Hannah finalmente podia respirar em paz. Estava de volta à fazenda Marinda, cercada pelas flores e pela brisa leve do campo. O lugar onde tudo começou — e onde, talvez, as coisas pudessem recomeçar.
Sentou-se no degrau da varanda, observando o nascer do sol dourar os girassóis. Um calor bom apertava o peito, quase como saudade, quase como gratidão.
"Sentia falta de assistir esse nascer do sol aqui do campo...", pensou, deixando o vento brincar com os fios soltos do cabelo.— Já está acordada, filha? — Josy apareceu com um sorriso cansado, mas cheio de ternura.
— Bom dia, mãe. Sim... acho que vou ao lago hoje. Vamos comigo?
— Hoje não posso. Preciso ver com seu avô como estão as coisas por aqui. Se ele precisar de ajuda, vou pro campo.
— Então eu vou sozinha... Até mais tarde. — Hannah beijou o rosto da mãe e saiu leve, como se a terra a reconhecesse.
— Volte pro almoço! — Josy gritou, já sabendo que seria ignorada.
O lago ficava nos fundos da propriedade, quase tocando o limite da casa de Luna — a melhor amiga de Josy, que sempre fora como uma tia para Hannah. Ao olhar para a casa de Luna, a lembrança veio como uma brisa com cheiro de infância...
FLASHBACK
As duas estavam de mãos dadas, os pés dentro d'água e os cabelos ainda molhados das brincadeiras.
— A gente vai ser amiga pra sempre, né, Ana? — Hannah perguntou.
— Pra sempre! — Ana respondeu firme. — E um dia vamos morar juntas! Numa casa com varanda e muitos gatos!
Elas riram, fazendo votos de amizade eterna como só as crianças sabem fazer.
FIM DO FLASHBACK
Hannah fechou os olhos e sorriu. Estar de volta era como remendar um rasgo no tempo.
De volta ao presente, ela se levantou com leveza. Precisava correr. Queria fazer uma surpresa para Ana.
Mais tarde, ao chegar em casa, ainda com o cheiro da brisa nos cabelos, foi recebida pelo avô.
— Hannah, como foi a manhã no lago? — perguntou o senhor Alberto, sentado em sua cadeira de balanço com uma xícara de chá.
— Como sempre, vô... Geladinha, mas uma delícia pra afastar o calor. E o campo, tá precisando de ajuda? Posso dar uma força se quiser.
— Não é necessário por enquanto. Sua mãe e eu vamos tocando como sempre. Você pode pensar em estudar. Veja com a Ana mais tarde, ou com a Luna, sobre os cursos na cidade.
— Mais tarde vou fazer uma surpresa pra Ana, então já converso com ela sobre isso.
Revigorada pela manhã no lago e pelas lembranças da infância, teve uma ideia. Procurou entre suas coisas uma foto antiga: ela e Ana, ainda crianças, de mãos dadas, os cabelos molhados de brincadeira. Colocou a foto numa moldura simples e seguiu até a casa de Luna para entregar o presente.
— Olá, tia... quanto tempo!
Luna abriu os braços num abraço apertado, demorado.
— Minha menina... como você cresceu! Já é uma mulher feita! Fui visitar sua mãe agora de manhã, mas você tinha saído. — disse com os olhos marejados. — Ana chega por volta das seis, Gui foi buscá-la. Vai jantar com a gente hoje, né?
— Vou falar com minha mãe. Quero fazer uma surpresa pra Ana, então corro ali em casa e volto depois.
Chegando em casa, avisou:
— Mãe, vou jantar na tia hoje. Mais tarde eu volto.
— Leve logo roupa pra dormir. Já sei que não vem hoje mesmo — respondeu Josy com aquele tom de mãe que conhece bem a filha.
— E o vovô?
— No cantinho dele, como sempre.
— Mande um beijo. Até amanhã.
De volta à casa de Luna, passou a tarde com ela, conversando sobre tudo e nada enquanto esperavam Ana.
Em um momento de silêncio, seus olhos se perderam nas janelas da casa vizinha... e outro flash a alcançou.
FLASHBACK
Ela, Ana, Nando e Guilherme corriam pelo campo. Guilherme tinha um sapo nas mãos, e elas gritavam como se fosse um monstro.
— GUI, PARA COM ISSO! — Ana chorava de medo.
Nando ria tanto que quase caiu no chão. O som das gargalhadas parecia ecoar no presente, aquecendo as memórias com carinho.
Mas logo tudo se nublou.
O riso virou silêncio. A lembrança das risadas foi engolida por outra.Josy, ajoelhada no chão da cozinha, chorava.
O padrasto gritava.— Se você não ficar comigo, vou destruir tudo o que você ama. Esse campo, as flores, seu pai... sua filha. Vai sobrar só eu pra você. Só eu!
Os olhos de Hannah arderam. Aquela era a parte que mais tentava esquecer.
Ela e a mãe fugiram como podiam, como conseguiam, por dez longos anos.Elas sobreviveram graças às duas ligações por mês: uma para o avô, para dizer que estavam bem, e outra para a casa de Luna, pra ouvir a voz de Ana e matar a saudade.
Depois... veio a notícia.
A manchete no jornal português: "Acidente fatal tira a vida de homem procurado pela polícia bralumense." E a liberdade. Enfim.FIM DO FLASHBACK
— Hannah? — Luna a chamou de volta. — Você tá bem?
— Estou, só lembrando de umas coisas...
Ela respirou fundo. Ainda era difícil. Mas agora, podia respirar.
Mais uma página daquele novo capítulo estava sendo virada.