdade. — Não faremos a troca hoje. Os preparativos são para o casamento dos Ferreira com os Carvalho. O meu exige tempo e discrição. Ele se virou para meu pai e disparou a sentença, ignorando a todos: — Marcaremos o noivado de Stella Ferreira e Dante Moretti para daqui a uma semana. E o casamento, para o mês que vem. Era surreal, como eu poderia estar passando por isso? — Não! — A voz patética de Gabriel ecoou na sala. O canalha, que acabara de ser promovido a noivo da minha irmã, achava que ainda tinha algum direito sobre mim. — Você não pode fazer isso! Stella é... Dante girou sobre os calcanhares, a frieza de seu rosto se transformando em algo perigoso, gélido. Ele não elevou a voz, mas a autoridade que emanava dele era esmagadora. — E quem é você para protestar, Gabriel Carvalho? O homem que engravidou a irmã da sua noiva no meio dos arranjos do casamento? — Dante deu um passo à frente, e Gabriel encolheu-se. — Fique quieto. Concentre-se no seu novo papel de pai e marido. E jamais, “jamais”, ouse se dirigir a Stella com a falsa intimidade de um covarde. Ela está noiva de outro homem agora. E eu não sou você. A sala caiu em um silêncio sepulcral. Até Bianca pareceu ter se arrependido de ter invocado o nome dele. Com a decisão selada, o circo estava pronto para recomeçar. Saí da saleta, mas não para ir embora. Saí para assistir ao meu próprio funeral. A Marcha Nupcial recomeçou, e o cerimonialista, com um sorriso plastificado, anunciou a entrada da noiva. Só que a noiva era Bianca. Fiquei na espreita, como uma sombra, e assisti à minha irmã roubar meu sonho. O vestido de seda que levei dois anos para desenhar, cada bordado que eu havia inspecionado, agora cobria o corpo da traidora. Meu buquê, minhas músicas, meu altar... tudo era dela. Vi Gabriel, o homem que amei desde a infância, ir ao encontro dela. Vi ele beijar sua testa, um gesto que era meu por direito. Vi minha família sorrir para as câmeras, aliviada pela crise contornada. A humilhação era física, pesada. Não era apenas a perda de Gabriel, era a perda da minha dignidade. E eu tinha que engolir o fato de que meu pai, para proteger a aparência, entregou-me a um homem que parecia uma sombra e do qual todos fugiam. Eu, Stella Ferreira, a filha ajuizada e colaborativa, havia sido reduzida a um peão, entregue a Dante Moretti para limpar a bagunça que a filha mimada havia criado. Com os sinos da igreja tocando em celebração, virei as costas para a humilhação e encarei a única coisa que me restava: a promessa vazia de um casamento com um estranho. (...) A humilhação não cessou quando Bianca e Gabriel disseram o "sim"; ela se intensificou na recepção. Meu pai me obrigou a ir. "Você é a herdeira, Stella. Precisa aparecer. Precisa sorrir. Não vamos dar motivos para a mídia especular sobre a troca." Não importava que eu fosse a vítima da traição e da calúnia; eu era a guardiã do nome Ferreira. A festa, ah, a festa... Eu tinha passado dois anos sonhando com aquele salão. Era a materialização do meu bom gosto e dedicação, agora roubada por minha irmã. A paleta de cores, que eu havia escolhido meticulosamente em tons de Rosa Antigo e Ouro Envelhecido, cobria cada centímetro do espaço. Os lustres de cristal, que eu insisti em importar, lançavam um brilho quente e sedutor sobre as mesas forradas com linho italiano. O salão principal parecia um jardim secreto e opulento. No centro, a pista de dança de mármore refletia os feixes de luz. As mesas de doces eram obras de arte, com esculturas de açúcar e macarons nas cores escolhidas. Cada arranjo floral, com peônias e rosas colombianas de um tom blush delicado, era exatamente como eu havia planejado. Tudo o que havia de mais sofisticado e belo em São Paulo estava ali, celebrando o casamento de Bianca e Gabriel. Eu, a noiva de direito, estava em pé em um canto, sentindo o peso do meu vestido off-white de seda pura, que agora parecia um sudário. Minha irmã, a ladra, estava radiante. Com o meu vestido de noiva. Com o meu buquê. Com o meu homem. Bianca beijava Gabriel, sorria para os convidados, posava para as câmeras de jornais de celebridades que cobriam cada detalhe do "Casamento do Ano". Ela tinha o descaramento de me lançar olhares breves, cheios de uma falsa pena que escondia a sua alegria triunfante. Ela sempre foi assim: conseguia o que queria pelos melhores ou pelos piores meios possíveis. E agora, ela teve o prêmio máximo. Mas se minha presença ali era uma tortura, havia uma pequena âncora de segurança que me impedia de desmoronar. Dante Moretti Ele não se afastou de mim em momento algum. Assim que chegamos à recepção, ele me tomou o braço com uma firmeza discreta e não o soltou. Seus movimentos eram lentos, mas calculados. Ele não falava muito, apenas me conduzia pela festa, cumprimentando os convidados mais importantes com a aura de quem estava ali por obrigação, mas tinha total controle da situação. Sua presença era um escudo. Onde quer que fôssemos, o burburinho cessava. Os olhares de pena e cochichos que antes me perseguiam, eram substituídos por um temor respeitoso dirigido a ele. As pessoas teriam Dante Moretti muito mais do que sentiam pena de Stella Ferreira. Em um momento, Dante inclinou-se perto do meu ouvido, seu hálito frio. — Seu sorriso não está convincente, Stella. — Ele observou, sem emoção. — Se você quer manter a fachada, faça-o de forma eficiente. O público não perdoa fraquezas. Apesar da dureza, suas palavras me deram um propósito. Eu não estava ali para sofrer; estava ali para atuar. Para provar a Bianca e a todos eles que, mesmo sendo a noiva trocada, eu não estava quebrada. Respirei fundo, endireitei a postura, e forcei um sorriso tão brilhante quanto os lustres de cristal. Eu tinha perdido um noivo e ganhado um drama. Mas a partir de agora, o jogo de aparências seria jogado à minha maneira. E eu teria a companhia do homem que, involuntariamente, estava me resgatando da humilhação, mesmo que o custo fosse a minha liberdade.