Alicia Pamuk
Eu vivia em um looping infinito de “e se”...E se eu tivesse ficado naquela boate?E se eu não tivesse obrigado Aslan a ir para casa?E se eu não estivesse dirigindo?E se eu não fosse uma chata que não sabe o que é se divertir?Ver o corpo do meu irmão sem vida, em meio aos destroços do seu carro naquela noite, virou uma chave na minha cabeça e arrancou um pedaço do meu coração.A culpa me atormentaria enquanto eu vivesse, então me tornei a Alicia que Aslan gostaria de ter como irmã, alguém que ele admiraria.Aprendi a viver a vida da maneira que ele estava acostumado e isso foi como um anestésico para a minha dor.Abri mão da faculdade de medicina para me dedicar integralmente à Pamuk, passei a viver os sonhos do meu irmão, porque os meus morreram naquela m*****a noite.O silêncio ecoa pelo meu quarto enquanto eu termino minha maquiagem.Tenho minha própria linha de cosméticos, milhões de seguidores no I*******m e sou figura carimbada em todos os eventos badalados de Nova York.Ser herdeira da maior empresa de maquiagem dos Estados Unidos tem suas vantagens.Olho meu reflexo no espelho da penteadeira e confirmo que o hematoma está totalmente coberto pela maquiagem, constatando que nossas bases são excelentes.Passo os dedos no local, sentindo uma fisgada de dor instantaneamente. Não foi a primeira vez que Paul me bateu, mas eu prometi a mim mesma que foi a última.Paul é louco, namoramos há três anos e somos o casal queridinho do público, até mesmo quando suas traições estampam todos os sites e revistas de fofoca.Às vezes eu me pergunto o porquê de ter perdoado ele tantas e tantas vezes. Talvez pelo fato de ele ter sido o melhor amigo de infância de Aslan, que passou a adolescência e grande parte da vida adulta na Europa.Nos reencontramos no funeral do meu irmão e não nos envolvemos imediatamente.Iniciamos o relacionamento quando ele veio da Europa para assumir a empresa da família, família essa que é muito próxima da minha.E meu pai achou que seria uma ótima ideia que eu e Paul nos relacionássemos, talvez eu estivesse apaixonada naquela época.Paul era como um príncipe, fazia tudo para eu me sentir o centro das atenções, tinha algumas crises de ciúmes, mas jamais imaginaria que ele se tornaria um homem violento.Descobri isso da pior maneira, a primeira agressão veio quando confrontei ele a respeito de uma traição, e assim começou o círculo vicioso que demorei um ano e meio para ser capaz de sair.Todos ao meu redor me viam como uma mulher forte, alguns até temiam minha presença, sendo chamada de megera por manter pulso firme e autoridade em algumas ocasiões.Usava uma armadura impenetrável para lidar com todos que se aproximavam, armadura que eu abri para que Paul entrasse e fizesse uma grande bagunça.No fundo eu não passava de uma gatinha assustada, que vivia sufocada pela culpa e pela necessidade de ser alguém que meu irmão gostaria que eu fosse.Meus pais acreditavam que eu e Paul nos casaríamos e, quando eu disse que não estávamos mais juntos, a única coisa que minha mãe fez foi me acusar mais uma vez de estragar tudo, deixando claro que eu merecia cada soco e tapa que recebi de Paul.Ela nunca deixou de me culpar pela morte de Aslan e acredito que nunca vá deixar.Meu irmão sempre foi o filho preferido dela e ela sempre o protegeu, nunca sendo uma mãe atenciosa quando se tratava de mim e, com o passar do tempo, eu passei a não me importar.Meu pai fazia o seu melhor para suprir o carinho que ela não me dava, ele sempre fez questão de fazer com que eu me sentisse especial e nunca me culpou pela morte do meu irmão, mesmo eu sabendo que eu fui a culpada.Tentar fazer dar certo com Paul era uma forma de deixar viva a lembrança de Aslan.E por isso que, mesmo com tudo que sofri nas mãos de Paul, foi difícil deixá-lo, mesmo quando o único sentimento que eu nutria por ele era o ódio, mas tudo tem limite e, mesmo indo contra o desejo dos meus pais, eu não vou mais ser um saco de pancadas.Ele não aceitou o fim do relacionamento, fez um belo de um escândalo, mas minha ameaça de destruí-lo perante a mídia o fez murchar e pedir milhões de desculpas, acompanhadas de promessas de mudança.Patético.Ajeito o terno off-white no corpo e olho meu reflexo no espelho, ensaiando um sorriso falso.Não me lembro da última vez que sorri de verdade.Pego a bolsa e saio do meu quarto, quase batendo de frente com minha funcionária, que segura a garrafa com suco verde.— Olhe por onde anda, Maria . — Ajeito minha postura, segurando para não rir da cara de assustada que ela faz.— Me desculpe, senhorita, é que achei que tinha me atrasado para trazer o suco da senhora — fala sem me encarar, apenas estendendo a garrafa.— Você está no horário, Maria . Já pediu o meu taxi? — pergunto, pegando a garrafa.— Sim, senhorita, ele já deve estar esperando — fala me seguindo.— Ótimo. Acredito que amanhã eu esteja com um novo motorista. — Assinto, vestindo meu casaco.— Espero que tenha mais sorte com esse. — Leva a mão até a boca, como se tivesse dito algo errado. — Desculpe, senhorita, isso não é da minha conta.— Espero que esse novo motorista consiga fazer o trabalho direito — comento indo em direção à porta, Maria passa correndo por mim para abri-la. Não peço que ela faça isso, mas aparentemente seus patrões anteriores exigiam e ela já tinha se acostumado. — Terminando tudo você pode ir para casa, Maria , não precisa esperar eu voltar.— Obrigada, senhorita. — Junta as mãos quase dando uns pulinhos.Meu apartamento é na cobertura, o que faz com que eu fique alguns minutos no elevador, que por um milagre está vazio hoje.Odeio pedir carros por aplicativo e o táxi é a única opção que eu tenho para minha locomoção.Depois daquela noite eu nunca mais consegui dirigir, nem a terapia conseguiu fazer com que eu voltasse a ficar atrás do volante. Tudo bem que abandonei o tratamento no meio.Fiquei anos com Gomes , um excelente motorista, que mesmo com a idade avançada fazia um exímio trabalho, mas ele resolveu se aposentar e ir morar na Flórida.Desde então, há um ano, eu venho sofrendo com péssimos profissionais, o último não durou nem uma semana e ainda teve a coragem de dizer que eu fui a pior pessoa com quem ele trabalhou, só porque o infeliz não soube fazer seu trabalho direito.Sei que não sou uma pessoa fácil, mas dizer isso já é demais.Avisto o táxi assim que chego na portaria do prédio, então respiro fundo, torcendo para que o próximo motorista não seja um preguiçoso resmungão e que dure mais de uma semana, porque eu já não aguento mais andar de taxi.